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Mike Davis: a apocalíptica “segunda natureza” da Califórnia

As atuais tempestades de fogo nos estados do Pacífico são muito maiores e seu poder destrutivo deve ser comparado à megatonagem de centenas de bombas de hidrogênio

30 de setembro de 2020

O fogo no Antropoceno se tornou o equivalente físico de uma guerra nuclear sem fim. Após os incêndios do Sábado Negro, em Vitória [Austrália], no início de 2009, os cientistas australianos calcularam que a energia liberada foi equivalente à explosão de 1.500 bombas do tamanho da de Hiroshima. As atuais tempestades de fogo nos estados do Pacífico são muito maiores e seu poder destrutivo deve ser comparado à megatonagem de centenas de bombas de hidrogênio

Mike Davis, Rebelión, 26 de setembro de 2020. A tradução é do Cepat.


No caminho para Las Vegas, e a 20 minutos da fronteira estadual, há uma saída da I-15 que conduz a uma estrada asfaltada de duas pistas chamada Cima Road. Esta é a modesta porta de entrada para uma das florestas mais mágicas da América do Norte: quilômetros e quilômetros de velhas árvores de Josué, uma espécie que cobre um campo de pequenos vulcões do Pleistoceno, conhecidos como Cima Dome e a Cúpula de Cima. Os reis da floresta têm quatorze metros de altura e mil anos de antiguidade. Em meados de agosto, aproximadamente 1,3 milhão dessas impressionantes iúcas gigantes pereceram no incêndio da Cúpula, causado por um raio.

Esta não é a primeira vez que vimos queimar o leste do deserto de Mojave. Em 2005, um megaincêndio queimou mais de 4.000 quilômetros quadrados de deserto, mas não penetrou na Cúpula, o coração da floresta. As plantas do deserto, ao contrário dos carvalhos da Califórnia e do chaparral, não estão adaptadas ao fogo, portanto sua recuperação é uma incógnita. O surgimento de uma erva invasiva conhecida como bromo vermelho criou um subsolo inflamável para as árvores de Josué e transformou o deserto de Mojave em uma ecologia de fogo. (O invasor desempenhou esse papel na Grande Bacia, por décadas.) O aumento da frequência dos incêndios irá acelerar a mudança da vegetação e, por fim, colocar em risco a existência das árvores.

O fato de que que nossos desertos estejam queimando é a expressão regional de uma tendência global: um planeta em chamas pelas mudanças climáticas que desencadeou uma perigosa transformação da ecologia das plantas e, portanto, das populações da fauna, do Ártico à Patagônia, de Montana à Mongólia. A Califórnia é um exemplo paradigmático desse ciclo vicioso, em que o calor extremo leva a incêndios extremos que impedem o rejuvenescimento natural e aceleram a transformação de paisagens icônicas em pastagens empobrecidas e encostas de montanhas sem árvores.

Em inícios deste século, os gestores hídricos e as autoridades encarregadas dos incêndios se concentraram principalmente na ameaça de secas plurianuais causadas pela intensificação dos episódios de La Niña e a persistência das cúpulas de alta pressão, ambos potencialmente atribuíveis ao aquecimento antropogênico.

Seus piores temores se tornaram realidade na grande seca da década anterior, talvez a maior nos últimos 500 anos, que provocou a morte de milhões de carvalhos e pinheiros, que por sua vez forneceu combustível para as tempestades de fogo de 2018 e 2019.

Essas últimas catástrofes, no entanto, forçaram os cientistas a identificar um novo fenômeno, a "seca quente". Mesmo em anos com chuvas normais, o calor extremo do verão - nossa nova normalidade - está causando nos reservatórios e comunidades vegetais uma perda em massa de água por evaporação. Se o inverno e o início da primavera são úmidos, podem nos encantar com exuberantes exibições de plantas com flores, mas também produzem muita grama e ervas daninhas que depois assam na fornalha do verão e se tornam gatilhos de fogo quando retornam os ventos demoníacos.

O desenvolvimento imobiliário em zonas de risco de incêndio alto e extremo, onde foi construída a maior parte das novas moradias do estado, nos últimos vinte anos, também fomentou essa contrarrevolução botânica, já que o desmatamento e extração de madeira do chaparral abre novos caminhos para a mostarda-preta e os bromos, plantas incendiárias. A fórmula abreviada para um megaincêndio é arbustos mais árvores mortas ou afetadas pela seca.

A vegetação mediterrânea (a da Califórnia a oeste das serras e ao sul de Klamath) coevoluiu acompanhada pelo fogo e, de fato, os carvalhos e a maioria das plantas chaparrais requerem fogos episódicos para se reproduzir. No entanto, o fogo extremo que agora é comum na Grécia, Espanha, Austrália e Califórnia está destruindo as adaptações do Holoceno e produzindo mudanças irreversíveis na biota. A única limitação real para incêndios florestais futuros é a massa de combustível disponível. Haverá mais áreas que se assemelham ao litoral de Malibu, onde os incêndios acontecem no mesmo setor a cada uma ou duas décadas, dependendo do período de oito a doze anos que leva para que arbustos de sálvia da Costa amadureçam.

No final dos anos 40 do século passado, as ruínas de Berlim se tornaram um laboratório no qual cientistas naturais estudaram a sucessão vegetal, após três anos de incessantes bombardeios de fogo. O que se esperava era que a vegetação original da região, os carvalhos e seus arbustos, fosse restabelecida rapidamente. Para seu horror, não foi assim. Em seu lugar, surgiram plantas exóticas, a maioria delas de fora da Alemanha, que ali se estabeleceram como as novas espécies dominantes.

Os botânicos continuaram seus estudos até que as últimas áreas bombardeadas foram limpas, nos anos 1980. A persistência desta vegetação de zona morta e a incapacidade das plantas florestais da Pomerânia de se restabelecerem gerou um debate sobre a Natureza II. Argumenta-se que o calor extremo das queimadas e a pulverização das estruturas de tijolos haviam criado um novo tipo de solo que convidou à colonização por parte de plantas como a "árvore do céu" (Ailanthus), que evoluiu em morenas de folhas de gelo do Pleistoceno. Uma guerra nuclear total, alertaram, poderia reproduzir essas mesmas condições em grande escala.

O fogo no Antropoceno se tornou o equivalente físico de uma guerra nuclear sem fim. Após os incêndios do Sábado Negro, em Vitória [Austrália], no início de 2009, os cientistas australianos calcularam que a energia liberada foi equivalente à explosão de 1.500 bombas do tamanho da de Hiroshima. As atuais tempestades de fogo nos estados do Pacífico são muito maiores e seu poder destrutivo deve ser comparado à megatonagem de centenas de bombas de hidrogênio.

Dos escombros de nossos fogos, uma natureza nova e profundamente sinistra está emergindo em alta velocidade à custa de paisagens que outrora consideramos sagradas. Nossa imaginação mal consegue compreender a velocidade ou escala da catástrofe. Adeus Califórnia, adeus.

Nota:
Este texto foi publicado inicialmente no blog Rosa Luxemburg Stiftung NYC, com o título "California’s Apocalyptic‘ Second Nature".