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No acesso às vacinas, retrato da globalização dos extremos

30 de novembro de 2020

Mais um imunizante demonstra ser muito eficaz contra o coronavírus. Mas por desigualdade e falta de vontade política, centenas de milhares morrerão sem ter acesso a eles em tempo. E mais: na África, as vítimas esquecidas da malária.

 

Raquel Torres, Outras Palavras, 1 de novembro de 2020

 

Números impressionantes
A farmacêutica Moderna entrou ontem com um pedido de aprovação emergencial da sua vacina contra a covid-19 nos Estados Unidos. A solicitação vem logo depois de um novo anúncio dos resultados dos seus testes, ainda mais animadores do que os preliminares, divulgados no último dia 16. Na época, haviam sido detectadas 95 infecções entre os voluntários e a eficácia havia sido de 94,5%.

 

Agora são 196 casos confirmados – muito mais do que o mínimo de 151 estabelecido pelo protocolo. Entre eles, só 11 estavam entre os participantes que receberam a vacina, o que deixou a eficácia em 94,1% (bem próxima da identificada anteriormente). Mas o mais impressionante é que, entre os infectados que haviam recebido a vacina, nenhum desenvolveu a forma grave da covid-19, contra 30 no grupo do placebo. Ou seja, para prevenir infecções graves, a eficácia foi de 100%. Não houve nenhum efeito colateral grave.

 

É preciso fazer aquela ressalva que já se tornou habitual: essa foi mais uma divulgação via comunicado à imprensa. No entanto, é impossível não se empolgar com os números. Ainda mais considerando que, como já comentamos por aqui, essa vacina não precisa de temperaturas tão baixas para conservação, como a da Pfizer/BioNTech. Ela deve ser mantida a -20°C, mas pode ficar por até 30 dias em geladeiras comuns, entre 2°C e 8°C.

 

A empresa já disse que, além dos EUA, vai solicitar autorização para venda na União Europeia e enviar sua documentação para agências reguladoras de outros países.

 

O X da questão
As últimas semanas têm sido coalhadas de boas notícias sobre as vacinas e as primeiras aprovações emergenciais estão batendo à porta. A Pfizer espera conseguir a sua com a FDA (a Anvisa dos EUA) no próximo dia 10; para a Moderna, uma reunião com os reguladores dessa agência deve acontecer uma semana depois, no dia 17. Tudo indica que, de fato, pelo menos uma pequena quantidade de pessoas vai conseguir ser vacinada ainda este ano.

 

Porém, uma pergunta não deixa de pulsar: quem terá acesso às vacinas? Está bem estabelecido que, dentro de cada país, haverá estratégias para priorizar determinados grupos inicialmente, quando a quantidade de doses for limitada. Mas também achamos importante falar sempre sobre a distribuição global desses imunizantes, e uma reportagem publicada ontem na Nature faz essa discussão a partir dos dados disponíveis até agora.

 

Pfizer, Moderna, AstraZeneca e o Instituto Gamaleya, que desenvolve a Sputnik V, são os quatro fabricantes que já anunciaram algum resultado de fase 3 (lembrando que, no caso da AstraZeneca, os dados foram acompanhados por várias dúvidas pertinentes e uma necessária continuação dos ensaios). Somando suas estimativas mais otimistas de produção, elas pretendem garantir doses suficientes para imunizar cerca de um terço da população mundial até o fim do ano que vem. Só que metade dessa capacidade já foi encomendada pelos 27 países da União Europeia e outros cinco países ricos, que juntos têm 13% dos habitantes do planeta.

 

Claro, falta colocar no papel outras vacinas que estão em fase 3 de testes, como a CoronaVac. Se as seis principais candidatas forem incluídas na conta, pode haver vacinas para metade da população mundial. Mesmo assim, os países ricos vão continuar abocanhando metade das doses. Foram eles que, tendo dinheiro para isso, fizeram apostas em várias vacinas diferentes, garantindo um cardápio tão extenso quanto variado. O país com o maior número de doses negociadas por habitante é o Canadá, com quase nove por pessoa. Em seguida vêm os EUA (quase oito), o Reino Unido (seis) e a Austŕália (mais de cinco). O Brasil tem em torno de uma e, como dissemos ontem, o governo federal reconheceu que só pretende vacinar 80 milhões de pessoas por ano. O que dá menos de 40% dos brasileiros.

