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Números de mortos na mídia têm efeito de banalizar a pandemia

Quando se afirma que nos próximos 20 dias vão morrer em São Paulo mais 11 mil pessoas, essas 11 mil mortes são colocadas como uma espécie de "meta macabra"

13 de junho de 2020

Ricardo Teixeira, 11 de junho de 2020

A Argentina tem aproximadamente a mesma população que os estado de São Paulo (45 milhões de habitantes). A COVID-19 matou até aqui 741 argentinos e praticamente 10 mil paulistas.

Ainda assim, o "gestão Doria" diz com tranquilidade e frieza técnica que mais 11 mil vão morrer nos próximos 20 dias. Está nos cálculos! Como se diz: favas contadas.

Essa frase não se segue de outra que diz: então, para evitar o máximo possível uma parte (boa parte) dessa mortes, nós decretamos "lockdown" em todo estado. Não, a frase que se segue apenas informa que essa é a conta, se for mantido os níveis de distanciamento atuais (50%).

Tudo é muito estranho ou deveria ser: o que se espera é a manutenção de um nível de distanciamento, que já é baixo (que já é uma boa banalização das mortes que poderiam ser evitadas por um distanciamento efetivo!), num momento em que a "gestão Doria" comunica medidas de relaxamento do distanciamento.

O raciocínio é estranho, mas aí descobrimos, na mesma matéria, que se trata de um "experimento": "só a prática dirá como os índices de isolamento social, vitais para o controle da doença, vão se comportar diante da liberação da abertura. Temos de monitorar. É preciso ver se, com a liberação, as pessoas vão para as ruas e as lojas, porque não aguentam mais (ficar em casa), ou se vão continuar em casa, porque têm medo da doença."

Pelo menos, parece que a resposta à dúvida que enseja o "experimento" está sendo respondida rapidamente: "Ruas lotadas em SP deixam autoridades de saúde perplexas e com temor".

Bem, feita a constatação empírica dos efeitos comportamentais da "comunicação de relaxamento", a lógica ditaria adotar medidas para elevar e não relaxar o distanciamento neste momento! Vamos ver...

Mas o que mais me impressiona e aterroriza nessa decisão de "relaxar o distanciamento" - para além do para-lógico, do que parece decorrer de uma lógica paralela, para além da "mão bem visível" do mercado em toda sua opulência burra e mortífera (que às custas de opor "economia" e "vida", vão conseguir destruir as duas) - é a corrosão da sensibilidade representada pelo aceitação de mortes que poderiam ser evitadas, por meios que dispomos para evitá-las.

Quando se afirma que nos próximos 20 dias vão morrer mais 11 mil pessoas, se nós continuarmos a fazer apenas o que vínhamos fazendo até aqui (que é bem menos do que poderíamos fazer e outros países fizeram), isso quer dizer que essas 11 mil mortes estão sendo colocadas como uma espécie de "meta macabra". Não faz sentido incluir mortes evitáveis na meta, não deveria fazer sentido...

Ricardo Teixeira é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo