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O PT e a construção de uma sociedade neoliberal no Brasil - 2

19 de maio de 2021

Parte 2

6. Deslocamentos do registro de esquerda

      a. A questão ambiental

      b. A luta contra as opressões

      c. A relação democrática com o poder político e a coisa pública

7. Era possível ser diferente?

6. Deslocamentos do registro de esquerda 

Esquerda e direita são, desde seu nascimento, posições historicamente condicionadas, remetendo sempre para as formações sociais onde elas se determinam reciprocamente. Pobres e ricos, camponeses e latifundiários, proletários e burgueses, a nação e seus opressores são situações relacionais que se organizaram e reorganizaram, frequentemente se somando, para definir o lugar político denominado de esquerda. No caso brasileiro, a esquerda que, depois dos anos 1920, teve no PCB sua coluna vertebral, identificou-se também com o industrialismo desenvolvimentista contra o agrarismo constitutivo do país, ideal retomado pela nova esquerda dos anos 1970. Mas na medida em que a sociedade brasileira se tornou essencialmente urbana, integralmente capitalista e fortemente conectada e globalizada, de um lado, e em que o neoliberalismo efetuou sua obra desagregadora das formas de sociabilidade anteriores (incluindo das solidariedades de classe recentes), de outro, questões que antes não estavam colocadas ou eram ignoradas pela esquerda tornaram-se centrais para as lutas sociais e de emancipação das novas gerações. Três delas parecem ser muito evidentes. 

a. A questão ambiental

Uma das transformações mais expressivas das últimas décadas foi, frente à escalada da crise ecológica, o crescimento da consciência ambiental. Esse despertar foi registrado pela Conferência da ONU Rio-92 e se tornou forte entre a população brasileira mais informada. Há um abismo entre a crescente sensibilidade ambiental de nossa época e o produtivismo predador tanto das classes dominantes do país (em especial suas frações agrárias e mineradoras), quanto da esquerda prisioneira de uma visão produtivista e nacionalista do marxismo. O recente episódio da Operação Carne Fraca, investigação desencadeada contra grandes corporações de carne como a JBS e BRF, em que amplos setores da esquerda se posicionaram em defesa das empresas e da “economia nacional” é uma ilustração grotesca dessa cegueira, já que se trata do setor mais predatório ambiental e socialmente do país, principal responsável pelo desmatamento da Amazônica e frequentemente acusado do uso de trabalho escravo. 

Parte importante daquilo que se designa no Brasil como desenvolvimento resultou da predação e do saque descomunais da majestosa fauna, flora e biomas existentes no território brasileiro. Isso se deu não apenas para a acumulação primitiva de capitais na Europa, mas também como uma escolha consciente das gananciosas e arrogantes classes dominantes locais, com uma colossal destruição de vidas humanas, de modos de vida e de riquezas não-mercantis pela imposição de formas de trabalho compulsório, recurso generalizado à violência, hierarquias excludentes e expropriação das populações de seus territórios.

A predação da natureza, marca existencial das elites agrárias no Brasil, segue vigente no saque dos territórios e na destruição da vida. A busca da modernidade acelerou enormemente esta devastação, com a capitalização da grande agricultura exportadora e da mineração, a construção de usinas e estradas, a expansão urbana descontrolada, inúmeras atividades manufatureiras, como as da indústria do petróleo, química, papel e celulose. Trata-se de reconhecer, sem idealizarmos uma inexistente “natureza intocada”, que grande parte do que é apresentado como progresso tem, dessa ótica, um caráter profundamente regressivo. Com a agricultura de exportação e a mineração no centro da expansão recente da economia, estes problemas escalam, atingindo dimensões paradoxais. 

Eduardo Gudynas e Alberto Acosta chamam a atenção para a limitação de políticas sociais de redução da pobreza e redistribuição que dependem dos recursos decorrentes da reprimarização da economia, do “novo extrativismo”. Manteve-se uma modalidade de acumulação de origem e natureza colonial no trânsito do extrativismo tradicional ao neoextrativismo redistributivo ou progressista. É um modelo focado no crescimento mediante a apropriação ampla de recursos naturais, em redes produtivas pouco diversificadas voltada à exportação. Os centros urbanos, inseridos nas lógicas de consumo capitalista, não sofrem diretamente os impactos do extrativismo. Enquanto isso, os territórios em que se realizam as atividades extrativas assistem a degradação ambiental e dos modos de vida locais, com a violência atrelada a uma estratégia de criminalização do protesto social contra o extrativismo. 

Deram-se ganhos para a população mais pobre do continente com do neoextrativismo redistributivo e a desigualdade no acesso ao consumo foi reduzida. Mas esse processo estancou-se, indicando que o modelo atingiu seu teto e que serão necessárias transformações estruturais para seguir avançando. Grupos historicamente marginalizados por sua dupla condição – étnica e de classe – seguem sendo alvo de formas de racismo que os localizam alvo de segregação ou como um resquício a ser eliminado. Os territórios dos povos indígenas e a natureza que colidem com os locais de avanço do extrativismo são sacrificados em prol de uma bonança nacional referenciada a um modelo consumista de vida urbana. Mas os povos indígenas não são mais vistos por setores progressistas como sobrevivências do passado pré-capitalista fadadas ao desaparecimento, e sim como populações com direito a preservarem seus modos de vida e seus territórios e, muitas vezes, como os únicos defensores das florestas.

Durante Lula, a presença de Marina Silva no ministério do meio-ambiente mitigou um pouco a predação ambiental. Ela não conteve o projeto de tornar a exploração do petróleo do pré-sal o motor de um novo surto de industrialização (anunciado em 2008), nem a transposição do rio São Francisco (decidida em 2007 e com sua primeira fase inaugurada em 2017). Mas condicionou a construção das hidroelétricas na Amazônia (as usinas de Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, leiloadas em 2007 e 2008, e a grande usina de Belo Monte, no rio Xingu, afinal leiloada em 2010). Derrotada em seus pleitos no governo, Marina abandonou o PT, em 2009, para ser candidata pelo Partido Verde contra Dilma em 2010. Ela obteve 19,4% dos votos no primeiro turno, em boa parte votos de setores progressistas urbanos identificados com as lutas ambientais – e repetiu esse desempenho em 2014, quando obteve 21% dos votos como candidata do Partido Socialista Brasileiro.

Já o primeiro governo Dilma foi o mais insensível às temáticas ambientais desde a ditadura militar. A disputa em torno de Belo Monte escalou e se tornou o centro de uma campanha internacional. A oposição à obra pela população local indígena e ribeirinha, igreja católica, ambientalistas e classe média progressista foi muito forte, atrasando e encarecendo a usina – além de cobrar um alto custo político ao governo Dilma. Mas uma campanha igualmente marcante se deu, em 2010 e 2011, em torno da reforma do Código Florestal, projeto que consolidava a devastação ambiental promovida pelo agronegócio nas últimas décadas, autorizava mais desmatamento e fragilizava ainda mais as matas ciliares essências à preservação dos sistemas hídricos. As pesquisas de opinião mostravam uma ampla maioria da população contra o projeto, mas ele foi encaminhado pelos parlamentares governistas e ruralistas surdos à sua impopularidade – com o deputado Aldo Rebelo do PCdoB como um de seus maiores defensores. Essas foram disputas políticas que alienaram parcelas progressistas da população do apoio ao governo Dilma.

Mas os exemplos podem ser multiplicados: a alteração no Código Penal que dificulta a caracterização e fiscalização do trabalho escravo – um problema recorrente no Brasil, que os ruralistas se recusam a enfrentar; o decreto 7957/13, promulgado por Dilma, que regulamenta o emprego de forças federais em conflitos ambientais, basicamente destinado a reprimir os povos indígenas que resistem às grandes obras em seus territórios. Em novembro de 2015, ocorreu o maior desastre ambiental da história do país, o rompimento da barragem de Fundão, com rejeitos de mineração da Samarco (associação entre a Vale e a Billiton), em Mariana (MG), que levou a destruição do ecossistema do vale do Rio Doce. Neste período o Sudeste e o Nordeste foram atingidos por grandes secas, que produziram uma grave crise no abastecimento hídrico de cidades como São Paulo (neste caso, gerido de forma temerária e privatista pelo governo estadual do PSDB). A relação de Dilma com as populações indígenas, péssima por conta de Belo Monte, deteriorou-se ainda mais pela sua decisão de levar adiante um conjunto de hidroelétricas na Amazônia (Telles Pires, São Luiz do Tapajós...) – é interessante que uma das medidas que Temer encaminhou foi “repensar” as usinas no rio Tapajós, pelo impacto nas terras indígenas e pelo contencioso ambiental. O Instituto Nacional do Câncer também associou o alto consumo de pesticidas no país, mais de cinco litros por ano por habitante, ao crescimento da incidência da doença, tema é ignorado pelo governo (o Brasil é o maior consumidor de pesticidas do mundo e autoriza a pulverização aérea sobre áreas urbanas!).

A combinação de um “desenvolvimentismo” tacanho com a subordinação ao ruralismo gerou, sob Dilma, um círculo vicioso de problemas ambientais inaceitáveis para uma parcela do povo politicamente ativo do Brasil que consolidou um deslocamento do registro do que é ser esquerda. Esse não é um problema só do Brasil, mas de quase todos os países com governos de esquerda no nosso continente – sendo o caso venezuelano descrito por Edgardo Lander o mais extremo. 

b. A luta contra as opressões

O deslocamento da percepção do que é ser esquerda é forte também no terreno das identidades. O corte de classe foi o elemento constitutivo do Partido dos Trabalhadores que, apoiado em uma década de gigantescas mobilizações sindicais (1978-1988), se contrapunha aos partidos dos patrões. Essa dinâmica foi sendo corroída ao longo da década de 1990, com o refluxo das lutas sociais – em especial depois da derrota da greve dos petroleiros em maio de 1995. As alianças passavam a ter composições de ocasião, abarcando o “centro” político, na mesma medida em que o PT avançava na disputa de governos. De início, as memorias ainda frescas das lutas contrarrestavam a diluição da identidade de classe – cada vez mais definida em termos de pobres e ricos –, porém a eleição de Lula em 2002 já se deu nos marcos de uma pactação com o grande capital financeiro. A aliança com o PMDB passou a ser a base da coalizão de governo no segundo mandato de Lula, em 2006, e foram incorporados ao esquema de governabilidade todo tipo de partidos fisiológicos conservadores. A CUT tornou-se tão domesticada como as centrais sindicais antes chamadas de pelegas e o movimento sindical perdeu o protagonismo que teve nos anos 1970 e 1980. A identidade de classe independente do proletariado brasileiro, esboçada nos anos 1980, foi perdendo vigência prática.

Ao mesmo tempo, a “integração produtiva” de amplas parcelas da população e a extensão das políticas de proteção social durante os governos Lula, com a elevação lenta mas constante do salário mínimo, propiciaram a incorporação no mercado de consumo de massas de dezenas de milhões de pessoas em um processo redistributivo importante na base da sociedade (mas que não mexeu no topo da pirâmide). Os parâmetros usados para avaliar essa incorporação variam de 21 milhões de novos empregos formais criados a 36 milhões de pessoas que “saíram da pobreza” entre 2003 e 2013, de 50 milhões de novas pessoas que passaram a ter acesso ao crédito no país a 120 milhões de pessoas que agora podem contrair dívidas bancárias! Mas, com o aumento da heterogeneidade social das posições de classe, o único laço social objetivo que abarcou todos estes setores foi o mercado.

A fragmentação e enfraquecimento do movimento sindical e a diluição da identidade política de classe nos anos de petismo no governo abriram um vácuo de pertencimento político-ideológico na base social da esquerda. E, como qualquer vácuo, ele foi preenchido.

Uma primeira linha de força, que beneficiou a direita na sociedade, foi o crescimento das igrejas evangélicas (em especial neopentecostais). A contra-reforma conduzida pelo Vaticano sob João Paulo II e Bento XVI, fez com que a Igreja Católica – que tinha atuado muito próxima dos movimentos progressistas dos anos 1970 e 1980 – perdesse protagonismo como espaço de organização de setores de esquerda da sociedade brasileira. O lugar antes ocupado pelas Comunidades Eclesiais de Base foi parcialmente preenchido por igrejas protestantes; elas passaram de 9% da população em 1991 para 22,2% em 2010. Uma análise mais refinada evidenciaria processos de diferenciação no interior dessas denominações, inclusive com setores da teologia da libertação atuando nelas, e, no catolicismo, o crescimento do movimento carismático; mas o efeito de conjunto foi um reforço importante do conservadorismo de base religiosa na sociedade. Para amplos setores das camadas pobres, melhorias de sua situação de vida se deveram à “vontade de Deus”.

Uma segunda linha de força foi a expansão do autonomismo e do anarquismo na juventude, que cresceu nos anos 2000 e ficou evidente em 2013 e 2014 – inclusive com a presença de “black blocs” nas manifestações. Uma nova geração de ativistas cresceu sob o governo Lula, não encontrando nas organizações formadas nos anos 1980 – e, em especial, o PT e a CUT – espaço para expressão de suas aspirações. Esses movimentos não conseguiram firmar-se com peso como, por exemplo, o fizeram na Argentina na sequência da crise de 2000, mas se enraizaram em alguns setores da juventude. Essa é a manifestação no Brasil de uma tendência global que emerge com o zapatismo e se expressa já nos movimentos altermundialistas entre 1999 e 2003, mantendo-se nos movimentos tardios de resposta à crise de 2008 (Occupies, Indignados...). Revela uma corrosão ampla das instituições políticas sob o neoliberalismo, em especial a captura e esvaziamento dos mecanismos de representação política (governos, legislativos, partidos políticos...) pelo poder das finanças. Daí o peso da palavra-de-ordem “não me representa”.

Os dois processos estão ligados às transformações em curso no tecido da sociedade brasileira: desindustrialização, crescimento do consumismo, corrosão dos laços associativos e antigas identidades, aumento do individualismo, obsolescência de parte dos movimentos sociais e entidades do ciclo anterior. O sistema universitário se expandiu, o que não é irrelevante, mas desmontando o tripé ensino-pesquisa-extensão nas universidades públicas e com o Pró-Une (um subsídio às universidades privadas para incorporarem alunos pobres) se transformando em uma fábrica de diplomas pouco valorizados. Mas o ensino básico público continua se deteriorando sem perspectivas de que esse processo seja revertido. O Serviço Único de Saúde (SUS), uma grande conquista da Constituição de 1988, continuou sendo importante, mas cada vez mais acossado e corroído pela expansão (parasitando o estado) dos planos privados de saúde. Um dos cartazes mais comuns em 2013 reivindicava “escolas e hospitais padrão FIFA”.

Assim, embora parcelas importantes das populações trabalhadoras tenham sido integradas ao mercado de consumo, elas continuaram com inserções precárias no mercado de trabalho, tiveram poucos ganhos de direitos e não tiveram nenhum avanço (pelo contrário) em termo de consciência e participação cidadã. Lula eleito em 2002 vetou, antes da instalação de seu governo, iniciativas de orçamento participativo no terreno federal. Todos os conselhos e seus planos foram consultivos e bastante manipulativos no sentido de incorporarem e neutralizarem lideranças dos movimentos sociais. O povo trabalhador continuou carecendo de serviços fundamentais de educação, saúde, assistência, transporte, habitação, saneamento, cultura, comunicação. Com o novo perfil da sociedade brasileira, muito disso foi se identificando com a demanda de direito à cidade, evidente nos protestos de 2013.

A consequência foi a emergência de uma terceira linha de força, o crescimento e valorização dos processos e movimentos de luta contra as opressões: a luta das mulheres contra o machismo, dos negros contra o racismo, dos gays, lésbicas e transexuais contra a homofobia. Não que esses temas antes estivessem fora da agenda progressista, mas eles não tinham uma centralidade prática nem eram vistos como estratégicos – essa era (e para a maioria da esquerda continua sendo) dada à luta operária, sindical e camponesa. O decisivo era a luta redistributiva e não a dimensão do reconhecimento; mas essa agora tornou-se central, como registram muitos debates contemporâneos da filosofia política, mas também a atividade política no Brasil e no mundo – mais evidente que nunca com a eleição de Trump nos Estados Unidos.

O racismo, o machismo e a homofobia são traços marcantes da formação histórica brasileira. Eles vinham refluindo desde os anos 1980 com um certo consenso “liberal”. Mas, na esteira da crise de 2008, deu-se um recrudescimento do conservadorismo, não somente em setores das classes médias mas difuso no tecido social mais desagregado, que retoma e aprofunda preconceitos e desqualificações racistas, machistas e homofóbicos, tendo como ponta de lança as igrejas neopentecostais. Na campanha eleitoral de 2010 isso já estava, com certeza, avançado.

O ponto onde o conflito se tornou mais evidente foi no estabelecimento da política de cotas raciais, lançadas pela lei federal 10.558/2002, conhecida como "Lei de Cotas", que criou o Programa Diversidade na Universidade, depois consolidada, em 2010, pelo Estatuto da Igualdade Racial. Em 2012, foi aprovada uma lei que garante cota de 20% para negros também em concursos públicos federais da administração direta e autarquias. Mas isso se deu sobre uma base bastante degradada, a precarização da condição de vida da população negra das grandes cidades. Ela é perceptível, por exemplo, no crescimento do número de assassinatos na população negra, em especial na juventude das periferias das grandes cidades. O número de mortos por arma de fogo no país, segundo o Mapa da Violência 2015, atingiu, em 2012, 10.632 brancos e 28.946 negros, o que representa 11,8 óbitos para cada 100 mil brancos e 28,5 para cada 100 mil negros. Entre 2003 e 2012, enquanto as taxas de homicídios de brancos por armas de fogo caem de 14,5 para 11,8 em 100 mil brancos, enquanto as taxas de homicídios de negros aumentam de 24,9 para 28,5 em 100 mil negros; as taxas brancas caem 18,7% e as negras aumentam 14,1%. As desigualdades étnicas e a discriminação da população negra, em especial de suas parcelas mais pobres, são dados inquestionáveis da vida social brasileira. 

Em parte alguma o caráter excludente e violento da sociedade brasileira é mais visível do que na continuidade da militarização da política de segurança pública, na enorme expansão e degradação das condições do sistema prisional e no extermínio da juventude negra, executada por policiais (e grupos paramilitares) nas periferias das grandes cidades com o aval do estado (nos chamados autos de resistência). Parte importante da população brasileira – não apenas a população negra, mas também a indígena – continua privada do direito civil mais fundamental, o direito à vida.

Um quadro análogo pode ser traçado para a situação da mulher. Para além das desigualdades no mercado de trabalho, dupla jornada, legislação patriarcal que as impedem de controlarem seu próprio corpo, o machismo alimenta uma violência generalizada. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que 37% da população (sendo 42% dos homens) consideram que a vítima é culpada em casos de estupro – uma situação ultrajante para qualquer parâmetro de civilidade. 90% das mulheres da região Nordeste tem medo de serem vítimas de violência sexual (O Estado de S.Paulo, 21/9/2016). Os governos petistas promoveram políticas de ação afirmativa, mas sem serem particularmente incisivos, sempre recuando frente as críticas conservadoras da “base aliada”. Face a episódios recorrentes de violência sexual e a completa insuficiência das políticas governamentais, protestos de massa – especialmente de mulheres jovens – tem ocupado as ruas.

