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Mudanças climáticas têm impactos irreversíveis, diz IPCC

Com entrevistas a Paulo Artaxo e Antônio Nobre sobre seus impactos no Brasil

10 de agosto de 2021

Sem ações imediatas para reduzir emissões, mundo deve descumprir meta de limitar aquecimento global a 1,5 °C já na próxima década, diz painel da ONU. Nível do mar deve subir drasticamente, e Amazônia pode virar savana.

Ajit Niranjan, Deutsche Welle Brasil, 9 de agosto de 2021

A poluição por carbono alcançou níveis tão extremos que uma meta fundamental na luta para deter as mudanças climáticas – limitar o aquecimento global a 1,5 °C até o final do século – será descumprida dentro dos próximos 15 anos a não ser que ações imediatas, rápidas e de grande escala sejam tomadas para reduzir emissões de efeito estufa.

Essa é uma das principais conclusões de um relatório histórico aprovado por representantes de 195 países e publicado nesta segunda-feira (09/08) pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

A análise, que vem em meio a temperaturas e chuvas recordes que abalaram tanto países ricos quanto pobres, baseia-se em mais de 14 mil estudos para avaliar a ciência das mudanças climáticas induzidas pelo homem.

Ao queimar combustíveis fósseis e liberar gases que aquecem a Terra como uma estufa, a humanidade fez a temperatura média do planeta subir 1,1 °C nos últimos cerca de 150 anos. Mundo afora, isso fez com que ondas de calor e chuvas torrenciais ficassem mais intensas e mais frequentes. Em muitas regiões, as secas estão mais intensas e duram mais tempo. Desde o último grande relatório do IPCC, de 2014, cientistas também ganharam mais certeza de que as mudanças climáticas tornaram incêndios, enchentes e tempestades mais fortes.

Há uma solução simples para evitar que as condições climáticas piorem: parar de queimar combustíveis fósseis – mas governos, empresas e indivíduos estão falhando em fazê-lo com rapidez suficiente, aponta o IPCC.

"Quando olho para os resultados que encontramos sobre os extremos climáticos, diria que estamos em uma crise climática", disse Sonia Seneviratne, cientista do Instituto de Ciência Atmosférica e Climática o Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça, e coautora do relatório. "Nós realmente temos um problema muito grande."

Quão rápido as mudanças climáticas estão aquecendo o planeta?

Em 2015, líderes mundiais se comprometeram no âmbito do Acordo de Paris a limitar o aquecimento global até o final do século a bem abaixo de 2 °C – idealmente 1,5 °C – em um esforço global para evitar catástrofes. Mas, em vez disso, estão seguindo políticas que colocam o planeta a caminho de um aquecimento de 3 °C, de acordo com o grupo de pesquisa Climate Action Tracker, sediado na Alemanha.

Enquanto a meta de 1,5 °C deverá ser quebrada já na próxima década, as temperaturas poderiam ser reduzidas novamente até o final do século sob o cenário mais ambicioso apresentado no relatório para reduzir a poluição. Além de descarbonizar rapidamente a economia global, seria necessário remover enormes quantidades de CO2 da atmosfera. Mas a tecnologia para fazer isso é cara, e há poucas evidências que sugerem que poderia funcionar na escala necessária.

"É muito mais fácil evitar as emissões agora do que ultrapassar nosso orçamento de carbono e ter que retirar muitas emissões da atmosfera novamente", disse Malte Meinshausen, cientista do Instituto Potsdam de Pesquisa de Impacto Climático e coautor do relatório.

O que as mudanças climáticas farão com o planeta?

Em todo o mundo, as chuvas extremas serão 7% mais intensas para cada grau Celsius de aquecimento global. Mais ciclones tropicais serão classificados nas categorias mais altas, 4 e 5. As chuvas de monções asiáticas cairão com mais intensidade e em períodos diferentes.

"Com cada incremento adicional de aquecimento global, as mudanças nos extremos [climáticos] continuam a se tornar maiores", escreveram os autores do relatório do IPCC.

Fortes chuvas que costumavam ocorrer uma vez por década já se tornaram 30% mais prováveis. Mas com mais 3 °C de aquecimento, elas ocorrerão duas ou mesmo três vezes por década, e farão cair um terço a mais de água. Secas que costumavam ocorrer uma vez a cada dez anos deixarão o solo infértil quatro vezes por década. Ondas de calor – que já são 2,8 vezes mais prováveis e 1 °C mais quentes do que antes da Revolução Industrial – serão 9,4 vezes mais prováveis e ficarão 5 °C mais quentes.

