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Modo de vida imperial, de Ulrich Brand e Markus Wissen (1)

8 de setembro de 2021

Em Modo de vida imperial, Ulrich Brand e Markus Wissen investigam as formas pelas quais as normas de produção e consumo forjadas no Norte global são sustentada à custa de violência, destruição ecológica e sofrimento humano, especialmente no Sul global. O livro acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Elefante e na Argentina pela Editora Tinta Limón, que patrocinaram, com o escritório Cone Sur da Fundação Rosa Luxemburg, o debate a seguir.

Debate Tinta Limón /Blog da Editora Elefante, 26 de agosto de 2021

A sensação de colapso econômico, ecológico e político provocado pela pandemia que atingiu o mundo no início de 2020 foi declinando na gestão de uma crise que se espalha e é consumida em um incessante ruído midiático, na proliferação semiótica autocentrada e complacente das redes sociais, em uma agenda político-econômica subordinada a uma correlação global de forças que resulta, no melhor dos casos, em um jogo de soma zero. Ao mesmo tempo, a crise é irrefutável e exige levar a sério as discussões que apontam para o centro da reprodução social, para as formas de organização da produção e do consumo, para as formas de “crescimento” e desenvolvimento econômico e social. Quais são as discussões substantivas que contribuem para uma análise crítica das causas da atual crise socioecológica global que podem alimentar um novo imaginário e dar consistência a uma prática política transformadora?

Os ativistas políticos e pesquisadores Markus Wissen e Ulrich Brand escrevem com os pés no coração do capitalismo europeu, a partir de onde disponibilizam uma estrutura conceitual que nos permite localizar tendências que a pandemia acelerou e revelou. Em Modo de vida imperial: sobre a exploração de seres humanos e da natureza no capitalismo global, eles investigam as maneiras pelas quais as normas de produção e consumo forjadas no Norte global – mas estendidas, a partir de meados do século 20, para o resto do mundo – são sustentadas à custa de violência, destruição ecológica e sofrimento humano, especialmente – embora não exclusivamente – no Sul global. Ou, mais especificamente, analisam como o modo de vida imperial do Norte global oculta sistematicamente as condições de produção – da extração de recursos naturais às condições de trabalho – que lhe permitem externalizar os impactos negativos das operações do capital para regiões periféricas do mundo. Por sua vez, esse modo de vida imperial no Norte global não é apenas causa e fator de crise no Sul global, mas também um mecanismo de estabilização econômica e subjetiva do próprio Norte, camuflando assim sua própria crise.

Dito isso, estamos interessados ​​em colocar essas ideias para funcionar e discuti-las. Para isso, convidamos Gabriela Massuh [1],  Bruno Fornillo [2] e Camila Moreno [3] para conversar com Ulrich Brand sobre o livro. Gerhard Dilger, diretor para o Cone Sul da Fundação Rosa Luxemburgo, e Florencia Puente, coordenadora do projeto da mesma instituição, também participaram da organização e coordenação desta conversa.

O texto a seguir é o registro desse bate-papo que, entre outros temas, vai da crise ecossocial ao surgimento do “capitalismo verde” como oportunidade de negócios; do declínio da Europa e da perda da soberania dos Estados-nação à disputa por recursos estratégicos e ao surgimento de potências asiáticas como a China. Que tensões e novas contradições estão passando pelos territórios, tanto no Sul global quanto no Norte? O que podem hoje os movimentos sociais que no início do século apresentavam uma alternativa clara às forças mercantis e destrutivas do neoliberalismo?

[Dividimos a conversa em quatro partes, publicadas separadamente no Blog da Elefante: Modo de vida imperial: as ressonâncias de um conceito | Os projetos das elites globais: capitalismo verde e ecoimperialismo | Alcances e limites da vontade individual: quando a solidariedade não é suficiente | Movimento social e emancipação: tensões dentro do império. Você também pode ouvir a conversa na íntegra.]

Reproduzimos abaixo as duas primeiras partes.

