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Nosso mundo capitalsta é o Mundo das Fortalezas excludentes

A Covid-19 tornou visíveis as duras realidades da desigualdade em todo o mundo. Qual futuro depois disso?

18 de julho de 2020

Shalmalli Guttal, Great Transition Iniciative, julho de 2020

Mundo das Fortalezas é um cenário pensado pelo Global Scenario Group, no qual as estratégias de dominação de hoje se revelaram inadequadas para enfrentar o crescente estresse ambiental e social, levando a uma crise geral e à erosão das normas civilizadas. À medida em que a crise global sistêmica se aprofunda, forças internacionais poderosas são capazes de impor ordem na forma de um sistema autoritário de apartheid global com elites protegidas por muralhas e uma maioria explorada e empobrecida no exterior.

Já estávamos a caminho de mudanças no Mundo das Fortalezas antes da COVID-19: regimes de direita, autoritários/fascistas têm sido capazes de capturar o poder político, com base no empobrecimento, ansiedades e frustrações resultantes do capitalismo global e da globalização corporativa, enquanto forças progressistas têm sido incapazes de unir a resistência e criar espaços para que sistemas alternativos floresçam.

A COVID-19 tornou visíveis as duras realidades da desigualdade em todo o mundo. Classe e privilégio social, raça/etnia, gênero, ocupação e idade determinam quem é mais vulnerável ao vírus e quem sofre os piores impactos da pandemia, incluindo medidas políticas socioeconômicas tomadas por governos para conter a doença. Embora a forma de transmissão do vírus seja relevante, as condições precárias de saúde sempre foram uma realidade e foram agravadas por desigualdades enraizadas, que determinam condições de trabalho e estilo de vida, além de dificultar o acesso à saúde, alimentação e acesso a estruturas preventivas, como por exemplo: abastecimento regular de água, saneamento, moradias que permitam o distanciamento, equipamentos de proteção individual (EPIs), etc.


A desigualdade também determina às respostas à pandemia. A resposta mais comum de muitos governos tem sido a restrição severa da circulação de pessoas e bens, restrição da prestação de serviços e a interrupção quase que total das atividades econômicas, incluindo a produção, armazenamento e distribuição de alimentos. Porém, sem testagem em massa, sem mapeamento da população e sem os devidos tratamentos necessários, pouco ou nenhum apoio para populações em situação de rua, que sequer possuem espaços seguros para se abrigar do tempo e da poluição, e daqueles da qual a perda de renda diária leva à fome. Em toda a Ásia, milhões de trabalhadores do setor informal, agrícola e da construção civil estão sem renda, abrigo, comida, água e acesso à serviços de saúde. Restrições à circulação, fechamento dos mercados locais, ausência de crédito etc, atingiram duramente os pequenos produtores rurais, preparando o terreno para a escassez de alimentos e ao aumento dos preços.


Os lockdowns têm sido particularmente brutais na Índia e nas Filipinas, onde têm sido aplicados através da presença policial. Na Índia, milhões de trabalhadores caminham durante dias para chegar a seus vilarejos, carregando seus filhos e poucos pertences, brutalizados ao longo do caminho por atos chocantes de violência policial e detenção em espaços precários. Nas Filipinas, mais de 30.000 pessoas foram presas por violações da quarentena e a violência policial contra “violadores da quarentena” estão aumentando, inclusive mantendo pessoas em celas originalmente construída para cães, debaixo de sol forte do meio-dia.


Sistemas de saúde e de bem-estar social exigem o fornecimento de bens essenciais, serviços, alimentação e abrigo adequados, ambientes seguros de trabalho e de vida, proteção social e direitos e liberdades fundamentais. Dada à seriedade da COVID-19 e as dificuldades resultantes do bloqueio, o acesso a informações precisas e atualizadas sobre a doença, as medidas necessárias para contê-la e tratá-la e as fontes de apoio médico, social e econômico assumem importância fundamental.


No entanto, não apenas as informações são escassas, mas governos estão tomando medidas para controlar o discurso público, usando a pandemia para aprofundar regimes autoritários e a retirada de direitos. Os estados de emergência decretados pelos governos lhes permitem controlar todos os aspectos da governança, administração e segurança sem nenhum controle democrático. Embora as ações variem entre países e governos, existem perigosos pontos em comum: controle total das alocações de recursos; liberdade para autorizar o uso de força letal; vigilância ilimitada das telecomunicações; controle das mídias convencionais e sociais; restrições à liberdade de expressão, movimento e reunião; suspensão das disposições constitucionais e dos devidos processos de justiça; além de poder para colocar em prática qualquer medida considerada necessária em estado de emergência.


Muitas destas políticas já estavam em ascensão antes do COVID-19. Agora, se justificam com o pretexto de "proteger o público". Em toda a Ásia, médicos, enfermeiros, trabalhadores da saúde, pesquisadores, jornalistas, advogados, influenciadores e usuários de mídias sociais, foram penalizados por compartilharem informações sobre as condições locais/nacionais ou por questionarem ações governamentais com o argumento de que estariam espalhando notícias falsas e criando pânico e agitação. Na Índia, o governo está usando o estado de emergência para alcançar objetivos políticos, além do fato de que as condições de vida nas prisões são extremamente precárias em meio a uma pandemia. Especialistas em saúde pública e direitos humanos denunciaram que as prisões e centros de detenção superlotados na Ásia são ambientes propícios para a disseminação do coronavírus. Detentos e agentes penitenciários nas Filipinas e na Índia, já testaram positivo. Igualmente alarmantes são as crescentes ondas de preconceito e discriminação social contra determinadas religiões.


Em tempos de crise, os direitos humanos, as liberdades civis e o controle democrático são as primeiras vítimas sistêmicas. Joseph Cannataci, o relator especial da ONU sobre o direito à privacidade, advertiu, recentemente em uma entrevista, que "as ditaduras e sociedades autoritárias muitas vezes começam diante de uma ameaça" e advertiu sobre a importância de estarmos vigilantes e de não abrirmos mão de nossas liberdades. Em 16 de março, Relatores de Direitos Humanos da ONU emitiram uma nota pedindo aos governos que: evitem o “aumento exagerado" de medidas de segurança; garantam que os direitos humanos estejam no centro dos esforços de saúde pública; e que não usem as medidas de emergência relacionadas à COVID-19 para atingir grupos particulares, minorias ou indivíduos, e que anulem conflitos.


Um dos maiores perigos das medidas adotadas durante circunstâncias excepcionais é que elas podem persistir indefinidamente. A vigilância digital - que já havia começado a se expandir ao longo dos últimos anos - está sendo cada vez mais utilizada para enfrentar a COVID-19 com o “consentimento” (ou ignorância) das pessoas, liderada por empresas de tecnologia digital. Muitos organismos que causam epidemias/pandemias permanecem em nossos ecossistemas e há razões suficientes para acreditar que haverá surtos futuros com mutações mais fortes. As experiências de enfrentar epidemias/pandemias do passado são importantes para enfrentar as do futuro. Mas não sabemos como os dados coletados hoje, através de tecnologias de vigilância, serão usados amanhã, especialmente quando não há garantias democráticas e quando liberdades civis estão cada vez mais ameaçadas.


Estamos numa época em que nossos sistemas estão sobrecarregados tentando lidar com um vírus poderoso e pouco compreendido, a mídia está repleta de teorias conspiratórias e narrativas enganosas, a discriminação e as perseguições políticas estão crescendo. Este é um momento em que nós, como público, podemos e devemos desenvolver e socializar nossas propostas para reconstruir uma estrutura pública forte e sistemas de saúde público, bens, serviços, proteção social, direitos humanos e democracia disponíveis para as populações mais vulneráveis: os precarizados, trabalhadores migrantes, pequenos produtores rurais, povos indígenas e, entre todos estes, as mulheres, que são geralmente provedoras de cuidados primários. Este é um momento em que podemos começar a transformar nossas sociedades e países em direção à igualdade, justiça e realização universal dos direitos humanos, através da construção de sistemas solidários, econômicos e políticos a partir da base.


Um cenário humano e justo pós-COVID exigirá mudanças fundamentais em nossas estruturas econômicas, institucionais e de governança: as corporações e os mercados financeiros não devem ser socorridos e o poder corporativo deve ser desmantelado - especialmente em setores com implicações de interesse público, por exemplo, alimentação e agricultura, medicamentos e saúde, água e saneamento, energia, comunicações, transporte e proteção ambiental. E devemos distinguir nossas estratégias progressistas para combater a globalização financeira e empresarial de regimes de extrema direita, que fomentam o racismo, o preconceito e a xenofobia, ao mesmo tempo em que aprofundam os laços com o capital transnacional.

Shalmali Guttal é Diretora Executiva do Focus on the Global South. É pesquisadora, escritora e desenvolve campanhas sobre questões de desenvolvimento econômico e social na Ásia. Os temas centrais deste trabalho são direitos da mulher, soberania alimentar, reforma agrária e conhecimentos naturais, sociais e comuns. Tradução: Vinícius Lobão