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Musto: Marx nos ajuda a fazer as perguntas certas

Marcello Musto, sociólogo e autor de “Os últimos anos de Marx. Uma biografia intelectual”, fala sobre atualidade do filósofo alemão em tempos de pandemia

9 de dezembro de 2020

Após a primeira onda da pandemia, repetiu-se até à exaustão: “Nada voltará a ser o mesmo". Depois, com o tempo, apercebemo-nos de que as mudanças que estão a ocorrer são numerosas e profundas, sim, mas também o são as constâncias. Hoje diz-se que a pandemia atua como revelador, ou até como acelerador de processos pré-existentes. Um deles é o crescimento das desigualdades. Será Marx ainda indispensável para compreender os seus fatores, a sua forma, o seu possível contraste?

Giulio Azzolini, pesquisador de Filosofia Política na Universidade Ca' Foscari em Veneza, fala sobre isto com Marcello Musto, Professor de Sociologia na Universidade de York em Toronto e protagonista reconhecido de uma recente renovação nos estudos marxistas, para a qual contribuiu, entre outras coisas, como autor do recente Os últimos anos de Marx. Uma biografia intelectual (Parsifal, 2020) e Another Marx: Early Manuscripts to the International (Bloomsbury, 2018); e, como editor, Marx's Capital after 150 Years: Critique and Alternative to Capitalism, (Routledge, 2019), The Marx Revival: Key Concepts and New Interpretations (Cambridge University Press, 2020). Os seus escritos estão disponíveis no site www.marcellomusto.org.

Giulio Azzolini: Professor Musto, o que podemos aprender com Marx nesta época de crise pandémica?

Marcello Musto: Após anos de mantra neoliberal eu diria uma coisa em primeiro lugar: que a dimensão cooperativa dos seres humanos é indispensável para a sobrevivência dos indivíduos, tal como a liberdade dos indivíduos é fundamental para a preservação da comunidade. A cooperação e a liberdade devem ser consideradas dois elementos indispensáveis na "farmácia de Marx". No tratamento que prescreveria para curar os males da sociedade contemporânea, incluiria também três preceitos: a forte transferência do poder de decisão da esfera económica para a política; a utilização da ciência e da tecnologia para o bem-estar de todos e não para benefício de uns poucos; e, por último mas não menos importante, o papel central a ser atribuído à educação, também através de dotá-la de substanciais recursos públicos.

A pandemia agravou o conflito, que amadureceu ao longo dos anos, entre os Estados Unidos e a China e, na UE, entre os vários Estados Membros. Será um choque entre diferentes formas de capitalismo organizado?

É uma tendência destinada a continuar e noto que entre os países mais afetados pela Covid-19 estão, como esperado, os Estados Unidos e a Inglaterra, as nações que lideraram a cruzada para a privatização e cujo modelo de capitalismo impediu o desenvolvimento do Estado-Providência ou o desmantelou ferozmente. Se olharmos para além da superfície, existe um conflito ainda mais importante. Refiro-me à luta para impedir a redistribuição da riqueza que, nas últimas décadas, tem sido ganha pelo capital.

Marx não previu o empobrecimento do proletariado, mas o aumento das desigualdades de classe. Estará a história a provar que ele tem razão?

Sim, e de forma ainda mais impressionante se analisarmos o enorme fosso, não só económico, que existe à escala global. Marx, por exemplo, compreendeu que o colonialismo britânico na Índia implicaria principalmente a pilhagem dos seus recursos naturais e novas formas de escravatura, e não o progresso anunciado pelos seus apologistas. Por outro lado, enganou-se sobre o papel revolucionário da classe trabalhadora europeia. Ele percebeu isto nos últimos anos da sua vida, quando afirmou amargamente que os proletários britânicos tinham preferido tornar-se "a cauda dos seus próprios escravizadores".

O impacto económico da pandemia varia muito de país para país. Muitas empresas entraram em colapso, os gigantes da web não. Os trabalhadores precários perderam os seus empregos, os trabalhadores permanentes não. Alguns comerciantes fecharam, outros não. Poderá Marx ajudar a decifrar uma sociedade cada vez mais complexa e caótica?

A sua análise das classes sociais precisa de ser atualizada e a sua teoria da crise, entre outras coisas incompleta, é filha de um outro tempo. Se as respostas a muitos dos problemas contemporâneos não podem ser encontradas em Marx, no entanto, ele assinala as perguntas essenciais. Penso que esta é hoje a sua maior contribuição: ele ajuda-nos a fazer as perguntas certas, a identificar as principais contradições. Penso que isto não é insignificante.

A crise atual reabriu a questão da desigualdade de género. Será que Marx tem algo a ensinar-nos sobre o assunto?

Mais do que ensinar, acredito que sobre este assunto estaria hoje empenhado em aprender, em particular com o novo movimento feminista na América Latina, que é o protagonista de importantes mobilizações sociais. Certamente não era, como por vezes erradamente se afirma, indiferente a este respeito. Entre os estudos que realizou antes da sua morte, focou precisamente a importância da igualdade de género, e nos seus programas políticos repetiu várias vezes que a libertação da classe produtiva era a de "todos os seres humanos, sem distinção de sexo e raça". Tinha aprendido quando jovem, com os livros dos primeiros socialistas franceses, que o nível de emancipação geral de uma sociedade pode ser avaliado pelo da emancipação das mulheres.

No meio da crise sanitária, a batalha pela igualdade étnica também rebentou nos Estados Unidos. Uma coincidência fortuita?

Sim, mas é muito útil e revela outra ferida terrível que existe naquele país. O #BlackLivesMatter não é um fenómeno passageiro, mas um movimento que continuará a lutar resolutamente contra o racismo e a violência nas instituições americanas.

Passemos agora à questão da ligação entre as lutas de classe e as lutas ambientais. Do seu ponto de vista, são alternativas, complementares, são hierárquicas?

São complementares e mutuamente indispensáveis. Elas precisam uma da outra. As críticas à exploração do trabalho e à devastação ambiental são agora indissolúveis. Qualquer luta que esqueça qualquer um destes termos será incompleta e menos eficaz. Refiro-me às posições produtivistas do movimento operário do século XX e aos movimentos ambientais que muitas vezes ignoram o fator determinante do "modo de produção". O quê, como e para quem é produzido são questões estritamente ligadas ao fator determinante da propriedade dos meios de produção.

Como sublinha nos seus estudos, Marx não foi apenas o filósofo da revolução comunista, mas também o político capaz de fornecer ao movimento operário uma organização internacional. Em que medida é esta lição da sua ainda relevante?

É uma ideia sem a qual estamos condenados à derrota, especialmente numa fase de recrudescimento nacionalista. O internacionalismo também significa solidariedade entre trabalhadores nativos e migrantes e Marx, que estudou cuidadosamente as migrações forçadas geradas pelo capitalismo, mostrou que a divisão da classe trabalhadora é o eixo da dominação burguesa. O internacionalismo deve voltar a ser um dos pilares da esquerda para que seja capaz de liderar a batalha das ideias a longo prazo e não apenas em função do imediato.

Em 2018, a China celebrou o bicentenário de Marx com grande pompa e circunstância. No Ocidente, está o filósofo de Trier destinado a sobreviver como mero objeto de estudo ou ainda é potencialmente capaz de mover as massas?
A China utiliza a efígie de Marx, ignorando alguns dos seus avisos mais relevantes e frequentemente evitando a leitura do conteúdo dos seus textos. Estaline também o fez, quando no tempo do gulag ele próprio se fez fotografar, com um rosto tranquilizador, sob o retrato de Marx. No Ocidente, Marx reapareceu nas aulas da universidade, mas não terá a influência política que teve na época dos partidos "marxistas". As novas subjetividades políticas que no futuro terão a ambição de repensar uma sociedade alternativa não poderão, no entanto, ignorar as suas teorias.

Hoje a esquerda italiana está a pagar o preço por ter defendido o marxismo para além da sua data de validade ou por tê-lo abandonado?

Paga o preço por cometer ambos os erros. Primeiro foi demasiado lenta a identificar as mudanças necessárias para enfrentar a metamorfose do capitalismo e para responder às questões colocadas pelos novos movimentos sociais. E depois foi míope ao abandonar, em vez de rever e modernizar criticamente, uma interpretação ainda muito válida da sociedade. Basta pensar em Gramsci, abandonado no sótão justamente quando foi protagonista de uma extraordinária redescoberta no mundo. Contudo, as contradições geradas pelo capitalismo não eram há muito tão dramáticas e evidentes como são hoje. A história da esquerda não acabou.

Entrevista publicada no jornal italiano La Reppublica a 2 de setembro de 2020. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net.