 

Quando se trata das vacinas mais caras (que, por enquanto, são também as que têm os melhores resultados), a desigualdade é ainda mais gritante. A Pfizer pretende produzir 1,3 bilhão de doses até o fim de 2021, mas prometeu 1,1 bilhão para EUA, União Europeia, Canadá, Japão e Reino Unido. A Moderna reservou toda a sua produção de 2020 (20 milhões de doses) para os EUA; no ano que vem, pretende fabricar entre 500 milhões e um bilhão de doses, mas, segundo o Global Justice Now, tem acordos para distribuir 750 milhões a países ricos.

 

É possível que muitas pessoas em países de baixa renda precisem esperar até 2023 ou 2024 para receberem algo, segundo estimativas do Duke Global Health Innovation Center em Durham, Carolina do Norte. Essas nações estão contando basicamente com a Covax Facility, o consórcio internacional que busca fornecer cobertura para pelo menos 20% das populações dos países participantes. Para um retorno à vida normal, a OMS diz que é preciso imunizar entre 60% e 70% das pessoas, de modo que as doses garantidas pela Covax, ainda que bem-vindas, não devem ser suficientes. Além disso, temos acompanhado a dificuldade de conseguir recursos para a iniciativa. Faltam, para o ano que vem, nada menos que US$ 5 bilhões.

 

Um detalhe importante: não sabemos quanto tempo vai durar a imunidade garantida por nenhuma das vacinas em testes. Se a vacinação precisar se repetir a cada ano, o problema será ainda mais grave.

 

Mais rápido
A Anvisa foi aceita para entrar em uma iniciativa global que pode agilizar o processo de certificação das vacinas contra a covid-19. O chamado PIC/S envolve mais de 50 países-membros e, nele, os padrões e práticas de uma agência passa a ser reconhecida pelas outras. Segundo a Folha, há um intercâmbio de documentos que pode reduzir o tempo de análise e a quantidade de inspeções necessárias.

 

Quem diria?
Um dia após a reeleição de Bruno Covas para a prefeitura de São Paulo, o governador do estado, João Doria, anunciou que todos os municípios vão regredir à fase amarela do plano de combate ao coronavírus. Haverá mais restrições a comércio, bares, restaurantes, academias e eventos culturais. Como nota o UOL, há 18 dias Doria afirmou que não aumentaria as restrições após o pleito… “Em nenhum momento nos pautamos por calendário eleitoral“, garantiu Covas, na GloboNews, mas não é fácil comprar essa ideia. “Da maneira que está sendo conduzido, logo após uma campanha eleitoral, que o que mais teve foi aglomeração, é, no mínimo, hipócrita“, diz n’O Globo o infectologista e diretor da Sociedade Paulista de Infectologia, Evaldo Stanislau de Araújo. Nessa e em outras reportagens, especialistas são unânimes ao afirmar que as medidas chegaram tarde.

 

O diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, demonstrou preocupação ao comentar ontem a situação brasileira. De acordo com ele, o país deve ser “muito sério” para lidar com o aumento das mortes que saltou aos olhos este mês.

 

Em tempo: está cada vez mais certo que vários estados vão precisar endurecer suas medidas de isolamento novamente se quiserem evitar desastres – para sermos mais exatas, isso já deveria estar acontecendo em parte do país. Mas pelo menos seis estados pretendem mudar (ou já mudaram) a classificação das escolas nos seus planos de contenção, incluindo-as como serviços essenciais para permitir que elas continuem abertas mesmo em estágios de maior restrição. Segundo a Folha, essa decisão já foi tomada no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo; em São Paulo, Ceará, Pernambuco e Sergipe, está sendo avaliada.

 

O platô da malária
“Morrerão mais pessoas [na África] de malária do que de covid-19 até ao final de 2020. A questão é: por que estamos dando o alarme sobre covid-19 ou ebola, mas parece tão normal que milhares de crianças morram de malária todos os anos?” – embora não negue os problemas do novo coronavírus, o questionamento de Matshidiso Moeti, diretora regional da OMS para África, tenta colocar o foco sobre essa doença que pode estar ainda mais negligenciada durante a pandemia.