"O relatório expõe claramente a evidência da urgência da ação", disse Veronika Eyring, cientista de sistemas terrestres do Centro Aeroespacial Alemão e coautora do documento.

Impactos irreversíveis

Algumas das mudanças climáticas estimularão um aquecimento ainda maior. Os sumidouros naturais de carbono no oceano e em terra tornam-se menos eficazes à medida que o planeta se aquece. Temperaturas mais altas degelarão ainda mais o chamado permafrost (solo permanentemente congelado) – liberando grandes quantidades de metano na atmosfera – e derreterão neve e camadas de gelo que refletem o calor para fora do planeta. É provável que o Ártico fique praticamente sem gelo marinho no mês de setembro pelo menos uma vez antes de 2050.

Cientistas dizem que o derretimento do permafrost não é suficiente para levar a uma aceleração dramática e que se retroalimenta das mudanças climáticas, mas isso tornaria a luta para estabilizar o clima mais difícil. Níveis mais altos de poluição atmosférica significam processos de retroalimentação (feedback loops) mais fortes e que se tornam mais difíceis de prever.

Também já tiveram início alguns processos que devem ser irreversíveis "por séculos ou milênios", mesmo que emissões sejam dramaticamente reduzidas. Entre elas estão o degelo do Ártico e aumento do nível do mar, que, segundo as previsões, deve ser de mais de meio metro neste século, o que já começou a tornar as inundações costeiras mais intensas e mais prováveis, mas continuará a fazê-lo no futuro.

Cientistas dizem que as incertezas na forma como as camadas de gelo respondem ao aquecimento global significam que extremos muito piores –  2 metros de aumento do nível do mar até 2100 e 5 metros até 2150 em um cenário de emissões "muito altas" – não podem ser descartados.

Outro possível impacto catastrófico das mudanças climáticas que não pode ser descartado é a transformação da Floresta Amazônica em savana, aponta o IPCC.

Cada esforço de proteção climática ajuda, afirma Douglas Maraun, cientista do Centro Wegener para o Clima e Mudanças Globais na Áustria e coautor do relatório. "Cada grau – ou décimo de grau – de aquecimento que é evitado reduz o risco de eventos extremos. "

Acabar com o uso de combustíveis fósseis

As maiores fontes de emissões de gases de efeito estufa que impulsionam as mudanças climáticas são carvão, petróleo e gás. Mas um resumo de 43 páginas do relatório elaborado para decisores políticos, um documento preparado primeiro pelos cientistas e depois aprovado linha por linha pelos representantes dos governos, não contém as palavras "combustíveis fósseis".

Os autores do relatório do IPCC não estão autorizados a comentar a reunião de aprovação do texto em si, que é confidencial, mas "no material que os cientistas escreveram, absolutamente, os combustíveis fósseis são mencionados", disse o cientista climático Meinshausen. Mas "mesmo perdendo algumas palavras, é uma conquista notável ter no final um acordo com todos os governos. Nenhum governo do mundo pode agora dizer que não acredita no que o IPCC escreveu."

"A ciência não foi enfraquecida no processo", acrescentou Friederike Otto, cientista climática da Universidade de Oxford e coautora do relatório.

O relatório do IPCC é a primeira de três partes e foi divulgado antes da cúpula climática COP26, a ser realizada no Reino Unido em novembro. Líderes mundiais discutirão soluções para parar de queimar carvão até 2030 e cumprir uma promessa feita pelos países ricos de pagar aos mais pobres 100 bilhões de dólares por ano para se adaptarem às mudanças climáticas até 2020. Algo que até agora eles não fizeram.

"Mudanças climáticas podem inviabilizar soja e gado no Brasil"

Em entrevista, o cientista brasileiro Paulo Artaxo, membro do IPCC, comenta novo relatório do painel da ONU. Documento prevê alta de até 5,5°C e redução de 30% das chuvas em áreas exploradas pelo agronegócio no Brasil.

Nadia Pontes

A primeira parte do novo relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC),  divulgada nesta segunda-feira (09/08), afasta quaisquer dúvidas sobre a causa do aquecimento do planeta. O modo de vida da humanidade, movido à base da queima de combustíveis fósseis, emite gases de efeito estufa que estão levando a um rápido aquecimento do planeta. Até a próxima década, a temperatura média global deve subir 1,5 °C, estima o IPCC.

Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC, alerta para os impactos desse cenário no Brasil. Na região central do país, a temperatura pode subir até 5,5 °C, e as chuvas podem cair 30% até o fim do século.

"Esse cenário vai fazer com que áreas onde hoje são produzidas soja e carne possam não ter mais condições de produzir competitivamente daqui a 10, 20, 30 anos", analisa em entrevista à DW Brasil.

O sexto relatório do IPCC (AR6) será composto por quatro partes. Além da ciência física, divulgada agora, as demais se ocuparão com os impactos, vulnerabilidade e adaptação, mitigação, programadas para serem publicadas em 2022.

DW Brasil: O novo relatório do IPCC reforça o entendimento de que o aquecimento do planeta, que provoca as mudanças climáticas, é causado pelas atividades humanas. Dos pontos abordados no documento sobre os quais não se tinha o mesmo grau de certeza nos relatórios passados, o aumento dos eventos climáticos extremos é um dos com mais avanços?

Paulo Artaxo: É muito claro que o aquecimento do planeta está sendo causado pelas atividades humanas. Não houve nenhum único país, durante os debates sobre aprovação do relatório, que tenha levantado dúvidas sobre essa questão. É um consenso, passamos dessa etapa. Agora é o que fazer, como fazer, quem paga a conta.

Esse relatório trata de vários aspectos que não foram tratados no passado. O primeiro deles, por exemplo, há uma quantificação dos eventos de extremos climáticos. Isso não existia antes.

A gente dizia antes que, aquecendo o planeta, iria aumentar a incidência de eventos climáticos extremos. Esse novo relatório diz que se a gente deixar o planeta aquecer 4 ºC, ondas de calor vão ocorrer 38 vezes mais frequentemente do que ocorreria sem o aquecimento global. É muita coisa.

O documento também faz a vinculação das emissões urbanas e clima global, o que é importante considerando que 80% da população vai viver em áreas urbanas em 2050. Precisamos de políticas públicas para tornar nossas cidades mais eficientes no uso de energia e transporte, mais sustentáveis.

Essa informação chega num momento em que eventos extremos estão trazendo impactos nos dois hemisférios, como as chuvas fortes na Alemanha e a crise hídrica no Brasil, o que já reforça a mensagem do relatório.

Exatamente. O Canadá, por exemplo, não registrava 48 ºC nos últimos 150 anos. Chover em um dia o que chove normalmente em um ano também é inédito.

As enchentes recentes que aconteceram na Alemanha, por exemplo, ocorreram depois de um nível de chuva recorde. Os alemães viram que o aumento de eventos extremos climáticos pode matar pessoas lá também. 

E para o Brasil? Os impactos podem ser considerados ainda mais severos?

Um aumento médio se temperatura de 4°C, que é para onde estamos indo com o cenário de emissões, vai fazer com que o Brasil central aumente de temperatura 5,5 °C, com uma redução de chuvas de 30%. Esse cenário vai fazer com que áreas onde hoje são produzidas soja e carne possam não ter mais condições de produzir competitivamente daqui a 10, 20, 30 anos.

Isso leva o Brasil a ter que repensar que economia nós queremos fomentar. Vamos continuar dependendo do agronegócio? Pode ser um péssimo negócio.

Por que essa região do país sofreria um aumento maior de temperatura em relação à média global?

Um aquecimento médio de 2 °C no planeta significa que as áreas continentais se aquecem 3,5 °C. Isso porque 70% da superfície do planeta é oceano, e a água tem uma capacidade térmica muito maior do que os ecossistemas terrestres. Então as áreas continentais se aquecem muito mais.

Um aquecimento médio de 4 °C significa um aquecimento nas áreas continentais de 5,5 °C. Esse aumento da temperatura vai fazer com que a chuva no Brasil central diminua muito. Pode não ser viável uma agricultura com eficiência como a que gente tem hoje.

A mensagem é clara. A questão é o que os governos vão fazer. Ou seja, é o mesmo problema de antes.

A Amazônia é outro destaque deste relatório. Ela armazena 120 bilhões de toneladas de carbono no ecossistema. Se isso for para a atmosfera, todo o cenário de aquecimento pode piorar muito. 

O relatório também traz mais clareza em relação às projeções voltadas para elevação do nível do mar?

