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O que Biden implicará para a região Ásia-Pacífico?

19 de janeiro de 2021

Biden pode suavizar a guerra comercial de Trump e trazer de volta uma defesa limitada dos direitos humanos, mas a continuidade poderá ser maior do que cada uma das gestões admite

Walden Bello, Viento Sur, 8 de novembro de 2020. Tradução: Maria Lima

Considerando que Joe Biden assume a presidência dos EUA em 20 de janeiro de 2021, qual deverá ser sua política para a região Ásia-Pacífico?

É improvável que Biden persista na guerra comercial de Trump com a China; isso seria desestabilizador demais para todos. Não apenas os Estados Unidos dependem em grande medida da China para numerosas importações industriais, mas também muitos países dependem da China como mercado para suas exportações.

Isso vale não apenas para matérias-primas e produtos agrícolas, como no caso da África e da América Latina, respectivamente, mas também para produtos industrializados, como no caso do Sudeste Asiático, que produz componentes manufaturados que embarcam para a China, onde são montados e então enviados para os EUA, a Europa e todos os outros lugares.

Cumpre apontar, contudo, que o grupo de Biden compartilha com a administração Trump a visão de que a China é o maior concorrente estratégico dos EUA.

As suas visões negativas da política industrial chinesa não são muito diferentes daquelas encontradas no relatório da Casa Branca de 2017 sobre a crise da indústria estadunidense, redigido pelo conselheiro de Trump Peter Navarro. Eles compartilham a visão de que a China está avançando à base do roubo de patentes estadunidenses e estão dispostos a tomar medidas para impedir que a China ganhe vantagem tecnológica.

Nesse terreno, devemos recordar que não foi Trump quem qualificou a China de principal concorrente dos Estados Unidos. Esse processo começou com George W. Bush, cujo mandato passou a designar o país asiático de sócio estratégico para competidor estratégico. Bush Jr., no entanto, não traduziu essa mudança em políticas concretas anti-China, já que desejava manter a China como uma aliada na chamada Guerra contra o Terrorismo.

Já Barack Obama fez isso com seu “giro para a Ásia”, quando ordenou que o grosso das forças navais estadunidenses se reposicionassem com o objetivo de “conter” a China. Podemos dizer que, de certo modo, Trump não fez outra coisa senão radicalizar a postura de Obama face ao país asiático.

Continuidade militar

Além disso, existe uma presença institucional na região que permaneceu muito consistente ao longo de vários mandatos presidenciais, republicanos ou democratas: trata-se das forças armadas estadunidenses.

Os militares cumprem um papel muito, muito maior na formulação da política para a Ásia-Pacífico do que para qualquer outra parte do mundo. Mesmo quando as empresas estadunidenses abraçaram a China porque esta oferecia mão de obra barata que melhorava sua lucratividade, o Pentágono sempre foi cético quanto a melhores relações com Beijing, e liderou o desenvolvimento da visão oposta da China como um rival estratégico.

É importante observar que a doutrina militar operativa do Pentágono é a chamada AirSea Battle (batalha ar-mar), na qual está nítido que o “inimigo” é a China. O objetivo geral, em caso de guerra, é penetrar as defesas A2/AD (Anti-Access/Area Denial) da China, como o fim de desferir um golpe letal na infraestrutura industrial do sudeste do país.

Durante o mandato de Trump, o Pentágono levou a cabo duas iniciativas importantes: a instalação, na Coreia do Sul, de um sistema de defesa antimísseis (THAAD) dirigido contra a China e a Coreia do Norte, e a nova distribuição, na região Ásia-Pacífico, de mísseis nucleares de alcance intermediário voltados contra a China, depois que os EUA denunciaram o Tratado INF (Intermediate Range Nuclear Forces) em 2019.

O Pentágono define a China como competidora quase equivalente, embora saiba que ela não o é nem de longe. O gasto militar dos EUA é quase três vezes maior que o da China, já que ascende a 650 bilhões de dólares, frente aos 250 bilhões do país asiático (números de 2018). A China possui apenas umas 260 ogivas nucleares, comparadas às 5.400 de Washington, e os ICBM (mísseis balísticos intercontinentais) de Beijing são antiquados, embora em processo de modernização.

A capacidade ofensiva naval da China é minúscula comparada à dos Estados Unidos. Ela possui dois porta-aviões da época soviética, enquanto os EUA têm 11 grupos navais com porta-aviões e acaba de inaugurar um porta-aviões dotado da mais alta tecnologia, o USS Gerald Ford.

A China só conta com uma base militar no estrangeiro – em Djibuti, no Chifre da África -, enquanto os EUA têm centenas de bases e instalações nos arredores da China, inclusive no Japão, Coreia do Sul e Filipinas, entre outros países, e uma base flutuante móvel na forma da VII Frota, que domina o Mar do Sul da China.

Ainda que decidisse desafiar militarmente os EUA – o que é muito improvável -, Pequim não estaria em condições de fazê-lo de forma significativa nas próximas décadas. Mesmo assim, o grande objetivo estratégico do Pentágono, que não se alterará em uma administração Biden, será o de conter a China muito antes que ela alcance a paridade estratégica.

O Mar do Sul da China

Dito isso, o Mar do Sul da China (oeste das Filipinas) seguirá sendo um local de confronto naval intenso entre a China e os EUA, bem como entre a China e os países da ASEAN, cujas justas reivindicações por zonas econômicas exclusivas e territórios Beijing vem ignorando.

Oficiais vietnamitas, por exemplo, têm sido bastante vocais sobre seu receio de que o nível de tensão seja tanto que uma mera colisão de navios possa escalar para um conflito armado mais intenso, já que não há regras ou entendimentos regulando as relações militares, à exceção de uma correlação de forças volátil. E todo mundo sabe aonde podem desembocar situações de correlação de forças volátil - o equilíbrio europeu antes da Primeira Guerra Mundial constitui uma lição preocupante nesse sentido.

Nesse contexto, a desnuclearização do Mar do Sul da China constituem a verdadeira resposta à escalada de tensões na área, e tanto os governos quanto as sociedades civis dos países da AESAN deveriam pressionar mais energicamente a favor dessa alternativa. No entanto, é improvável que, hoje, a China ou os Estados Unidos de Biden se mostrem receptivos a tais propostas.

A Península da Coreia

Não se sabe por que motivo, Trump contribuiu para pôr fim ao estado de guerra fria na Península da Coreia, embora pudesse ter ido além. As tensões arrefeceram, e toda a população coreana se beneficiou disso.

Biden, no entanto, propugnou a guerra fria contra a Coreia do Norte quando era vice-presidente. Teme-se que, sob seu mandato, se reestabeleça o status quo ante de confronto aberto que marcou as relações entre Coreia do Norte e os governos democratas e republicanos anteriores a Trump.

A condição de Japão e Coreia do Sul de satélites dos EUA se manterá sob o governo Biden. Não têm outra opção, pois estão ocupados militarmente. O Japão abriga 25 bases militares estadunidenses e a Coreia do Sul, 15, mais um monte de instalações militares menores, sendo esses dois países o principal trampolim do Pentágono para a contenção da China.

Direitos humanos e diplomacia

Sem dúvidas, Washington vai brandir o porrete dos direitos humanos contra o norte-coreano Kim Jong Un, que deixou de funcionar durante o governo Trump. Além disso, os direitos humanos vão ocupar um lugar mais destacado no tratamento que Biden dará à China do que ocorreu durante o mandato Trump, embora a necessidade de Biden do apoio de Xi Jinping para manter sua ameaçada legitimidade política doméstica deva suavizar sua invocação.

É provável, ainda, que Biden mencione os direitos humanos frente ao presidente filipino Rodrigo Duterte, ainda que as precoces felicitações deste a Biden, a necessidade de Biden do apoio de líderes estrangeiros para legitimar-se, assim como a contínua ameaça de Duterte de denunciar o Acordo de Forças Visitantes entre Estados Unidos e Filipinas induzam, talvez, o presidente eleito a reduzir o volume de suas exigências abaixo do que eram durante o governo Obama.

Diga-se, entre parênteses, que a defesa dos direitos humanos é de suma importância, e a sociedade civil internacional das Nações Unidas deveria promovê-los de forma mais agressiva. O problema é que, quando Washington recorre a eles, os instrumentaliza como componente soft power de seu repertório de política exterior, com o objetivo real de defender seus interesses econômicos e estratégicos.

Isso também é visto como algo extremamente hipócrita por pessoas em todo o mundo, dadas as numerosas e flagrantes violações de direitos humanos nos EUA, entre elas a repressão sistemática contra a população negra. A defesa dos direitos humanos só é eficaz se quem a protagoniza disfruta de uma elevada consideração moral. Os Estados Unidos já não a têm (e é duvidoso que jamais a tenham tido), e parece que Biden e seu grupo possuem aí, um ponto cego.

A divisão interna nos EUA

Todas essas projeções baseiam-se na hipótese de que Biden chegue a suceder Trump. Não obstante, o ambiente nos Estados Unidos hoje, verdade seja dita, é um ambiente de guerra civil, e talvez seja apenas uma questão de tempo para que essa atmosfera se converta em algo mais ameaçador, mais feio.

Com efeito, ainda que Biden assuma o cargo, fica difícil imaginar como qualquer governo poderia impulsionar uma política externa nessas condições, com a legitimidade profundamente dividida, em que se faz guerra em cima de qualquer assunto importante, seja ele nacional ou externo. Certamente, as burocracias da CIA e do Pentágono continuarão a funcionar de acordo com seu DNA, mas, ao contrário das alegações de Trump sobre a dinâmica independente do “deep state” (“Estado profundo”), liderança política conta, e conta muito.

O resto do mundo se pergunta, enquanto isso, se o fato de os Estados Unidos estarem tão preocupados com seus próprios assuntos a ponto de se tornarem incapazes de conduzir uma política externa coerente é algo positivo ou negativo. Qualquer que seja a resposta, esse é um tema para outro ensaio.

Walden Bello, colunista de Foreign Policy in Focus, é co-presidente do conselho do Instituto de Estudos Focus on the global South, com sede em Bangkok, e professor adjunto de Sociologia da Universidade do Estado de Nova Iorque, em Binghamton. Entre os últimos relatórios da Focus que ele redigiu encontra-se Trump and the Asia Pacific: The Persistence of US Unilateralism (2020).