 

O último relatório global da OMS sobre a malária, lançado ontem, traz informações preocupantes. Por um lado, houve grandes avanços nas últimas décadas: a distribuição de mosquiteiros tratados com inseticidas para populações de risco, o aumento dos diagnósticos e os avanços no tratamento levaram a quedas nas contaminações e mortes. Mas esse progresso estagnou. No ano 2000 havia 80 casos para cada mil habitantes em risco, e essa taxa chegou a cair para 57.5 em 2015; desde então, porém, estabeleceu-se um platô em torno deste número, que foi de 56.8 no ano passado. Já as mortes caíram muito – de 24.7 por cem mil habitantes no ano 2000 em risco para 10.1 em 2019 – mas, também nos últimos cinco anos, a curva está claramente menos acentuada. Nas Américas, em vez do platô, o que se vê é mesmo um aumento nos casos e mortes desde então, puxado principalmente pela Venezuela. Um dos motivos para isso é o financiamento global insuficiente. No ano passado, foi de US$ 3 bilhões, o que dá pouco mais da metade da meta de US$ 5,6 bilhões.

 

A malária matou 409 mil pessoas em 2019, sendo 385 mil apenas no continente africano (por covid-19, foram até agora 50 mil vítimas por lá). Existe um receio de que a pandemia piore a situação. O relatório prevê que uma redução de apenas 10% no acesso ao tratamento antimalária na África Subsaariana pode levar a 19 mil mortes a mais; uma queda de 50% nos tratamentos levaria a 100 mil mortes adicionais na região. “Isso não é algo novo. Quando tivemos a epidemia de ebola, tivemos muito mais mortes devido à malária do que ebola nos países afetados”, diz Pedro Alonso, diretor do Programa Global da OMS para a Malária.

O lugar dos países pobres na fila para a vacina da Covid-19

Infelizmente, embora a pandemia tenha tornado claro para todo mundo a interdependência global, parece que os mais pobres seguem sendo os que saem perdendo.

Clare Wenham e Mark Eccleston-Turner, El Diario, 18 de novembro de 2020

A notícia de que a farmacêutica estadunidense Pfizer e a empresa alemã de biotecnologia BioNtech haviam produzido uma vacina que tinha 90% de efetividade contra a COVID-19 foi logicamente recebida com aplausos, apesar da cautela. Nesta quarta-feira, a empresa divulgou novos dados que aumentam a eficiência para 95%, após a conclusão de estudos mais completos que os da semana passada.

A Pfizer afirma que pode fabricar até 50 milhões de doses até o final de 2020 e até 1,3 bilhão de doses em 2021. O desejo de que a vida retorne à normalidade fará com que a demanda por essas doses seja altíssima. Governos de todo o mundo já começaram a anunciar a seus cidadãos que receberão uma vacina para o Natal. Mas como funcionará a distribuição desse número limitado de doses, se a quantidade disponível for suficiente apenas para vacinar um sétimo da população mundial?

Países de renda alta como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e União Europeia reservaram pelo menos 500 milhões de doses da vacina. Esse número pode ser aumentado para 1 bilhão de doses por meio de acordos de compra antecipada, nos quais os países pagam para reservar vacinas a um preço acordado na tentativa de garantir acesso prioritário.

Durante a pandemia de gripe suína de 2009, esses tipos de acordos se generalizaram de tal forma que a maioria dos fabricantes alegou que não podiam fornecer 10% de seus estoques de vacinas às agências das Nações Unidas porque eram obrigados a cumprir compromissos pré-existentes com os países ricos. Nesse sentido, o "nacionalismo das vacinas" - a dinâmica que temos visto em ação este ano, na medida em que os países perseguem o interesse próprio em vez do bem comum mundial - não é algo novo.

Há anos, os países de renda baixa e média pressionam para conseguir a igualdade em acesso a tratamentos e vacinas, sabem muito bem que os acordos de mercado em que se baseia o sistema global sanitário favorecem os governos com maior poder aquisitivo. Essa mesma situação já era claramente evidente no acesso a tratamentos antirretrovirais para o HIV, nos anos 1990, e na controvérsia sobre a "soberania viral" da Indonésia, em 2007.

O programa COVAX
A possibilidade de os países ricos obterem uma vacina primeiro está sempre sobre a mesa. É por isso que a organização de saúde público-privada GAVI, a fundação CEPI e a Organização Mundial da Saúde criaram o mecanismo COVAX, no início deste ano. A COVAX foi criada para apoiar a distribuição equitativa de uma potencial vacina contra a Covid-19 por meio de acordos de compra conjunta que permitem a todos os países, independentemente de seus meios, comprar vacinas. É financiado tanto mediante a compra direta por países de alta renda, como pela cooperação para o desenvolvimento e as doações.

O objetivo da COVAX é conseguir vacinas suficientes para que todos os países participantes possam imunizar ao menos 20% de sua população. Os países ricos que contribuem com a COVAX utilizam uma apólice de seguro, para garantir o acesso em caso de descumprimento de acordos comerciais. Os países de renda mais baixa veem a COVAX como um salva-vidas que lhes dá ao menos algum acesso a qualquer vacina.

Mas a promissora vacina da Pfizer ainda não faz parte da COVAX (embora haja uma "expressão de interesse para um possível fornecimento"). Embora a GAVI tenha acordos para fornecer nove possíveis vacinas candidatas, incluindo a promissora vacina AstraZeneca/University of Oxford, o aparente êxito da vacina da Pfizer levanta questões mais profundas sobre como os países de baixa e média renda podem acessar as vacinas que tem dado bons resultados.

Mesmo se a COVAX negociasse agora com a Pfizer, não está claro que quantidade estaria disponível para o resto do mundo, uma vez que a maior parte do fornecimento potencial já está reservado. Também não se sabe se seria dada prioridade ao fornecimento aos países ricos com acordos de compra antecipada.

Permanecem por resolver algumas questões-chave: como as doses adquiridas por meio de acordos de compra antecipada serão alocadas, quem receberá os primeiros lotes e como o restante será compartilhado? Poderiam questões práticas, como a capacidade de um país de fornecer uma cadeia de ultrafrio - uma rede de refrigeração abaixo de zero que garante que a vacina não pereça - influenciar nas decisões para garantir que as doses disponíveis não sejam desperdiçadas?

Enquanto os países ricos se apressam para serem os primeiros na distribuição, devemos nos perguntar como a COVAX garantirá o abastecimento dos profissionais de saúde nas partes mais pobres do mundo que estão na linha de frente, neste momento.

É importante não esquecer que esta vacina não é a única em desenvolvimento. Atualmente, existem 10 ensaios em fase 3. De fato, nas 24 horas seguintes ao anúncio da Pfizer, o governo russo declarou que sua vacina Sputnik V também tem uma eficácia superior a 90%. A China implementou de forma similar o uso emergencial de seus principais projetos de vacina de forma voluntária.

Algumas análises políticas encontram paralelos entre a corrida global por vacinas e a corrida espacial, mas devemos ir além das antiquadas analogias próprias da Guerra Fria.

Em primeiro lugar, esta análise ignora o papel vital que desempenham os Estados de renda média no desenvolvimento de vacinas. Algumas das principais empresas biotecnológicas e a capacidade de fabricação estão no Brasil e na Índia.

Em segundo lugar, há uma diferença entre as vacinas candidatas patrocinadas pelo Estado (na Rússia e na China) e as de empresas multinacionais como Pfizer e AstraZeneca.

Terceiro, a verdadeira corrida não é sobre quem fabrica as vacinas, mas quem pode acessá-las, após fabricadas.

Infelizmente, embora a pandemia tenha tornado claro para todo mundo a interdependência global, parece que os mais pobres seguem sendo os que saem perdendo.

Clare Wenham é professora adjunta de política de saúde global na London School of Economics e Mark Eccleston-Turner é professor de Direito à Saúde Mundial, na Universidade Keele. A tradução é do Cepat.