E o mesmo se dá com o movimento LGBT. Desde que uma primeira pequena Parada do Orgulho LGBT foi realizada em São Paulo, em 1997, o tema foi ganhando projeção, até que a Parada se transformasse na maior manifestação de massa da cidade. Protestos que, em 2013, exigiam “Fora Feliciano” – um parlamentar evangélico que, à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, externava posições homofóbicas e preconceituosas – prepararam o terreno para as manifestações de junho.

E presenciamos no Brasil, em 2015 e 2016, também um multifacetado movimento de estudantes do ensino médio das escolas públicas em luta por melhores condições de ensino, ocupando escolas e dialogando com país e professores. Por vezes muito radicalizados, esses movimentos bloqueiam ruas, ocupam praças e pressionam governos estaduais que querem cortar gastos com educação.

Em todos os casos, parte-se, para a ação política, não diretamente das demandas da classe trabalhadora como tal, mas de um grande número de questões democráticas e de direitos fundamentais não resolvidas. As mobilizações são essencialmente de trabalhadores e setores populares. São, quase sempre, mobilizações contra os setores conservadores, mas por vezes chocam-se simplesmente com os governos de plantão, de direita ou de esquerda. O espaço de manifestação é a cidade (embora tenhamos também as reivindicações de indígenas, quilombolas e caiçaras), e a ocupação de espaços públicos é o método fundamental de protesto. Por vezes, como no caso de violência policial contra a juventude das periferias, cujas vítimas são majoritariamente negras, os protestos envolvem queima de ônibus, construção de barricadas e enfrentamento aberto com as forças de segurança.

Em uma sociedade de mercado onde os indivíduos estão desenraizados e fragilizados pela precariedade dos serviços públicos e pela concorrência de todos contra todos, a busca de identidades se torna muito mais plural e quem quer que tenha a pretensão de alterar as relações de poder precisa catalisar e confederar uma série de demandas que supõem a ruptura com relações profundamente arraigadas na formação social brasileira. O acerto de contas com a questão racial é consubstantivo à organização de classe do proletariado no país e uma parcela importante da classe trabalhadora é composta de mulheres. As demandas de reconhecimento de igual direito para as distintas orientações sexuais são candentes, antes de tudo, nos setores mais vulneráveis da sociedade.

O tema das identidades ganhou um papel central na luta política. A esquerda institucionalizada não soube abarcar uma parcela substancial das demandas populares – por incompreensão da centralidade dessas temáticas ou porque as alianças de governabilidade com setores conservadores ou abertamente reacionários paralisaram sua ação em questões em que esses partidos tenderiam a propor um posicionamento e políticas progressistas (como é o caso das demandas de gênero e orientação sexual – sempre sacrificadas nas negociações com os pastores neopentecostais da bancada da Bíblia). Elas se avolumaram e se colocaram em um lugar central na luta política, contribuindo para deslocar ainda mais o registro do que é ser esquerda, em especial para as juventudes urbanas.

c. A relação democrática com o poder político e a coisa pública

O balanço prático feito pelas populações latino-americanas das experiências de governos progressistas nos seus países aponta a necessidade de se romper com uma visão meramente instrumental do poder de Estado, que hoje aparece como simplista, ingênua e perigosa. De um lado, porque as estruturas de poder do Estado são amarras para mudanças mais profundas e mesmo processos constituintes como os da Venezuela, Bolivia e Equador não criaram estruturas de auto-organização e poder popular autônomo, simplesmente reformando o que antes era chamado de Estado burguês – e, no caso do Brasil, como já vimos, simples adaptação às estruturas oligárquicas de poder existentes. De outro, porque ignora o problema da corrupção e da burocratização, seja nos Estados estabelecidos, seja nos Estados reformados por processos constituintes. Falta um pensamento político democrático para a esquerda estabelecida enfrentar esses problemas e isso é nitidamente percebido pela população, abrindo uma avenida pela qual avança a contraofensiva conservadora em curso.

Estamos tratando de um tema distinto do debate antigo, que opôs anarquistas e marxistas (a necessidade ou não de um Estado, ainda que de natureza nova), mas também a oposição de esquerda na União Soviética à burocratização estalinista (no qual sovietes fundaram um novo poder sequestrado pela autonomização do partido frente a sua base social). O tecido de instituições do Estado capitalista foi se ampliando com as conquistas sociais das décadas prévias ao neoliberalismo e, em nosso continente, nos últimos 15 anos, com as políticas redistributivas progressivas. Mas, ao mesmo tempo, o horizonte de ruptura com o capitalismo refluía e as políticas de esquerda passavam a se mover dentro da ordem geopolítica estabelecida. A globalização neoliberal alimentou a fusão orgânica entre o exercício do poder de Estado e o capital financeiro, alçando a promiscuidade entre política e negócios a um patamar inédito – um câncer que está corroendo os mecanismos da democracia liberal e dos estados de bem-estar em todas as partes do mundo –, e isso também impulsionou o crescimento mais recente do espontaneismo e do autonomismo como horizonte político de uma parcela dos ativistas que rechaçam a política estabelecida.