A projeção até 2100 é de que o nível do mar suba em torno de um metro. E esse relatório faz pela primeira vez uma projeção para 2300. Isso porque, uma vez iniciado o processo de derretimento das geleiras, não há maneira de parar. E a parte do relatório Science for Policy Makers traz a projeção de elevação de até 16 metros até 2300.

As consequências disso para cidades como Rio de Janeiro, Nova York, Londres e para países como Bangladesh são catastróficas.

A palavra "irreversível" aparece muitas vezes no relatório. O que ainda é possível reverter com o corte significativo de emissões de gases do efeito estufa?

Muitos processos já iniciados são irreversíveis. A meia vida do CO2 na atmosfera é de alguns milhares de anos, ou seja, o CO2 que a gente já emitiu vai ficar lá.

A única maneira de tirar esse CO2 da atmosfera é através da fotossíntese. Mas como vamos plantar árvores onde hoje se cultiva comida? Isso traria um impacto gigantesco para a sociedade.

Há ainda um dado muito importante nesse relatório. Os aerossóis estão mascarando o aquecimento. A poluição emitida por partículas que resfriam o clima é responsável pelo resfriamento de 0,5 ºC. Isso foi calculado pela primeira vez.

A hora em que a gente parar de queimar carvão e petróleo, que a gente eletrificar os veículos do mundo inteiro - e isso vai ocorrer - o planeta será aquecido imediatamente em mais 0,5 ºC. Isso é 50% de tudo o que foi aquecido até agora desde a Revolução Industrial.

Isso significa que não será possível manter o aumento da temperatura "bem abaixo dos 1,5ºC", como estipulado no Acordo de Paris, já que a temperatura média do planeta já subiu 1 ºC desde a Revolução Industrial?

O IPCC fala nesse relatório que vamos aquecer em média 1,5 ºC nesta década. Mas na verdade, isso é eufemismo. Vamos diminuir a redução dos aerossóis, isso vai acontecer na Índia, China, América Latina, com a eletrificação da frota e a desativação das usinas a carvão. E esse 0,5 °C que está mascarado vai ser somado de imediato.

Então parar de queimar combustíveis fósseis vai piorar o aquecimento do planeta?

Vai aumentar a temperatura no curto prazo. Mas, para a sociedade, ao longo dos anos, isso é vantajoso. Primeiro: vai reduzir as 3 bilhões de pessoas que morrem por ano por doenças causadas pela poluição do ar. E, segundo, vai tornar os nossos ecossistemas mais sustentáveis, diminuindo a deposição de substâncias tóxicas. Parar de queimar carvão e outros [combustíveis fósseis] vai deixar de mascarar um terço do aquecimento, mas é esse o caminho a seguir. 

Quais são as perguntas desafiadoras a serem respondidas nos próximos relatórios?

As principais perguntas estão associadas com o que a gente chama dos tipping points, os chamados pontos de não retorno. Onde estão eles?

Em que nível de subida de temperatura a gente altera a circulação oceânica? Em que nível de temperatura a Floresta Amazônica passa a emitir carbono em vez de absorver, como ela estava fazendo até há algum tempo? Qual é o impacto do feedback da liberação de metano pelo derretimento do permafrost [solo permanentemente congelado]? São todas questões ainda sem respostas.

Estudos recentes mostraram que a Corrente do Golfo está enfraquecendo. Mais um sinal dos impactos das mudanças climáticas?

Sim. Nós estamos alterando o principal canal de redistribuição de energia do planeta. Isso é extremamente preocupante.

"Processo de savanização da Amazônia já começou"

Em entrevista, Antonio Nobre, pesquisador do Inpe, afirma que, com avanço do desmatamento, áreas da floresta já dão sinais de que ultrapassaram o chamado ponto de não retorno, com consequências para o clima global.

Thomas Milz

Num momento em que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alerta para graves e "irreversíveis" impactos do aquecimento global, o clima no Brasil dá sinais de mudanças profundas, com neve caindo no Sul, secas nas áreas de agricultura do Centro-Oeste e a Floresta Amazônica já emitindo mais CO2 do que absorve.

Em entrevista à DW Brasil, o cientista Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), fala sobre o o chamado tipping point, ou ponto de não retorno da floresta, quando ela perde a capacidade de se recuperar – o que os cientistas chamam de processo de savanização.  