Modo de vida imperial: as ressonâncias de um conceito 

Gabriela Massuh: Devo dizer que o título Modo de vida imperial, à primeira vista, me pareceu estranho. Pensei: “Outro livro sobre imperialismo”. Mas, em seguida, a forma como o livro propõe pensar esses modos de vida imperiais a partir da insistência nas “externalidades” me pareceu absolutamente necessária e interessante. O Sul global surge, em relação ao Norte global, como depósito de lixo, como local de extração de recursos. Ao mesmo tempo, é inevitável pensar, também, naquele Sul global que chega à Europa em forma de migração; e como os governos europeus estão fechando e colocando cada vez mais barreiras a ele. Um exemplo recente que chamou minha atenção: a Dinamarca lutou, sem sucesso e por cinquenta anos, contra a existência de seus guetos de migrantes. A cada ano, cerca de trinta bairros, principalmente nas grandes cidades, são incluídos em uma espécie de lista negra. Há poucos dias, seu governo social-democrata decidiu reduzir a 30% a entrada de “não ocidentais” nesses bairros. Esta é a primeira vez que tal distinção é feita e é altamente problemática. Por exemplo, o que significa “não ocidentais”? Como diria Rita Segato, algo “cheira mal” nessa Europa cada vez mais fechada. O “outro”, para a Europa, está nos museus ou nos guetos. Nesse sentido, e seguindo a própria Segato, poderia ser proposto um paralelo entre esse conceito de modo de vida imperial e o conceito de colonialidade do poder. Ou seja, a cumplicidade das colônias com o poder hegemônico. Nesse sentido, parece-me que tanto o livro como este conceito de modo de vida imperial tornam muito claras as atuais condições de domínio colonial, patriarcal, racista e de classe.

Bruno Fornillo: De minha parte, o que eu resgataria como um fato singular do livro não é tanto o que tem a ver com a ideia de império, mas sim o que tem a ver com a ideia de um modo de vida. A ênfase que o livro dá às dimensões ideológicas é muito importante para mim. Acredito que a tríade poder, prestígio e dinheiro remete a uma dimensão ideológica fundamental que sustenta o tipo de acumulação capitalista. E o que o texto está marcando muito bem é a responsabilidade generalizada – não só dos setores da elite, mas também de grande parte das classes médias europeias e agora, também, dos novos poderes, especialmente os asiáticos – com essa tríade e esse modo de acumulação. Ou seja, parece-me fundamental apontar a extensão deste modo de vida imperial a grande parte da população e, consequentemente, o alargamento da responsabilidade primária e o compromisso generalizado destes modos de vida hiperprodutivistas e hiperconsumistas em relação à atual catástrofe ambiental global e à distribuição desigual de recursos.

Há outro ponto que o livro sublinha, e ao qual devemos prestar atenção absoluta, é que a Europa e o mundo atlântico em geral, está sofrendo uma espécie de declínio, a tal ponto que é provável que, mais cedo ou mais tarde, se torne novamente uma península asiática. Em contrapartida, o que vemos é o ressurgimento de megapotências asiáticas, que também sustentam um modo de vida imperial. Porque a China é efetivamente um novo império cujo desenvolvimento capitalista, com seu modo generalizado de extração de recursos que impacta o Sul global, contradiz a sustentabilidade do planeta. Em suma, acho essa dimensão cultural ou ideológica que aparece com muita força no texto muito estimulante.

Ulrich Brand: Como diz Bruno, no livro estamos interessados ​​em mostrar como o modo de vida imperial vence mesmo na sua própria morte, mesmo na sua própria extinção, dada a sua capacidade de superexplorar o mundo tanto ecológica como socialmente. Esse caráter hegemônico do modo de vida imperial, a ampla aceitação de um cotidiano insustentável, evidencia-se não tanto em seu caráter imperial quanto na extensão ilimitada de um modo de vida que, no entanto, exige o fora, o não presente; especialmente do Sul global, mas também de regiões da Alemanha ou Áustria, onde inúmeros migrantes vivem e trabalham na colheita ou nas fábricas de carne. Essa é a contradição que nos interessa.

Conforme desenvolvemos no livro, a hegemonia desse modo de vida imperial se consolida na Europa, mas também na Argentina, no pós-guerra, na segunda metade do século XX. Um modo de vida que hoje, com a pandemia, se revela como causa ou fator de uma crise múltipla. Ao mesmo tempo, e não menos importante, este modo de vida é também um fator de estabilização das relações sociais. A Europa já conhece a crise, mas o acesso a commodities, a produtos baratos no mercado mundial, permite que uma parte significativa de sua população mantenha um certo padrão de vida, ou seja, uma vida “normal”. Esta situação, porém, não atinge uma estabilização duradoura, e com base neste diagnóstico, no livro dizemos que cada vez mais tensões são esperadas; tensões que chamamos de eco-imperiais e que ocorrem nos países emergentes do sul da América Latina e da África toda vez que esses modos de vida baseados na extração voraz dos recursos globais não são aceitos e postos em discussão.

