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"Não é proteção. Conservadores querem privatizar infância"

As interdições da família e das igrejas buscam o controle e a censura do mundo, em nome dos seus valores e da proteção desse ideal de infância

19 de agosto de 2020

Gustavo Belisário

BRASÌLIA - No último final de semana, ganhou notoriedade a crueldade de grupos religiosos que foram para frente de um hospital, em Recife, para barrar a interrupção legal da gestação de uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio desde os seis. O absurdo caso revelou que os setores conservadores e reacionários se utilizam da justa pauta de combate à pedofilia apenas para mobilizar moralmente a opinião do seu eleitorado, enquanto tentam implementar um projeto de privatização da infância, incapaz de verdadeiramente fazer frente a violência sexual contra crianças e adolescentes quando ela acontece.

Há anos, um dos temas que mais mobilizam a opinião pública no Brasil é a sexualidade de crianças e adolescentes. Desde a CPI da pedofilia em 2010, presidida pelo Senador Magno Malta, e a mobilização de setores do fundamentalismo religioso em 2011, para barrar o programa Escolas Sem Homofobia - batizado proposital e perversamente de kit gay -, que sistematicamente retornamos ao debate da sexualidade de crianças e adolescentes sem sair do lugar de defensiva.

De lá pra cá, já tivemos a censura da exposição do Queermuseu – em que o quadro Criança Viada era considerado o mais polêmico –, as fake news da mamadeira de piroca em escolas públicas, o “menino veste azul e menina veste rosa”, e a mais recente campanha de abstinência sexual para evitar gravidez na adolescência, além, é claro, de uma infindável lista de situações em que a moralização e normatização dos padrões de gênero e sexualidade tinham como função principal “a proteção da infância”.

O medo de se viver em uma sociedade onde a violência sexual é generalizada é conscientemente confundido com ideias fantasiosas como a intenção de transformar a orientação sexual e a identidade de gênero dos filhos e filhas das pessoas. Os conservadores e reacionários criam uma atmosfera constante de pânico para mobilizar amplas parcelas da sociedade contra artistas, professores, políticos, youtubers. Um dia divulgam que Felipe Neto é pedófilo, no outro que Jean Wyllys defende o casamento com crianças. Não a toa, as fake news que mais interferiram no resultado das eleições foram a da mamadeira de piroca, o requentado kit gay e a calúnia de que Haddad queria legalizar a pedofilia.

Mas, quanto mais avança o pânico moral e a instrumentalização política do debate da sexualidade infantil, mais os projetos de privatização da infância caminham. As bancadas dos fanáticos religiosos pelo país apresentam dezenas de projetos que esvaziam os conteúdos do espaço público - da escola, da televisão, das peças de teatro, das exposições de arte – em nome da proteção das crianças. São os mesmos setores que defendem projetos como o homeschooling, ou seja, a substituição integral da frequência escolar pela educação formal em casa, pelos familiares. Quanto mais produzem pânico o medo do espaço público, mais oferecem soluções que restringem o espaço da criança ao espaço doméstico. É o espaço da família – cristã e heterossexual, importante dizer – o lócus primordial de socialização das crianças na perspectiva destes setores.

Por privatização da infância, estou me referindo ao tratamento das crianças como propriedade das famílias - e as vezes das igrejas. Às crianças é negada a agência e as possibilidades de se formar enquanto pessoa na sua experiência concreta com o mundo. Cria-se um imaginário de um mundo inocente e puro das crianças, que deve ser protegido dos perigos do mundo dos adultos, do espaço público. Assim, as interdições da família e da igreja buscam o controle e a censura do mundo, em nome dos seus valores e da proteção desse ideal de infância. Ao negar a agência das crianças e ao tratá-las como propriedades da família, a privatização da infância faz o contrário da proteção: as coloca sob maior risco.

Acontece que, a quase totalidade dos casos de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes acontece dentro de casa. Cerca de 90% dos casos acontecem no ambiente familiar. E, diferente do que querem fazer crer Damares e cia, tratar da sexualidade na escola e na cultura é um fator de proteção. Quanto mais as crianças e adolescentes alcançam espaços seguros e livres de preconceitos para debater a sexualidade, maiores as chances de combatermos efetivamente as violências sexuais que elas sofrem. Quanto menos a educação sexual for um tabu na sociedade, mais a prática da pedofilia será acuada. É preciso que consigamos travar esse debate no espaço público de forma honesta e madura.

O que o caso da menina do Espírito Santo revela é as fraturas do discurso contra a pedofilia dos setores religiosos. O pânico moral contra os debates sobre sexualidade e infância parece inócuo para enfrentar uma situação real de estupro de uma menina de 10 anos. Ao defenderem a privatização da infância como solução, os setores conservadores escolhem por serem coniventes com o tio, o padrasto, o avô, o pai e acabam por culpar as crianças e adolescentes pelas violências sexuais sofridas. Bolsonaros, Damares e cias demonstram, na prática, que seu discurso contra a pedofilia é vazio e ineficaz.

Gustavo Belisário é doutorando em Antropologia pela Unicamp, militante LGBT

e membro da Executiva Nacional da Insurgência.