Isso significa que governos comprometidos com políticas socialistas tendem hoje a ter sua ação condicionada pelos mercados financeiros e mesmo pelo financiamento eleitoral pelas corporações. Vemos também, pela experiência latino-americana, que a governabilidade conservadora é inseparável da corrupção em grande escala (é necessário comprar no sentido literal da palavra o apoio dos representantes da direita). A quantidade de fenômenos envolvendo a “corrupção” indica que estamos enfrentando um problema tão grave como o das resistências das formas de propriedade privada para a mudança social.

O balanço do petismo não pode ser reduzido a uma crítica do “deixa roubar” para fazer em favor do povo (alterando um pouco o lema do ademarismo, uma das correntes conservadores do populismo do pós-Guerra no Brasil), em função da “compra” da governabilidade conservadora. Trata-se, de um lado, no caso do Brasil, de esquecer a natureza do Estado e suas instituições políticas, como já discutirmos. De outro, de ignorar que os governantes que não estão submetidos ao controle social direto e imediato dos governados tendem a se autonomizar e a buscar se reproduzir no poder, transformando o que deveria ser a gestão da coisa pública em benefício do bem comum em fonte privada de enriquecimento, prestígio, poder. Isso significa também criticar projetos políticos alicerçados na figura de líderes carismáticos, que dificilmente coadunam com processos amplos de democratização e abrem espaço para cliques normalmente propensas à corrupção. Por fim, da adesão à ideologias tecnocráticas que substituem os processos democráticos de participação e deliberação por decisões supostamente técnicas, mas igualmente políticas, que terminam se tornando, mesmo com a melhor das intensões, antipopulares. Depois de 2013 ficou evidente que a situação era insustentável e uma democratização na forma de se fazer política era exigida, mesmo que ao preço de um confronto aberto com os conservadores na “base aliada”.

A complexidade dos processos sociais, a desigualdade de participação, os fluxos e refluxos da vida social fazem com que seja necessário, no horizonte que podemos visualizar, manter processos de eleição democrática de representantes. Mas o único antídoto conhecido para “os perigos profissionais do poder” (na formula lapidar de Rakovsky) é que as decisões políticas importantes sejam tomadas em processos de democracia participativa ou direta – isto é, que os governantes, mesmo de esquerda, sejam expropriados de parte de seu problema político em benefício de seu exercício direto pelo povo. Isso é agora facilitado pelas possibilidades abertas pelas novas tecnologias digitais e pela popularização do smartphone (o que enfatiza a centralidade das políticas de software livre e inclusão digital, defendidas pelos petistas ligados ao tema, mas abandonadas no final do primeiro governo Lula, ainda que um bastião ligado à cultura livre permanecesse ativo depois). Esse problema destaca também a importância da capacitação da população senão para gerir sistemas técnicos ao menos para supervisiona-los e ser capaz de tomar as decisões políticas hoje apresentadas como supostamente técnicas que condicionam seu uso, prioridades, etc. – o que significa se chocar com os interesses e reações das mais variadas corporações de especialistas.

Uma estratégia de difusão do poder político pela população auto-organizada amplia em muito o terreno da disputa – e, sem dúvida, dificulta sua resolução. Mas uma questão como o avanço do conservadorismo religioso – problema hoje crítico para a esquerda brasileira – só pode ser respondida com iniciativas culturais, políticos e sociais que favoreçam visões de mundo alicerçadas em bases distintas da competição mercantil e da convivência não conflituosa com o exercício do poder orgânico do capital, espraiado pela sociedade civil. A democratização do poder político não se resolve só com uma reforma política do Estado, mas principalmente com avanços na construção de auto-organização de poder popular, que voltem a inserir a tomada das decisões fundamentais no tecido social.

7. Era possível ser diferente?

O curso da história do Brasil nas últimas três décadas poderia ter sido diferente? Essa pergunta levanta questões filosóficas e respostas distintas, quer enfatizando visões deterministas, quer destacando o espaço de liberdade humana na história. A resposta a ela é também um juízo político da ação dos atores presentes nos processos que se sucederam. Mas levantar esse problema é dar conta da dimensão reflexiva que a atividade humana pode ter: podemos aprender com a história? atores políticos podem se aperfeiçoar e serem mais eficazes na consecução de seus objetivos? que erros não podem voltar a ser cometidos?

Olhando retrospectivamente, três momentos são decisivos. O primeiro foi a da constituição das grandes organizações de esquerda entre 1980-82. Elas se conformaram pelo peso da industrialização e por processo fortemente classistas, um exemplo paradigmático do papel que a classe operária industrial poderia assumir na luta política em uma economia industrial. Não tivesse a reestruturação neoliberal prevalecido no terreno global e se imposto no Brasil uma década depois, provavelmente as expectativas da esquerda dos anos 1980 poderiam ter sido cumpridas. De qualquer forma, sua existência adiou por décadas um debate renovado sobre o caráter da formação social brasileira.

Mas isso não era inevitável. Uma crítica radical da formação nacional brasileira esboçou-se, na década de 1970, no terreno das ideias combinada com uma prática resistente ao cenário conservador. Foi quando surgiram os ensaios de Roberto Schwarz; Florestan Fernandes publicou “A revolução burguesa no Brasil”, reunindo as consequências de questões que ele pontuara em livros sobre a questão racial; Abdias Nascimento, em seu exílio nos Estados Unidos, radicalizou-se e desenvolveu as ideias de genocídio dos negros e de quilombismo, referências para o Movimento Negro Unificado. Mas esse pensamento que apontava para a necessidade de a esquerda promover um acerto de contas com o Brasil profundo, colonial, conservador, racista, excludente, violento – pretérito, mas ativo – foi subsumido pelas lutas sindicais do Brasil industrial e fordista que eclodiram entre 1978 e 1989. Esse acerto de contas talvez tivesse permitido que a esquerda apreendesse desde cedo a natureza do sistema político montado em 1988 e o petismo tivesse sido uma coisa diferente do que foi.

De fato, a esquerda brasileira que se constitui no ciclo petista foi marcada por uma visão eurocêntrica da política socialista, que parecia confirmada pela industrialização e urbanização do país e por sua própria experiência nas lutas operárias e sindicais. Ela não desenvolveu nenhuma reflexão mais profunda sobre a formação do Brasil, assumindo para si o que se tornou o senso comum das elites. Na crise da ditadura militar, nos anos 1970 e 1980, formou-se um consenso muito amplo em torno da interpretação da formação nacional construída nos anos 1930. Então, Gilberto Freire, Sergio Buarque de Hollanda e Caio Prado Junior formularam o que viria a se conformar como a narrativa da formação do Brasil que permitiria às elites se apresentaram como parte de um mesmo povo com o conjunto da população e proporem seus interesses como os da nação, agora vista como viável (o que antes, com a visão eugenista, era impraticável). Estes intelectuais construíram a narrativa básica que seria enriquecida por inúmeros outros interpretes (de Roberto Simonsen a Celso Furtado, de Victor Nunes Leal a Darcy Ribeiro, de Raymundo Faoro a Fernando Novaes) e seria assumida de petistas a peessedebistas, passando por todo o espectro intermediário. Leituras específicas a inflexionaram para a direita (com tons mais culturalistas e weberianos) ou para a esquerda (com tons marxistas), mas compartilhando categorias comuns, como progresso, desenvolvimento, nação, cidadania e inclusão. Conceitos oriundos do marxismo, como capitalismo, imperialismo, classes sociais, hegemonia e mesmo modo de produção, também se tornaram lugar comum.

 Esta narrativa – até o regime militar disputada contra as visões conservadoras, religiosas e abertamente racistas – se tornou o senso comum do Brasil sobre si mesmo a partir das alianças que, na oposição à ditadura militar, foram estabelecidas entre liberais e progressistas. Os conservadores radicais, até então bastante ativos na defesa de suas posições, praticamente sumiram do novo sistema universitário, e os neoliberais, que reemergiram nos anos 1990, não retomaram posições conservadoras mais caricatas (só recentemente eles resgataram o liberalismo antidesenvolvimentista). Apenas uma hermenêutica detida localizaria as diferenças entre as visões da formação nacional de Fernando Henrique Cardoso e de destacados intelectuais petistas. Ainda que tivessem sensibilidades diferentes para o papel do estado na economia, as políticas que prescreviam para a sociedade eram semelhantes – em especial a atribuição de um papel civilizador à dinâmica de classes e ao mercado.

Um segundo momento de ruptura ocorreu com a chegada ao país do neoliberalismo e da globalização financeira, em 1990. Aqui os problemas escalam para um patamar de qualidade superior, agravando todos aqueles do primeiro momento. O conjunto da esquerda mundial fracassou na busca de respostas a isso: o comunismo soviético, a socialdemocracia, os nacionalismos terceiro-mundistas. O destino da União Soviética e da China, que diziam ter rompido com o capitalismo, é emblemático das dificuldades que a nova fase do capitalismo colocou para os movimentos antissistêmicos. O zapatismo e o autonomismo radical também fracassaram como respostas ao neoliberalismo nos anos 1990 e 2000, embora influenciassem experiências posteriores que ainda não se encerraram. A vaga altermundialista de 1999 a 2003 retomou um diálogo entre a geração política que emergia e a tradição clássica da esquerda, contestando o pensamento neoliberal, recompondo espaços de troca de experiência e um internacionalismo ativo, mas sua única instituição duradoura, o FSM, não tinha como objetivo a disputa do poder de Estado. Foi necessário chegarmos à crise de 2008 para vermos nascer partidos políticos de natureza nova, que ainda tem que demonstrar sua efetividade.