Há uma última questão que acho importante destacar sobre este livro e que, sem intenção, interveio em um intenso debate que ocorreu na Alemanha e dentro da esquerda europeia a partir do movimento de refugiados de 2015 – e em setor particular dessa esquerda, que pode ser chamado de social-nacional. Uma esquerda, em alguns casos, impulsionada por sindicatos que costumam dizer: “Temos que defender o modo de vida imperial, porque se não os trabalhadores votarão na extrema direita. Temos que manter um certo Estado social, certos padrões para as massas, porque, se não, a direita será ainda mais forte”. Interferimos nesse debate enfatizando essa posição, colocando as múltiplas crises e modos de vida no centro da discussão e incitando um novo internacionalismo. Parece-nos fundamental colocar tudo em discussão e reconhecer os problemas, mas a resposta da esquerda não pode ser social-nacional, não pode partir da defesa do modo de vida imperial.

Camila Moreno: Quando escrevi o prefácio da versão em português do livro para a Editora Elefante, fiz alguns comentários sobre o que estávamos nos referindo quando falamos de “imperial”. [4] Porque existe um risco na interpretação deste conceito, sobretudo pela forma como a esquerda atual se configura, tendendo a absorver slogans em vez de processar as ideias. Portanto, é preciso ir um pouco mais longe do que a forma como a esquerda – depois de Marx, com Lênin e toda a tradição do século 20 – pensou o imperialismo. Especialmente se entrarmos em uma conversa com a China.

Faço uma breve divagação: um pouco na brincadeira, contei no prefácio do livro que eu estava na China, falando e falando sobre imperialismo, e a pessoa com quem eu estava conversando me olhou, interrompeu e disse: “Mas a China é um império, um bom império”. Então, “o que essa garota maluca está criticando?”, ele queria dizer. E me lembro de outro momento, naquela mesma viagem à China que fiz com Ulrich Brand em 2015, que para explicar um pouco da história da América Latina fiz uma linha do tempo, como costumo fazer nesses casos, e apontei nela os ciclos (açúcar, ouro, café), desenvolvimentismo, neoliberalismo, ajuste estrutural etc., diferentes etapas de nossa história nacional. Em um determinado momento, percebo que meu público me olha como quem diz “coitadinha”. Mais tarde, alguém se refere à Rota da Seda, Genghis Khan e ao império mongol. Suas chaves temporárias são completamente diferentes; e, obviamente, é muito estranho contar essa história para pessoas que pensam sobre si e sobre nós de maneira tão diferente.

E aqui volto à ideia de que o império precede a ideia do imperialismo – conforme se discute na esquerda – e a do Estado-nação. E nesse ponto não é por acaso que as discussões que Ulrich e Markus propõem no livro tiveram tanta ressonância. Há uma grande fantasmagoria como pano de fundo: vivemos um momento em que a forma do Estado-nação, que é uma forma muito recente, está se desgastando muito rapidamente. O sistema de Estados nacionais começa com o Tratado de Westfália, em 1648, e sua difusão e consolidação na Europa e na periferia é um processo complexo e conflituoso. E se pensarmos no processo de constituição do multilateralismo das Nações Unidas, a descolonização na África, por exemplo, ocorre na segunda metade do século XX. São processos lentos, que talvez pareçam rápidos na forma, mas cujas mudanças ocorrem muito lentamente em termos de estruturas sociais profundas. Portanto, tanto a forma do Estado-nação como, sobretudo, a ideia mais recente do Estado de bem-estar social são – na história da humanidade – experiências muito curtas no tempo. Somos obcecados por sua imagem, por seu simbolismo, mas de outros pontos de vista – por exemplo, da Ásia, da China, da Índia – são formas de organização muito recentes e, talvez, insuficientes para enfrentar os desafios atuais.

Ao mesmo tempo, o Estado nacional se metamorfoseou e é cada vez mais um Estado corporativo, um parceiro das corporações. Na realidade, muito poucos Estados-nação terão soberania real para projetar políticas ambientais ou políticas relacionadas à agricultura. Porque os Estados estão cada vez mais codependentes das parcerias público-privadas e aprofundam a lógica da dívida com a da emissão de títulos (títulos sociais, títulos verdes). Ou seja, uma financeirização absurda dos Estados-nação, com a consequente renúncia à soberania e a hipoteca do futuro.

Em suma, o que parece acontecer é ​​uma reorganização do mundo em uma base neo-imperial. Um novo colonialismo. E é neste quadro que assistimos ao crescimento dos programas ligados ao Green Deal [acordo verde], que nada mais são do que pactos que normalizam os pressupostos do capitalismo verde – seja através de programas promovidos pela União Europeia, seja através de programas promovidos pelo Estados Unidos, seja, também, por meio de ideias e projetos formulados a partir dos movimentos sociais. E me detenho neste último, porque me parece que há um déficit na maneira como os movimentos sociais tendem a entender o capitalismo verde, como ele desabou com o processo de transformação digital e como é a exportação de contradições do centro para as periferias hoje em dia.

Uma última questão que me parece muito importante levantar, alinhada com o que disse Gabriela e Ulrich retomou a respeito da colonialidade do poder: acredito que um modo de vida imperial corresponde a um modo de pensar imperial. Ou seja, a colonialidade do conhecimento. Há toda uma ciência social que importamos que nos impõe lentes e modos de ler nossa realidade que são profundamente coloniais, mesmo quando vêm com o rótulo de crítica. E é assim que os movimentos foram incorporando todo um pacote de conceitos e imagens que promovem um novo universalismo: bioeconomia, circularidade, Net Zero, carbono neutro etc. No Brasil isso é muito complexo, na medida em que importamos esquemas teóricos para ler questões raciais, ou importamos esquemas para ler questões relacionadas às mulheres. E isso, na minha opinião, está causando um curto-circuito total em nossas formas de pensar. É como se abrissem franquias, movimentos que são cada vez mais marcas (brands) de luta social e não reflexos reais sobre as diferenças constitutivas de nossos países. E me parece um sério problema não podermos pensar a partir de nós mesmos e de nossas próprias realidades, tradições intelectuais e intérpretes.

No Brasil temos uma expressão clássica: o “complexo de vira-lata”, traço muito profundo da nossa identidade. Voltando a José Carlos Mariátegui e tantos outros autores, parece fundamental, justamente, a chave da miscigenação para compreender a América Latina e a formação de seus povos. No Brasil, esse debate foi completamente esmagado pela intenção de replicar a leitura de uma sociedade e tensões raciais que existem – eu jamais diria que não existe racismo no Brasil! –, mas que são impossíveis de entender se nosso ponto de partida é: como não tivemos um Martin Luther King? Parece-me que é a maneira errada de ler nossas histórias, nossas lutas, nossa resistência; mas também os acordos e fusões que foram alcançados no Brasil e que nunca, jamais, existiram nos Estados Unidos. Nessa chave, para mim é preciso também trazer para o debate como o fenômeno da guerra híbrida, que atua no campo de batalha dos imaginários, subjugando os esquemas de pensamento e de interpretação da realidade, está dificultando muito a construção de frentes de unidade na luta política.

Os projetos das elites globais: capitalismo verde e ecoimperialismo

Bruno: A pandemia deu visibilidade à inclinação das elites globais para se promoverem e se transformarem em uma espécie de capitalismo verde. Um exemplo muito claro – e do qual o livro trata de forma muito específica – é a inusitada decolagem que a eletromobilidade teve na pandemia até se tornar o grande farol a respeito da transformação ecológica modernizadora do capitalismo. Como um dado particular, durante o ano passado, o valor das ações da Tesla cresceu 700%. Isso mostra a inclinação das elites globais para o capitalismo verde, mas também é uma evidência de que a mudança ambiental global é inevitável. No entanto, como Ulrich e Markus muito bem argumentam, é realmente impossível sustentar esse tipo de último imaginário das elites de que é viável substituir a frota de combustão fóssil contemporânea por outra frota, de dimensões iguais, mas, neste caso elétrica, para sustentar o tipo de desenvolvimento descomunal que existe hoje.

Na América Latina em particular, e em relação à pandemia, gostaria de destacar várias coisas. O primeiro é o que o livro chama de greenwashing: todo o marketing relacionado à imagem verde que as empresas fazem. Nesse ponto, parece-me necessário olhar para uma elite particular, que é a elite chilena: uma elite de vanguarda na América Latina, com um capitalismo de vanguarda particularmente modernizador, talvez pelo forte contato com os Estados Unidos. Essa elite chilena é tremendamente verde e propícia a uma transição do mercado de energia como em nenhum outro país da América Latina. Um fato complementar é que essa elite chilena compra e monopoliza insaciavelmente terras na Patagônia, um território “vazio” e muito solto que se tornou estratégico devido aos seus bens comuns; isto é, porque mantém riquezas incríveis, como ar puro e água. Em suma, o capitalismo verde é hoje o capitalismo das elites.

No resto da América Latina, pela primeira vez, os discursos nacional-populares percebem a necessidade de “limpar” e começam a incorporar – é claro, de forma relativa – variáveis ​​ambientais, buscando sempre sustentar padrões independentistas e modelos econômicos já existentes, pensados ​​à maneira do século XX. Para não ir muito longe e falar da Argentina, não estamos vislumbrando que o atual governo nacional-popular [de Alberto Fernández], se você quiser chamá-lo assim, ou progressista, se preferir – definitivamente não de esquerda –, pode incorporar algum traço de algum elemento emancipatório. Não vemos isso de forma alguma. Se pensarmos no lítio, que é o que temos investigado, o que está se firmando é um modelo extrativista no qual as províncias têm controle e domínio dos recursos, e não há crescimento do vetor tecnológico. Ao contrário, o que se faz é oferecer uma espécie de ilusão, um fetiche sobre o que seria uma industrialização, mas com uma empresa chinesa. Então, por um lado, teremos a Argentina extraindo ​​toneladas de lítio, com péssima captação de receitas, com grandes riscos ambientais e sociais e com um execrável sistema político-jurídico na mineração. Por outro lado, uma empresa chinesa que produz – eventualmente e no melhor dos casos – carros elétricos para vender no mercado local. O que é realmente patético como padrão de desenvolvimento.

Mais uma vez, a grande novidade e a grande incógnita tem a ver com a ambição da Ásia e da China de descarbonizar sua economia até 2060. À maneira chinesa, é uma aposta gigantesca e implica uma produção de energia renovável em escala muito grande: trata-se de descarbonizar a maior economia do planeta. Ao mesmo tempo, a China tem uma visão mais apurada – em relação aos Estados Unidos, com certeza – sobre alguns dilemas ambientais, atrelada a uma certa ideia que eles têm, por exemplo, sobre o destino comum da humanidade. E, nesse sentido, há muita incerteza nas elites globais sobre como a China vai realizar o capitalismo verde. Mas essa incógnita não parece tão difícil de revelar se analisarmos a maneira como hoje, na América Latina, se estabelecem as formas de neodependência, o que o livro chama de ecoimperialismo. Muito especificamente: somos os fornecedores de recursos para que os países centrais realizem suas transições socioecológicas.

Gabriela: Nesse sentido, queria destacar algo que me parece importante sobre o livro de Uli e Markus, que é a recuperação tanto de Gramsci quanto de Polanyi. Parece-me fundamental levantar o problema da “grande transformação” neste momento e perguntar em que ponto está esse debate hoje. Agora, a questão concreta é esta: se para Polanyi e Gramsci a grande transformação exigiu um sujeito político, como fazemos hoje, quando não há sujeito político capaz de realizar essa transformação? Quem quer essa transformação são os movimentos sociais, mas não os sujeitos políticos institucionais. Ao contrário, parece haver uma espécie de casamento entre Estado e empresas que, juntos, substituem a atual questão política. Tudo isso dentro do que o livro, entendo eu, chama de pós-neoliberalismo.

Em relação à pandemia e à mudança de costumes, devo dizer que me parece uma certa vontade luterana: ou seja, acreditar que com (boa) vontade individual vamos superar a questão. Estou mais inclinada na direção do fortalecimento dos movimentos sociais. Quanto mais universais, melhor. Acredito que o ecofeminismo veio travando uma grande batalha em relação à descriminalização do aborto, e essa luta está sendo transferida para a terra, digamos, para os problemas do território. Da violação do território feminino à violação dos territórios: esta me parece a grande conjunção que poderia evocar uma vontade de vanguarda, ou seja, saindo pelo eixo das mudanças climáticas e da relação com a natureza.

Ulrich: Em relação à discussão sobre as elites nesse contexto, vejo pelo menos três projetos, além do projeto emancipatório. Um primeiro projeto que poderíamos chamar de business as usual, ou seja, continuar com os negócios como de costume. Essa posição é cada vez mais fraca e está ligada às elites que não querem ver os problemas socioecológicos que estamos levantando. Um segundo projeto, que Bruno já enfatizou, é o da modernização ecológica, ou seja, das elites que entenderam os problemas ecossociais e, consequentemente, abriram mais um campo de negócios ligado às finanças verdes, ao trabalho verde, à produção verde, com todas as implicações que esse processo tem no modo de vida imperial. Mas também vejo um terceiro projeto – aqui articulado com a pandemia – vinculado à implementação de toda uma série de estratégias de controle. Podemos até falar de um ecoautoritarismo, o que difere da visão ecológica modernizadora do capitalismo do segundo projeto. Este último assume uma dinâmica social que implica escutar certos debates públicos, e a integração de sindicatos e outros representantes dos setores populacionais subordinados. Por outro lado, o terceiro projeto faz um pouco o contrário, fecha-se em uma tendência autoritária de controle, e esse foi um processo, ou um projeto, que se fortaleceu durante a pandemia.

Em todo caso, se nos concentrarmos nos mecanismos reprodutivos das elites como um todo, poderíamos dizer que eles se desdobram sob o que Gramsci chamaria de “revolução passiva”. Muitas mudanças estão ocorrendo, mas sob o controle do capital, sob o controle das elites. Nos próximos tempos teremos que estar atentos a essas mudanças, a essas transformações, para ver como esse julgamento da revolução passiva do capital está sendo articulado e implementado. Pois é nesse terreno que as forças emancipatórias terão que implantar suas estratégias e projetos.

Acrescento uma breve pergunta a respeito do que a Gabriela falou sobre o sujeito e a grande transformação. Polanyi falou de “transformação” e de “grande transformação”. E a transformação de Polanyi é a longa transição, evolutiva, do capitalismo agrário para o capitalismo industrial. Mas quando fala de uma “grande” transformação (que faz duas vezes no seu livro) – e nisso insiste o meu colega Andreas Novy, em Viena, nas suas obras –, refere-se à intervenção consciente e estratégica das elites liberais no final da década de 1920 e início da década de 1930 em direção ao fascismo. Essa é a grande transformação: primeiro na Itália, depois na Alemanha e na Áustria – houve, é claro, outras intervenções das elites em outras direções; na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo, em direção a um New Deal.

Nesse ponto, é fundamental vincular um diagnóstico do modo de vida imperial com as longas transformações evolutivas e, também, com intervenções mais específicas e complexas, como neste caso, em direção a um capitalismo verde centrado na eletromobilidade. As elites de hoje no Norte global falam muito sobre a transformação socioecológica. Eu chamo isso de “nova ortodoxia crítica”. A palavra grega “orthós” significa “correto” ou “verdadeiro” e “doxa” significa “crença” ou “opinião”. A crítica é que as elites compreenderam os graves problemas, mas as respostas estão sob seu controle, sob suas regras. Naturalmente, as perspectivas mais críticas e radicais de uma transformação são excluídas, não apenas da base material e energética da economia, mas das formas sociais capitalistas. Isso faz parte da luta epistêmica da revolução passiva.

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[1] Gabriela Massuh nasceu em Tucumán, estudou Letras na Universidade de Buenos Aires e fez doutorado em Filologia na Universidade de Erlangen-Nürnberg. É escritora, editora, tradutora, professora e ativa promotora cultural. Por mais de duas décadas dirigiu o departamento de cultura do Instituto Goethe de Buenos Aires e fundou a editora Mardulce. Entre seus livros publicados está o ensaio El robo de Buenos Aires. A trama de corrupção, ineficiência e negócios que a cidade tirou de seus habitantes (2014) e os romances La omisión (2012), Desmonte (2015), La intemperie (2018) e Degüello (2019).

[2] Bruno Fornillo é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e em Geopolítica pela Universidade de Paris 8; Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina e é membro do Instituto de Estudos da América Latina e do Caribe da Faculdade de Ciências Sociais da UBA. Ele publicou Sudamérica Futuro. China global, transição energética e pós-desenvolvimento (Clacso-El Colectivo, 2016) e coordenou a publicação de Lítio na América do Sul. Geopolítica, energia e territórios (Clacso-IEALC-El Colectivo, 2019).

[3] Camila Moreno estudou filosofia e direito; É doutora em Sociologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ele está atualmente fazendo pesquisa de pós-doutorado (2019-2024) na Humboldt University, Berlin. É autora de Brazil made in China: to think as configurações do capitalismo contemporaneo (Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo, 2015) e La Métrica del Carbon: CO2 como medida de todas as coisas? (Fundação Heinrich Böll, México, 2016). Ela acompanha as negociações internacionais sobre o clima desde 2008.

[4] Ulrich Brand & Markus Wissen, Modo de vida imperial: sobre a exploração do ser humano e a natureza do capitalismo global, São Paulo, Elefante Editora, 2021.