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O “Capitalismo Tardio” como decifração da modernidade

6 de abril de 2023

Por Francisco Louça, esquerda.net. Abril de 2023.

Na semana em que se assinala o centenário de Ernest Mandel, Francisco Louçã desenvolve neste artigo o significado e a importância dos contributos teóricos de um dos economistas marxistas mais relevantes do século XX.

Quando, em 1961, Ernest Mandel entregou o manuscrito do seu Tratado de Economia Marxista[1] ao seu editor, era ainda relativamente pouco conhecido para além dos círculos militantes em que se empenhara desde jovem. Com 38 anos, e depois de uma longa preparação do livro, mobilizava um conhecimento profundo da teoria e das alternativas em disputa, mas também de dados empíricos e de contributos de outras ciências e, dessa forma, contrariava uma tendência entre os marxistas do pós-Segunda Guerra Mundial que, no contexto da Guerra Fria e depois do fracasso das revoltas em França e na Grécia, com a imposição da lei do império norte-americano no ocidente e com o reforço do estalinismo na URSS, se viraram para a filosofia e, sobretudo, para a estética, afastando-se da luta política e da análise das contradições do capitalismo triunfante. O livro teve um amplo sucesso desde a sua publicação em 1962 e afirmou Mandel como o mais talentoso e profundo dos economistas marxistas, o que se confirmaria ao longo dos anos seguintes.

No entanto, como nos refere no prefácio da primeira edição alemã de O Capitalismo Tardio, publicado em 1972 e que seria o seu contributo fundamental, o autor tinha ficado insatisfeito com o Tratado, em particular com o capítulo sobre a economia contemporânea, que seria “demasiado descritivo”, nomeadamente por não aprofundar a análise das etapas da evolução do capitalismo e, em particular, por não relacionar as leis do desenvolvimento do capital com o estudo das suas várias formas (o que viria a ser o seu principal ponto de divergência com as teorias monocausais das crises de sobreprodução, que eram dominantes ao longo da década de 1960 e anteriores). O caminho para o Capitalismo Tardio, que é o que está agora nas mãos do leitor ou da leitora, percorreu duas vias fundamentais. A primeira foi o aprofundamento do estudo de Marx, com a publicação d' A Formação do Pensamento Económico de Karl Marx, em 1968. Tratava-se de uma polémica contra a visão, então hegemónica, segundo a qual haveria dois Marx contrastados, um da juventude algo romântica e outro, o da maturidade, cientista e rigoroso. Althusser era à época um dos promotores desse entendimento sobre a “ruptura epistemológica” entre os dois Marx, mas não estava sozinho. Ora, como Mandel comprovou, o conceito de “alienação” percorre toda a obra e estabelece uma ponte entre as obras de juventude, como os Manuscritos de Paris (1844), e as obras conclusivas, como o Capital (1867). A publicação dos Grundrisse (1858), que só ocorre em 1939, no ano do início da Guerra, e sobretudo a sua edição de 1953, veio demonstrar luminosamente como Marx manteve ao longo de toda a sua vida os seus conceitos fundamentais sobre a natureza da exploração e como fez deles um manifesto de combate. A amizade de Mandel com Roman Rosdolsky, um dos fundadores do PC da Ucrânia, velho bolchevique e profundo conhecedor dos textos marxistas, terá contribuído para este percurso de estudo de Marx (Rosdolsky morreu em 1967, tendo sido publicado postumamente nesse mesmo ano o notável Génese e Estrutura do Capital de Karl Marx). Assim sendo, Mandel consolidou desde o Tratado o seu marxismo crítico e, assim, não só fiel à origem como potenciador e o seu desenvolvimento.

A segunda via que prosseguiu ao longo dessa década – que, não esquecer, foi também o tempo de Maio de 68, do outono italiano, de crescimento de resistências antifascistas no Estado Espanhol e sob outras ditaduras – foi o trabalho sobre a crise económica. As suas publicações seguintes, nesse âmbito, terão sido dois artigos no Socialist Register e no Temps Modernes, em 1964,[2] analisando a possibilidade de uma viragem económica. Esse esforço demonstrava como procurava aprofundar a sua interpretação das forças da crise. Foram estes dois processos intelectuais, o estudo do Marx menos conhecido e a discussão das contradições do modo de produção capitalista, que o levaram à Terceira Idade do Capitalismo, publicado inicialmente em alemão como Capitalismo Tardio.[3] Ambos os termos têm alguma ambiguidade, a que aliás o autor se refere no prefácio original: não se trataria de identificar uma nova época, nem um “neocapitalismo”, nem uma nova fase de um “capitalismo monopolista de Estado”, mas sim uma sequência temporal dentro da época do imperialismo. “Lamento, aliás, não ter encontrado melhor nome para esta época histórica do que este – insatisfatório porque unicamente cronológico e não sintético – de 'Spaktapitalismus', ou terceira idade do capitalismo”, escreve ele.[4]

O Capitalismo Tardio, que é também a tese de doutoramento que Mandel submeteu à aprovação da Universidade Livre de Berlim, onde era professor convidado (no mesmo ano ocupou um lugar na Universidade de Vrijen, em Bruxelas), foi escrito entre 1970 e 1972, quando a noção de uma crise sistémica profunda era ainda duvidosa mas começava a merecer atenção (em 1971 o sistema monetário internacional estabelecido em Bretton Woods fora destroçado por Nixon). O autor explicara as crises económicas no seu Tratado seguindo a ideia do eco-ciclo de investimento, não considerando então os períodos longos de transformação tecnológica e social. Ora, a partir de 1964, alargara a sua perspetiva e passar a estudar as obras de Kondratiev (1922, 1924 e 1926 artigos e o resumo do debate no Instituto da Conjuntura de Moscovo, que só fora publicado em 1928 em russo),[5] o confronto com Trotsky sobre o tema (o relatório de 1921 ao congresso do Comintern e a sua polémica de 1923 com Kondratiev)[6] e o contributo do mais heterodoxo dos economistas ortodoxos, Joseph Schumpeter (sobretudo o seu livro de 1939, Business Cycles).[7] A partir destes autores, que Mandel reinterpretaria propondo a sua própria teoria, o estudo das ondas longas do desenvolvimento capitalista passou a ocupar a sua agenda e tornou-se um dos acréscimos mais substanciais que este livro introduziu (em edições posteriores, também separaria o texto sobre ideologia e Estado em dois capítulos distintos, propondo-se desenvolver o tema, mesmo que só tenha esboçado esse trabalho).

As ondas longas e o capitalismo tardio

A constatação da existência de períodos longos de aceleração e desaceleração económica ao longo do século XIX e no início do século XX tinha sido reconhecida por autores muito diversos: Parvus (1901) e Van Gelderen (1913) ambos membros de partidos social-democratas, Bresciani-Turroni (1913, 1916), Pareto, que mais tarde viria a ser nomeado senador vitalício por Mussolini (1913) e Tonelli (1921), na academia. Outros economistas referiram-se à mesma questão (Aftalion, Tugan-Baranowski). Estes vários economistas concordavam com a cronologia dos longos períodos de expansão e contração e reconheciam a necessidade de combinar factores económicos, políticos e sociais na sua análise. No entanto, as explicações eram contraditórias: para Pareto, as ondas seriam o resultado de conflitos dentro da elite dominante, particularmente entre especuladores e rentistas, ao passo que, para Turroni e Tonelli, como para Parvus e Van Gelderen, seriam o efeito de lutas sociais determinadas pela disputa sobre a taxa de lucro.

Van Gelderen seria, entre estes autores, o que proporia uma tese mais elaborada, tendo sido seguido por De Wolff, seu amigo.[8] Kondratiev, especialista em estatística, começou a dedicar-se ao tema em 1922 e não conhecia os escritos de Gelderen, mas alcançou a mesma conclusão.[9] Trotsky, que conheceria o conceito de Parvus, seu camarada, sobre períodos de Sturm und Drang,[10] de expansão e depressão nas economias capitalistas, referiu-se ao assunto no seu discurso no congresso de 1921 do Comintern, reconhecendo diversos estádios e “conjunturas”, na evolução económica. Pretendia, desse modo, acrescentar um elemento de crítica à posição da ultra-esquerda da Internacional, em particular de Bela Kun e da liderança do KPD, que apresentavam a tese de iminência da revolução dado o colapso esperado do capitalismo, e que recomendavam uma ação ofensiva, sobretudo na Alemanha. Kondratiev publicou o seu primeiro estudo em que apresentou a hipótese de um movimento estatisticamente detetável de variações longas no desenvolvimento capitalista em 1922. No entanto, no ano seguinte, Trotsky criticou-o, usando dados do Times londrino para identificar uma “curva do desenvolvimento capitalista”, que seria modificada por acontecimentos exógenos, como revoluções, guerras e decisões políticas. Criticava assim a tentativa de endogeneizar todos os fatores políticos e de ignorar a autonomia da esfera social em relação à economia, ou seja, o papel da estratégia e dos partidos. Kondratiev terá ficado surpreendido por esta crítica, dado que se sentia próximo da abordagem do discurso de 1921, e não compreendeu que o alvo de Trotsky passara a ser outro setor do seu próprio partido: a tese de Bukharine sobre a estabilização do sistema, no polo oposto do debate anterior. A visão de Trotsky, que terá de algum modo influenciado a leitura de Mandel, era que, se existe uma tendência de desenvolvimento económico, são fatores políticos exógenos que determinam os pontos de inflexão, ou que as contradições internas movem um “equilíbrio dinâmico” através de rupturas exogenamente determinadas. Ou seja, a política manda.

De algum modo, essa interpretação impôs-se tragicamente na vida destes homens: em 1928, Kondratiev foi preso e, embora ainda continuasse a escrever na prisão, deixou de ter capacidade de comunicação com os seus colegas, e foi fuzilado ao fim de oito anos de cadeia; Trotsky seria pelo mesmo período afastado do partido e exilado, e mais tarde assassinado.

Os contributos teóricos de Mandel

Este livro de Mandel sobre a “terceira idade” constitui o seu magnum opus e a sua mais sistemática análise global do capitalismo e das suas mudanças estruturais. Ao tempo da sua publicação e nos anos seguintes, algum do debate sobre a existência ou não destas ondas longas, já nutrido, concentrava-se na utilização de técnicas estatísticas várias para medir os desvios da série real em relação a um trend teórico, através da decomposição de séries (como o tinham feito Kondratiev e Oparin e assim prosseguiram Kuznets, Imbert, Dupriez, Duijn, Kleinknecht, Menshikov, Ewijk, Zwan, Hartman, Metz, Reijnders, etc.).[11] Pelo contrário, Mandel baseia-se no estudo das contradições internas do modo de produção capitalista para explicar a passagem de uma fase de expansão para outra de depressão, sugerindo que choques sistémicos serão necessários para gerar nova fase de expansão (a fase A), uma vez que se tenha instalado um período longo de retração, ou de desaceleração da taxa de lucro e da de acumulação, mas que a viragem para a fase de contração (a fase B) é gerada pelo próprio movimento da acumulação e das suas contradições. Assim, não nos propõe uma simples síntese entre Trotsky e Kondratiev, mas antes uma teoria diferente e original, que incorpora a autonomia do processo político no quadro das “leis de desenvolvimento”, ou tendências fortes da evolução do capitalismo, que, como já se verá, são “parcialmente indeterminadas”, e considera a “sociedade como totalidade orgânica estruturada, movida pelo peso das contradições internas”.[12] Assim, Mandel foi um dos primeiros autores a desenvolver uma explicação historicamente integrada destes processos. Foi nisso seguido por alguns outros autores, no período de maior florescimento do estudo sobre as ondas longas: Gordon (e os primeiros trabalhos da escola de Social Structures of Accumulation), alguns dos regulacionistas franceses, também Shaikh, Wallerstein, Freeman, Perez, Tylecote, Rosier, Dockès, Kleinknecht e historiadores e estatísticos das fases do capitalismo, como Maddison.

Há uma razão teórica forte para que longos períodos da história económica não sejam representados pelas mesmas relações estruturais, calculadas através de uma regressão ou de outro instrumento de decomposição estatística: é que as mutações são permanentes no processo económico, seja na inovação tecnológica, nos conflitos nas relações laborais, nas mudanças das instituições políticas, ou da estrutura e dimensão dos mercados, ou ainda nas transformações nas estratégias de grupos sociais. As premissas de equilíbrio estão destinadas a fracassar e os métodos econométricos tradicionais, particularmente os que assumem o princípio de estabilidade causal e intertemporal, são respostas erradas a uma questão errada.

A decomposição estatística das séries foi inspirada pelo trabalho pioneiro de Ragnar Frisch, que num capítulo publicado em 1933 (o mesmo que lhe valeria o primeiro Prémio Nobel da Economia, que foi estabelecido em 1969), propunha a distinção entre um sistema de impulso (gerado por choques exógenos não sistemáticos) e um sistema de propagação (que seria a representação do mecanismo da economia, determinando um efeito de dissipação dos choques). Embora Frisch não tenha procedido a uma análise estatística com dados empíricos, mas antes a uma simulação numérica, tanto porque desconfiava da abordagem probabilística que servia de base para as regressões e cálculos estatísticos, quanto por achar que não seria possível obter prova a estatística da “autonomia”, ou seja, da robustez de comportamento de variáveis essenciais, propôs esta dicotomia como base da análise dos ciclos.[13] Com o sucesso deste modelo ficou estabelecido, e depois prolongado na epistemologia positivista da econometria tradicional, que a causalidade deve ser formulada como uma causa próxima exógena, uma proposição que incomodava Schumpeter, o correspondente de Frisch na preparação deste texto, que, ao contrário do seu colega, adivinhava que o capitalismo gera as suas próprias inovações e as suas próprias crises e que tal é a sua natureza. No sentido contrário e ao discutirem o notável livro de Schumpeter sobre os ciclos económicos, Business Cycles, alguns economistas distintos criticaram-no por não especificar essas relações mecânicas de causalidade.[14] Schumpeter não o queria fazer, dado que considerava que o capitalismo é um processo adaptativo, o que Mandel retoma com o cuidado da evidência detalhada em Terceira Idade, mostrando o impacto e a adaptação de sucessivos “sistemas de máquinas”.[15] 

Ora, a incapacidade dos métodos analíticos tradicionais em identificaram tanto o mecanismo equilibrante quanto a regularidade desses choques exógenos, que seriam causais, deriva não tanto da realidade mas antes da forma desses mesmos métodos para analisar dados. Por outro lado, as fronteiras da exogeneidade e da endogeneidade são definidas pelo tipo de modelo em consideração e podem portanto variar, não sendo necessariamente uma consequência da realidade. O que não é possível é exigir um modelo económico puramente endógeno, por duas razões, sendo a primeira que não basta a economia para explicar o capitalismo. Em segundo lugar, como Polanyi demonstrou no The Great Transformation (1944), a imagem de um funcionamento independente e mecânico da esfera económica, impondo-se à sociedade, é uma projeção ideológica do liberalismo para a justificação do mercado imperfeito, um factóide da imaginação. De facto, a exigência de uma teoria que explique tudo é absurda: para que uma explicação com formalização endógena completa fosse possível, teria que incluir todas as variáveis e ainda a pretensão extravagante de que as forças económicas determinam todos os processos sociais, guerras e revoluções, bem como o próprio contexto institucional em todos os momentos. Explicar tudo por um mecanismo total é demasiado para qualquer teoria. Do outro lado, uma explicação puramente exógena seria redundante e irrelevante, porque explicaria acontecimentos pelos próprios acontecimentos. Ou seja, o debate sobre a endogeneidade ou a exogeneidade dos fatores causais, que foi resumido por Mandel e que condiciona os horizontes de muitos cientistas, é um artifício de um mundo em que a modelização passou a ser a única forma legítima de interpretação científica. Deste modo, a discriminação exaustiva da endogeneidade ou a explicação pela determinação causal exógena são soluções autodestrutivas.

Mandel sugeriu uma alternativa, uma economia realista baseada no conhecimento da história. Por isso, no capítulo quatro deste livro critica tanto Kondratiev como Schumpeter, por não usarem a taxa de lucro (ou a acumulação) como o indicador fundamental da dinâmica temporal do capitalismo, e propõe-se assim estudar as várias formas do capital e as suas transformações da segunda metade do século XX. Ao longo da última quinzena de anos da sua vida, dedicou-se a aprofundar esse tema, que começou a ser discutido nesta Terceira Idade.

“Determinismo paramétrico” e variáveis semi-autónomas

O problema viria a ser retomado por Mandel em 1978, nas suas conferências Alfred Marshall na Universidade de Cambridge, que foram publicadas em 1980 como The Long Waves of Capitalist Development, e sobretudo depois num texto de 1985, que se dedicou a estudar as “variáveis parcialmente independentes” e que foi incluído como anexo numa recente edição francesa da Terceira Idade. Nesse texto, estuda a “lógica interna na análise marxista clássica”, notando que algumas variáveis devem ser consideradas exógenas no longo prazo, mas que, não resultando de um simples formalismo que estabeleça a fronteira endógena-exógena (ou seja, o que é ou não incorporado e definido como consequência do processo formalizado num dado modelo), são geradas a curto e médio prazo pelo próprio processo económico. A isso Mandel chamou as “variáveis parcialmente independentes (autónomas)”, representando “todas as proporções básicas do modo de produção capitalista”,[16] como sejam a composição orgânica do capital (volume e distribuição do capital) e a sua estrutura (proporção de fixo e circulante e sua distribuição entre setores), a taxa de mais valia, a taxa de acumulação (e consumo produtivo e improdutivo da mais valia), a evolução do tempo de rotação do capital, as dificuldades de realização, a troca entre departamentos, incluindo as novas formas do setor económico da indústria militar ou da finança. Com este conceito, Mandel pretendia evitar a armadilha do simplismo dos modelos analíticos e sintetizar o sistema em que essas variáveis são determinadas, ou seja, as fronteiras em que ocorrem os conflito pelo controlo, coordenação e poder.[17] 

Essas variáveis descreveriam processos automáticos na estrutura económica: “Podem determinar a velocidade, a direção, o grau de homogeneidade/heterogeneidade do desenvolvimento. Não podem alterar a natureza do sistema ou inverter as suas tendências históricas gerais (…). Para além da lógica interna do sistema, há fatores exógenos que estão ativos, que parcialmente codeterminam o desenvolvimento do sistema, pelo menos a curto e médio prazo”.[18] Mas o texto acrescentava que a lógica interna está contida pela estrutura paramétrica que delimita as suas trajetórias possíveis e que as grandes mutações sistémicas ocorrem nesse espaço: “Então, qualquer interacção entre as forças exógenas e endógenas é sempre limitada por esses parâmetros, por essas restrições, e atinge os seus limites quanto ameaça eliminar os mecanismos básicos do sistema”.[19] 

Deste modo, Mandel afastou-se, e bem, dos debates clássicos da primeira metade do século XX, em que pontuaram Luxemburgo, Hilferding, Grossmann ou Bukharin, que baseavam as suas análises dos ciclos nos esquemas de reprodução do Capital. Mandel criticou esta estratégia analítica, dado que se trata de estudos baseados na simplificação do equilíbrio da reprodução, são fotografias estáticas e, em contrapartida, devem-se estudar as tendências inerentes à ruptura desses equilíbrios, como a relação entre fatores causais e só compreensíveis em contexto concreto. Sem história, a teoria económica é incapaz de ver a realidade.

Michal Kalecki tinha tratado um problema similar num dos seus últimos artigos, em 1968, sugerindo a definição de “variáveis semi autónomas” para representar as forças exógenas no contexto dos modelos matemáticos, mas que deveriam ser explicadas pela teoria, e formulou assim os seus modelos de crescimento e crises. Abandonou deste modo a perturbante exigência de endogeneização completa da relação entre variáveis, embora também assinalando que um modelo limitado a algumas variáveis nunca poderia representar a realidade. Preferia por isso modelos flexíveis, assumidamente limitados, mais realistas e parciais, suportados por uma teoria geral que interpretasse as suas limitações e resultados. Não desenvolveu este tema, mas a sua intuição foi notável.[20] É por reconhecer estas dificuldades que o conceito de variáveis parcialmente independentes é tão importante, pois desenvolve a condição da história no marxismo: em vez de simplificação e determinismo, reincorpora a sucessão de modos de produção numa história indeterminista e como totalidade orgânica, que analisa processos e não o equilíbrio, usando a dialética e não a invariância causal, ou determinações concretas e locais e não abstratas. Talvez por isso, numa síntese autobiográfica nos derradeiros anos da sua vida, escrita para Biographical Dictionary of Dissenting Economists, Mandel sublinha que uma das suas contribuições principais foi a noção de “determinismo dialético (paramétrico)” oposto ao “determinismo mecanicista”,[21] ou seja, sublinhou a sua oposição ao positivismo e ao marxismo dogmático.

Deste modo, notou que as forças exógenas não são realmente independentes e devem ser descritas como “variáveis parcialmente autónomas”, ou seguindo Kalecki, semi-autónomas. Kalecki e Mandel sugeriram assim que a análise da sociedade é irredutível a simplicidade e reducionismo é um fracasso. Este é o enigma das ondas longas, que são períodos específicos da história do capitalismo: as teorias tradicionais não podem detetar nem um mecanismo nem uma regularidade, que são conceitos imaginados para ignorar a história e descobrir, em seu lugar, alguma continuidade e equilíbrio.

Complexidade e história

Ao resolver este puzzle teórico e ao transformar o seu marxismo numa decifração da modernidade, Mandel mostrou como o contexto das ondas longas permitia simultaneamente uma rejeição do mecanicismo e perceber uma história aberta. Assim, é a luta de classes que determina a história e estes grandes períodos, como Maddison tinha sugerido, são “fases do desenvolvimento capitalista”, que formam e exigem “choques sistémicos” - a luta de classes, mais uma vez.[22] Contra qualquer determinismo tecnológico e estudando a aceleração da inovação e as tranformações do capital fixo, ou outras condições para modificar a composição orgânica do capital e a taxa de lucro, sobretudo as que resultam da indeterminação do conflito social, Mandel e Chris Freeman aproximaram-se nesta visão do que o segundo descrevia como a tensão entre o sistema tecno-económico e a estrutura socio-institutional, o que pode evitar, atrasar ou potenciar o impacto dessas mudanças e determinar o processo oscilatório.[23]

Reivindicava deste modo a incorporação da economia como uma ciência social e o marxismo como uma teoria crítica, ou seja, como economia política no sentido clássico. O trabalho de Mandel é um exemplo paradigmático dessa abordagem, que apresentava claramente como o projeto de compreender e agir na realidade social e económica, incluindo na sua dinâmica interna, nos seus fatores ambientais e nas mediações políticas e institucionais. Consciente da dimensão desse trabalho, afirmava que “podemos por isso aceitar a ideia de que as ondas longas são muito mais do que subidas e descidas rítmicas da taxa de crescimento das economias capitalistas. São períodos históricos distintos num sentido real”.[24] É essa integração teórica que faz da sua teoria um desafio permanente, que não busca uma sobreposição ou soma de causas, mas antes uma história concreta dos conflitos, baseada na análise do poder e da coordenação nas economias e sociedades. É nessa complexidade que decorre a modernidade tão sofrida em que vivemos.

Notas:

  1. ^ Ernest Mandel (1962), Traité d'Economie Marxiste, Paris: Julliard, 2 volumes.
  2. ^ Ernest Mandel (1964), “The Economics of Neocapitalism”, Socialist Register, 1, pp.56-80; (1964), “L'Apogée du Neocapitalisme et ses Lendemains”, Temps Modernes, 20:219-220, p.193-210. Mandel abandonaria logo depois o conceito de “neocapitalismo”, mas a importância destes dois artigos é que são os seus primeiros textos a antecipar o esgotamento do longo ciclo expansivo.
  3. ^ O título “A Terceira Idade do Capitalismo” foi o adoptado na edição francesa, com a anuência do autor. É certo que o título original, “O Capitalismo Tardio”, refletindo alguma influência da Escola de Frankfurt, que usava o termo, foi visto por Mandel como sinónimo do da versão francesa, aqui seguida. Outras edições escolheram traduzir literalmente o título original (a brasileira, por exemplo).
  4. ^ Ernest Mandel (1972/1997), Le Troisième Âge du Capitalisme, Paris: Ed. La Passion, p.16.
  5. ^ Os principais textos de Nikolai Kondratiev, incluindo as suas tabelas estatísticas, só foram publicados em francês em 1992 (ed. Louis Fontvieille, ed., 1992, N.D. Kondratieff, Les Grands Cycles de la Conjoncture, Paris: Economica). A edição inglesa, incluindo vários outros textos inéditos, é de 1998 (Londres: Pickering & Chatto, em 4 volumes).
  6. ^ O relatório de Leon Trotsky ao Comintern foi publicado em The First Five Years of the Communist International, 1945, New York: New Park, vol. 1, pp. 174-226. A sua crítica a Kondratiev está em “The Curve of Capitalist Development”, 1973, in Problems of Everyday Life, New York e Londres: New Park, pp. 273-80. O debate no Instituto da Conjuntura só era então conhecido pelo resumo enviesado de George Garvy (1943, “Kondratieff’s Theory of Long Cycles”, Review of Economics and Statistics, 25:4, pp.203-220). Nesse debate, um dos investigadores do Instituto da Conjuntura dirigido por Kondratiev, Oparin, apresentou uma interpretação alternativa em relatório a um seminário em 1926, divergindo sobre o método estatístico do seu diretor e criticando a arbitrariedade da escolha das equações, mas assumindo que existiriam pontos discretos de equilíbrio e uma taxa “natural” de crescimento das reservas de ouro, seguindo uma teoria monetarista.
  7. ^ Joseph Schumpeter (1939), Business Cycles, New York: Martino, reedição de 2014.
  8. ^ Van Gelderen só escreveu uma série de artigos sobre as ondas longas (“Springvloed - Beschouwingen over Inclustrieele Ontwikkeling en Prijsbeweging”, 1913, no Die Nieuwe Tijd, no. 4, 5, 6, Amsterdam). As suas ideias foram depois desenvolvidas por um amigo, De Wolff, mas ambos escreviam em holandês e os textos ficaram desconhecidos da sua própria e das gerações seguintes. Depois de publicar estes artigos, Van Gelderen não voltou ao tema e depois a tragédia interrompeu a sua vida (suicidou-se em 1940 quando os nazis ocuparam o seu país). Kondratiev e os outros participantes no debate de 1926 não conheciam estas contribuições, que só foram publicadas em inglês em 1996 (por Christopher Freeman, ed., 1996, Long Wave Theory, Aldershot: Elgar).
  9. ^ A sua cronologia dessas mudanças na tendência era a seguinte: 1781-1851, 1851- 1873, 1873-1894, 1894-1913,1913-... Isto corresponde aproximadamente às cronologias dos autores anteriores, como a adoptada pelos italianos e por Van Gelderen, que Trotsky provavelmente desconhecia. A coincidência de tantos autores diferentes sobre a mesma cronologia sugere que, mesmo trabalhando independentemente, se lhes impunham características evidentes do desenvolvimento do capitalismo no século XIX.
  10. ^ Alexander Parvus (1901), “Die Handelskrisis und die Gewerkschaften”, in Parvus et al., Die langen Wellen der Konjunktur, Berlin, 1972.
  11. ^ Discuti as polémicas sobre Kondratiev e o contributo de Mandel nomeadamente em Louçã (1997), Turbulence in Economies, Aldershot: Elgar; (1999), “Ernest Mandel and the Pulsation of History”, in Achcar, Gilbert (ed.), The Legacy of Ernest Mandel, London: Verso, pp. 104-118; (1999), “Nikolai Kondratiev and the Early Consensus and Dissensions about History and Statistics”, History of Political Economy, 31:1, pp. 169-205; (1999), “An Economist at the Crossroad of the Century”, recensão de “Works of Nikolai Kondratiev”, Journal of the History of Economic Thought, 21:2, pp. 203-9; (2012), “Nikolai Kondratiev and Long Waves in Recent Dictionaries and Encyclopaedias”, in Besomi, Daniele (ed.), Crises and Cycles in Economic Dictionaries and Encyclopaedias, pp.443-61, Londres: Routledge; e (2021), “As Time Went By- Why is the Long Wave so Long?”, Journal of Evolutionary Economics, 31(3): 749-71.
  12. ^ “Partially Independent Variables and Internal Logic in Classical Marxist Economic Analysis”, primeiro publicado in Social Sciences Information 14(3), 1985, pp. 485-505, p.474; reimpresso in (1992), Himmelstrand, Ulf (ed.), Interfaces in Economic and Social Analysis, London, pp. 33- 50. É citada a versão de 1992, p. 37.
  13. ^ Agnar Frisch (1933), “Propagation Problems and Impulse Problems in Dynamic Economics”, in K. Koch, ed., Economic Essays in Honour of Gustave Cassel, London: Cass, pp. 171-205. É de assinalar que, apesar deste modelo, tanto Frisch quanto Tinbergen, o físico holandês que partilhou com ele o primeiro Nobel da Economia, estavam convencidos da existência dessas ondas longas na economia e defenderam essa ideia ao longo das suas vidas.
  14. ^ Simon Kuznets (1940), “Schumpeter's Business Cycles”, in American Economic Review 30, pp. 257-71; Oskar Lange (1941), “Schumpeter's Business Cycles”, in Review of Economic Statistics 23, pp. 190-93.
  15. ^ Como acontece com todas as análises antecipatórias, a de Mandel revelou algumas imprecisões. Algumas críticas assinalaram que o que considerou ser a “terceira revolução tecnológica” (desde o final da Segunda Guerra Mundial), consistindo na generalização da energia nuclear, no processo de automação e na eletrónica (Troisième Âge, pp. 120-21), ignorou que as primeiras gerações da eletrónica não foram tão impactantes como a difusão de novos bens de consumo duradouro. A (micro)eletrónica de hoje poderia vir a ser base técnica de uma nova expansão, mas nem o seu efeito económico era evidente nas décadas de 1980 e 1990, nem ainda estão reunidas as condições institucionais e sociais para essa expansão. Mas, como é bom de ver, A Terceira Idade do Capitalismo foi publicado só um ano depois da invenção do microprocessador e o seu potencial só se tornou evidente muito mais tarde. Por outro lado, Mandel sugere o ano de 1968 para o fim da fase A da quarta onda longa, admitindo um critério político dominante, dado que a crise do sistema monetário internacional e a recessão geral que encerrou os trinta anos de expansão só ocorreria no início e em meados da década seguinte.
  16. ^ Mandel, 1992, p.38.
  17. ^ Nem a origem nem o conteúdo deste conceito são claramente afirmados. Numa outra carta privada ao autor (9 Setembro 1994), Mandel apresentou o conceito como a expressão da incerteza na luta pelo poder. Numa outra carta ao autor (3 março 1995), Mandel referiu-me que estas “variáveis parcialmente autónomas” refletem a incerteza e determinação complexa da evolução social, no contexto das limitações históricas. Por isso, incluiriam fatores políticos e económicos que são parte do conflito social e da história real. Presumo que o conceito tenha sido influenciado por investigações contemporâneas sobre evolução em biologia e processos dinâmicos. Assim, no início dos anos 1980, Levins e Lewontin tinham demonstrado que a estabilidade de um sistema evolutivo dependia de processos de feedback e de parâmetros que governam a taxa de evolução e constituem as suas fronteiras. Ao mesmo tempo, Prigogine e Isabelle Stengers, e estou certo de que Mandel conhecia os seus trabalhos, provaram que a mudança de parâmetros pode provocar o caos e gerar complexidade, ou novas formas de ordem. A introdução dos conceitos de complexidade, tempo, incerteza, ordem e desordem, entropia e mutação, foi desde então lida nas ciências sociais como um contributo relevante contra o mecanicismo positivista. Mandel acompanhou e, em alguma medida, antecipou essas correntes.
  18. ^ Mandel, 1992, p.37
  19. ^ Ibid., p.39.
  20. ^ Michael Kalecki, “Trends and Business Cycles Reconsidered”, Economic Journal 78, 1968, pp. 262-76.
  21. ^ Mandel (1992), in Arestis, Sawyer, eds., A Biographical Dictionary of Dissenting Economists, Aldershot: Elgar, p. 340.
  22. ^ Angus Maddison (1991), Dynamic Forces in Capitalist Development, Oxford: Oxford University Press; Mandel (1995), Long Waves of Capitalist Development, Cambridge: Cambridge University Press, p. 141, n. 19, primeira edição 1980. Esta ideia já estava presente no livro de 1972 (Mandel, Troisième Âge, p. 139).
  23. ^ Escrevi com Chris Freeman uma análise das ondas longas em 2001, publicado como As Times Goes By – From the Industrial Revolutions to the Information Revolution, Oxford: Oxford University Press.
  24. ^ Long Waves, p. 82.