"As florestas remanescentes na porção leste da Amazônia, locus do pior desmatamento, no chamado arco do fogo, já apresentam sintomas de haverem cruzado o tipping point clima-vegetação, com áreas imensas mostrando o processo de savanização", afirma.

Nobre também fala sobre a relação entre as mudanças climáticas e os poderosos rios voadores que trazem chuva para as áreas ao sul da Amazônia e as recentes temperaturas baixíssimas no Sul do país.

DW Brasil: Seu irmão, o cientista Carlos Nobre, estima nos estudos dele que a Amazônia atingirá o chamado tipping point, ou ponto de não retorno, com 25% de destruição da floresta. Estamos na beira dos 20%, e já há sinais preocupantes. Que momento é esse que estamos vendo agora?

Antonio Donato Nobre: A Amazônia cobre mais de 7 milhões de km², tem um bioma constituído de muitos e vastos ecossistemas. O que observamos é uma confirmação de previsões feitas décadas atrás, iniciando no final dos anos 70. As florestas remanescentes na porção leste da Amazônia, locus do pior desmatamento, no chamado arco do fogo, já apresentam sintomas de haverem cruzado o tipping point clima-vegetação, com áreas imensas mostrando o processo de savanização. Estamos no inicio do processo, que se acelera devido ao avanço do desmatamento e da degradação florestal.

Qual seria a consequência disso para a Amazônia e para o clima global?

A consequência mais imediata para a Amazônia é o comprometimento da reciclagem de umidade, feita eficientemente por milhões de anos pela hileia pristina [floresta primária]. Com a consequente redução das chuvas, a floresta torna-se seca e inflamável, o que cria um círculo vicioso de incêndios e degradação, comprometendo a bomba biótica de umidade e enfraquecendo os rios voadores.

A diminuição dos poderosos fluxos aéreos de umidade na Amazônia reflete-se no enfraquecimento associado dos ventos alíseos sobre o Oceano Atlântico equatorial, importantes impulsionadores de correntes oceânicas que geram o massivo fluxo da Corrente do Golfo. O enfraquecimento da Corrente do Golfo perturba o transporte de calor para altas latitudes, inclusive e especialmente para a Europa, criando condições para o aumento de intensidade e frequências de eventos climáticos extremos.

As secas atuais no Sul e Sudeste brasileiros já são uma consequência das mudanças climáticas na Amazônia?

As secas fortes em partes da Amazônia e no Centro-oeste e Sul/Sudeste do Brasil são anômalas, e têm se repetido, indicando alteração no sistema climático. As secas que atingem as regiões mais ricas e produtivas da América do Sul têm origem demonstrada no enfraquecimento dos chamados rios voadores, os fluxos aéreos propelidos pela bomba biótica de umidade gerada pelas florestas na Amazônia. Tal efeito foi registrado em diversos trabalhos. O desmatamento está danificando a bomba biótica de umidade, enfraquecendo os rios voadores e, com isso, comprometendo o ciclo hidrológico continental.

Como funcionaram os rio voadores?

Os rios voadores são fluxos filamentares de ar na baixa atmosfera, propelidos pela bomba biótica de umidade, carregando grande quantidade de água dos oceanos para áreas continentais. Na América do Sul, a maior parte da água que alimenta o portentoso ciclo hidrológico Amazônico é transportada pelos rios voadores.

A falta de água da Bacia do Rio Paraná é uma consequência dos acontecimentos na Amazônia?

Dois efeitos se combinam para gerar essa escassez de água. O aquecimento global tem aumentado a frequência e a intensidade de eventos extremos. Na América do Sul, surge uma massa estacionada de ar quente de alta pressão, que dificulta a entrada dos rios voadores provenientes da Amazônia e as frentes frias do Sul. E os rios voadores amazônicos estão enfraquecidos devido à destruição massiva das florestas que os propelem. Como o aquecimento global tem relação direta com a destruição dos grandes biomas reguladores, os dois fenômenos são indissociáveis.

Fazendeiros no Sul e Sudeste relatam geadas mais fortes e imprevisíveis. Como esse fenômeno se encaixa nesse contexto?

A penetração mais pronunciada de massas de ar polar tem também direta relação com o aquecimento global, como demonstrado para eventos recentes no hemisfério norte. Trata-se da perturbação da circumpolar jet [corrente circumpolar], que gera grandes oscilações. Todos são fenômenos relacionados e diretamente atribuíveis a atividades antrópicas.