O balanço de conjunto que podemos fazer é que a esquerda, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, foi incapaz – até agora – de forjar uma alternativa capaz de disputar com o neoliberalismo um horizonte histórico e galvanizar as imaginações e aspirações emancipatórias. Nesse ponto, os deslocamentos de referências que apontamos se tornam decisivos e globais: a centralidade da questão ambiental (e, no nosso continente, indígena) e a pluralidade de atores que terão que ser envolvidos nos processos de mudança radical da sociedade. Mas esse segundo momento se combina com um ulterior, que o traduz e especifica em termos regionais.

O terceiro momento, que é latino-americano e que se inicia com a chegada de Hugo Chavez à presidência da Venezuela em 1999, corresponde no Brasil à eleição de Lula presidente em 2002. Trata-se da tentativa de efetuar reformas redistributivas no marco da globalização neoliberal, convivendo com o capital financeiro internacional e com o papel que a nova divisão internacional do trabalho atribuiu à economia latino-americana e brasileira. Em retrospecto, seu fundamento foi o boom das commodities puxado pela demanda chinesa. Outros países latino-americanos fizeram reformas comparativamente mais profundas do que o Brasil sob o PT e, no nosso caso, a ruptura com horizonte de construção nacional também parece ter sido decisiva para o balanço estrutural do pais depois de 14 anos de petismo ser tão frágil. A governabilidade conservadora limitou a mobilização popular no apoio a medidas mais contundentes e a expansão do consumo como vetor fundamental de redistribuição da renda aprofundou a dinâmica neoliberal da sociedade de conjunto.

Neste terreno muita coisa poderia ter sido diferente, embora a fragilidade da construção da esquerda e a crise mundial do socialismo nos anos 1990 já condicionassem fortemente as opções. Mas podemos cotejar a experiência brasileira com as demais experiências de governo no continente, em especial dos integrantes da ALBA, e dizer que erros foram cometidos e onde o processo petista poderia ter sido diferente: pela manutenção de um compromisso com a construção nacional sob bases que preservassem o parque industrial (como fez a Índia); encarando de outra maneira o problema da governabilidade, sem compromissos estruturais com os setores conservadores e enfrentando-os na disputa social e ideológica; impulsionando uma ampla mobilização política e cidadã, que projetasse para o terreno nacional as experiências mais avançadas de transparência e controle social dos governantes (quem fala hoje de orçamento participativo?); aprofundando, em diálogo com as organizações da sociedade civil, a consciência política, a participação cidadã na gestão da coisa pública e novas formas de democracia. Muita coisa poderia, assim, ser diferente do que foi, criando uma correlação de forças melhor para a esquerda e evitando o destino que teve o governo Dilma. Mas isso implicaria ter existido uma experiência formadora de toda uma geração política distinta daquela que levou Lula, como direção carismática, e o PT, como partido, ao governo em 2002!

O Brasil transita agora para uma nova etapa de sua história, tendo como pano de fundo uma onda longa depressiva do capitalismo global, cheia de fenômenos regressivos que carregam fantasmas muito perigosos, recordando os monstros dos anos 1930 em seus momentos iniciais. É improvável que tenhamos uma etapa de estabilidade política no país. O déficit democrático vivido pelos regimes liberais é uma experiência global da esquerda que exige uma resposta que também será, ao menos em parte, comum. E dispomos agora, pela história recente compartilhada no continente, de elementos para projetarmos a disputa por outra sociedade em um patamar superior no que concerne à integração regional.

Mas essas alavancas só serão efetivas se formos capazes de aprender com os erros cometidos na experiência petista e repensarmos premissas centrais que orientam a ação política emancipadora. Repensarmos o desenvolvimento, escapando de suas dimensões produtivistas, quantitativas, consumistas e predatórias, rompendo com o extrativismo (e eliminando a histórica sobrerepresentação política do agronegócio) e com as utopias tecnológicas e tecnocráticas ainda hoje difusas no imaginário progressista. Questionarmos a aceitação da globalização como destino inelutável e compreendermos que ela acarreta retrocessos brutais, sendo aceitável somente se for capaz de se contrapor à dominância financeira e modulada por cláusulas sociais e ambientais draconianas. Rejeitarmos as concepções deterministas da história em que mais capital representa um mundo melhor e a esquerda nada a favor da corrente do progresso, porque a barbárie vem se mostrando ser sua companheira inseparável nos últimos séculos. E construirmos práticas e concepções democráticas de política e governo em que as massas deixem de ser massas, superem visões paternalistas e tecnocráticas e se tornem cidadãs, sujeitos conscientes seus interesses e capazes de forjarem a unidade no respeito à pluralidade de atores antisistêmicos em cena e à perspectiva de outro mundo, onde caibam muitos mundos.