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O trabalho de reprodução social na pandemia: estratégia feminista para a crise

24 de abril de 2020

Setorial de Mulheres da Insurgência

A crise sanitária, humanitária, econômica, política e ecológica que se aprofundou drasticamente diante dos efeitos globais da pandemia do COVID-19 anuncia em letreiros cintilantes o que parte significativa das feministas revolucionárias há décadas luta, constrói e defende: a defesa intransigente e radical da vida acima do lucro passa por atribuir também à dimensão da reprodução social uma centralidade nas lutas anticapitalistas e em defesa de uma forma de sociabilidade sem explorações e opressões.

 

O capitalismo é marcado pela valorização do valor como seu combustível essencial, porém, enquanto sistema, é um sociometabolismo complexo, permeado de mediações sociais e que, historicamente, produziu uma realidade que relegou a reprodução social predominantemente à esfera privada ou a desvalorizou e invisibilizou na esfera pública.

 

Para o feminismo marxista o conceito de reprodução social é utilizado tratando especificamente, de acordo com Tithi Battacharya (2013), da “manutenção e reprodução da vida, em nível diário e geracional”, como uma “forma na qual o trabalho físico, emocional e mental necessário para a produção da população é socialmente organizado”, englobando e também extrapolando a dimensão do trabalho doméstico.

Isso significa que, desde esta perspectiva, a produção de produtos e a produção de vida estão como um processo integrado.

 

Se a força de trabalho produz as mercadorias, quem produz a força de trabalho?

Ainda em diálogo com Tithi Battacharya (2013), esta destaca três processos interconectados a traduzirem o que seria a dimensão da reprodução social, ou seja, esta dimensão quase não percebida que garante a produção da mais valiosa mercadoria nesta sociedade, a força de trabalho: i. a realização de atividades que regeneram os trabalhadores (limpar, cozinhar, confortar, vestir, etc.); ii. a realização de atividades que mantêm e regeneram trabalhadores que estão fora do processo de produção (futuros, antigos trabalhadores ou aquelas pessoas impossibilitadas de vender sua força de trabalho); iii. a possibilidade de reprodução de novos trabalhadores (capacidade das mulheres cis de gerar vidas).

 

Vale ressaltar que estes três processos estão permeados por uma produção de subjetividades, do conforto e aperfeiçoamento emocional à disciplina para adequadamente vender sua força de trabalho (não é possível separar a capacidade de trabalhar da produção de nossa individualidade).

 

Essa noção de totalidade heterogênea reverberada pelas autoras da teoria unitária da reprodução social nos faz perceber que as dimensões de produção e reprodução social são mutuamente determinantes, sendo a alteração em uma reverberada na outra. Isso nos auxilia a compreender como medidas de arrocho de salário, de direitos e de sucateamento de serviços geram sobrecargas domésticas e de cuidados e ainda mais violência contra as mulheres.

 

Por isso, ainda que saibamos que a pandemia do COVID-19 afete a humanidade como um todo, ela impacta significativamente mais as classes trabalhadoras, em especial as pessoas com relações de trabalho mais precarizadas e condições de vida mais vulneráveis e aquelas que precisam estar na linha de frente do combate ao COVID-19, naquilo que hoje se atrevem a chamar de trabalhos essenciais - predominantemente trabalhos de reprodução social: atendimentos de saúde, alimentação e limpezas - compostos por maiorias negras e de mulheres e que historicamente foram trabalhos desvalorizados.

 

Ademais, o âmbito da produção social se desestabiliza e, diante da necessidade de isolamento físico da maioria das pessoas, onera ainda mais as mulheres que ordinariamente já concentram uma carga muito maior de trabalho doméstico comparativamente aos homens. Suas duplas ou triplas jornadas de trabalho tornam-se ainda mais exaustivas, diante da impossibilidade de compartilhar tempo e trabalho com o cuidado de crianças, idosos, pessoas com deficiência e familiares em geral, que antes do isolamento frequentavam outras instituições durante seus dias, como escolas e fábricas.

 

O feminismo verdadeiramente revolucionário concebe e reivindica a pluralidade e a diferença como bandeiras de lutas das mulheres, em sua heterogeneidade e permeadas por diferentes formas e níveis de explorações e opressões. Neste cenário ainda mais crítico que vivemos com a pandemia do coronavírus, é importante observar as dores e dificuldades específicas que vivem ou podem viver as mulheres indígenas - desde a percepção de que são muito próprias e vivas as dinâmicas de sociabilidade em suas comunidades e, possivelmente, com maior possibilidade de alastramento do vírus e menos condições de resistência a doenças externas entre eles e elas, isso sem falar nas ameaças que sofrem hodiernamente com a entrada forçada de pessoas em seus territórios, a mando de madeireiras e mineradoras, em suas práticas ecocidas -, bem como mulheres lésbicas e bissexuais que possam sofrer de solidão afetiva nestes tempos de isolamento, diante de discriminações sofridas entre familiares, gerando silêncio sobre suas emoções e ocultação de relações por elas vivenciadas.

 

As mulheres transexuais que estão na invisibilidade no mercado de trabalho, como a prostituição, ou nem acessaram trabalhos informais pelas violências acometidas em suas trajetórias, estando no período de isolamento mais marginalizadas por não terem espaços seguros de casa e renda. As mulheres em situação de rua e moradoras de favelas que não tem se quer acesso a água para a segurança de sua saúde e daqueles que vivem conjuntamente, sendo essas pessoas em sua maioria negras e chefiadas por mulheres, devido os processos que somatizam violências nos corpos de mulheres negras.

 

Do mesmo modo, há uma preocupação com a mulher parturiente, diante de possíveis limitações aos seus direitos, como o de ter acompanhante, sob argumentos de excepcionalidades decorrentes da crise sanitária. Restrições com argumentos semelhantes podem ser percebidas nos locais que realizam serviços de aborto legal, com suas políticas de atendimento sendo suspensas, como foi o caso do hospital Perola Byington, em São Paulo, que as retomou somente após pressões jurídicas da Promotoria de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, da Promotoria de Justiça de Saúde Pública da Capital e do Núcleo Especializado de Proteção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública.

Ainda tratando de violência, compreendemos que o ambiente doméstico e privado não necessariamente possui o sentido confortável de lar para muitas mulheres, crianças e adolescentes, sendo, ao revés, espaço privilegiado e velado de violência.

 

Em tempos de isolamento físico, a proporção e os efeitos da violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças e adolescentes tem se mostrado no Brasil e no mundo ainda maiores. A violência doméstica e familiar é presente em toda a história do capitalismo (e antes dele), mas, sem dúvida, o esgarçamento dos laços sociais provocado pela ordem neoliberal, acompanhado da precarização das relações de trabalho e o sucateamento dos serviços públicos provocaram um significativo aumento desta violência.

 

Deste modo, as políticas neoliberais eliminaram ou precarizaram os suportes que servem para apoiar o trabalho de reprodução social. Isso somado ao desemprego crônico e as instabilidades do trabalho informal ou precário geraram uma crise no padrão de masculinidade calcado na artificial, porém culturalmente convencida, função provedora dos homens para com a família. A combinação dos elementos materiais com estes morais/culturais geram uma instabilidade masculina que nos auxilia na compreensão dos motivos pelos quais, em tempos de crises agudas, as violências domésticas e familiares se agudizam.

 

Por essas razões, nesta temporada de isolamento físico, além de mais sobrecarregadas, as mulheres estão também correndo mais riscos dentro de casa. É por esse motivo que também se faz fundamental o fortalecimento de redes de solidariedade, bem como, e principalmente, o fortalecimento de campanhas de conscientização e divulgação dos serviços de enfrentamento à violência de gênero em cada localidade, além de um urgente aperfeiçoamento da estrutura de combate institucional à violência, especialmente, neste momento agudo, as Casas-Abrigo e Casas de Recolhimento Provisório.

 

Dessa forma, as feministas revolucionárias têm como tarefa a defesa da vida acima do lucro, dando centralidade à reprodução social na luta anticapitalista. Estamos diante de um antigo e bem conhecido conflito entre a classe trabalhadora e potências ultraliberais, que se aproveitam de crises para consolidar e acentuar seus desmontes da seguridade social e de direitos sociais e trabalhistas.

Por isso, nosso programa tático e estratégico não pode deixar de ser essencialmente feminista. A saída desta crise sanitária, humanitária, econômica e ecológica precisa ter em conta a defesa intransigente e prioritária da vida das mulheres!

Devemos nos pautar:

  • Por uma defesa permanente dos serviços públicos, que estavam sofrendo há anos desmontes expressivos, em especial a partir da aprovação da PEC 55/2016 que restringiu os gastos públicos por 20 anos. Não apenas o oferecimento de serviço público de qualidade é garantia e dever estatal estabelecidos no processo de redemocratização, como também são essenciais enquanto forma de superação mais estrutural de certas questões vivenciadas pelas mulheres no que diz respeito às tarefas de reprodução social. Destaca-se, aqui, a Seguridade Social como um todo, em especial o Sistema Único de Saúde e a Assistência Social.
  • Na exigência do fortalecimento da rede especializada de prevenção e proteção no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres para garantir que mulheres em situação de isolamento físico que estejam sofrendo violência tenham como acessá-la e garantir a sua segurança, bem como a de seus filhos. 
  • Na luta contra a precarização do trabalho em tempos de avanços ultraliberais, pois mais uma vez são as mulheres e as populações mais vulneráveis aquelas que sofrerão mais com os cortes de direitos. Nas palavras de Assunção (2011), “a precarização tem rosto de mulher”, uma vez que são elas as que sofrem pela informalidade, pelos vínculos precários e pelo acúmulo com as funções relativas à reprodução social. São elas quem chefiam a maior parte das famílias brasileiras. E são elas quem são mandadas embora por exercerem seu papel reprodutivo e em tempos de crise.