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Onde tudo é mercado, mortos pobres não têm valor

Nessa descivilização exposta pelo coronavírus, os mortos são lixo, desde que pobres.

20 de maio de 2020

Carlos Matos Gomes, Medium/Esquerda.net, 19 de maio de 2020

Há dias a comunicação social da nossa civilização mostrava a sede do império — Nova Iorque, a Grande Maçã, a metrópole que não dorme, a da Wall Street, a Bolsa que impõe o valor dos produtos no mercado, a Lota Mundial — a enterrar mortos do “vírus chinês” em valas comuns abertas por escavadoras, porventura chinesas, ou japonesas, ou coreanas, operadas por hispânicos! Conclusão a tirar da confissão de Trump: a China obrigou o nosso império a enterrar os seus mortos sem valor de mercado em valas comuns. Para aí vão os que, no Império do Mercado, não têm dinheiro para pagar um seguro privado de saúde, um fundo privado de pensões, um funeral como os que aparecem nos filmes, num campo relvado e música de fundo! As mesmas valas onde, provavelmente, há uns anos foram enterradas as vacas loucas, aquelas que sofreram uma degenerescência neurológica, ou os frangos da gripe aviária, ou os porcos da peste suína (que veio de Hong Kong) que também já foram sacrificados por não terem valor de mercado.

Há dias também surgiram imagens de milhares de americanos — os patrícios do nosso império — em filas de automóveis para levantarem uma ração alimentar de sobrevivência. Tinham deixado de ter valor de mercado. Estavam entregues, para já, à caridade. O primeiro passo para se tornarem párias, literalmente tramps, mais uns entre 50 milhões que é o número estimado para americanos abaixo do limiar da pobreza, vagabundos, os sacos do lixo ambulantes à espera de irem para uma vala comum.

Há dias surgiu a notícia de que um fedor a podre infestava um bairro de Nova Iorque — a Big Apple, a Grande Maçã cheirava a podre. O cheiro provinha de dezenas de corpos em decomposição que haviam sido atirados para o interior de caminhonetas, de seres humanos sem valor que lhes permitisse serem sepultados. No império farol da nossa civilização aqueles corpos sem valor só foram dali retirados para um qualquer local ermo porque causavam mau cheiro e estragavam os negócios do bairro. Os donos das lojas não vendiam os seus produtos e os inquilinos não pagavam as rendas…

O New York Times publicou há dias uma lista dos maiores focos da pandemia nos EUA, as câmaras da morte. As primeiras 50 maiores lixeiras humanas são prisões e lares de velhos, com a intromissão de um porta-aviões (cujo comandante foi demitido por ter alertado para a situação — dos outros porta-aviões nada se sabe) e uma central de produção de eletricidade, por qualquer razão. Presos e velhos não têm valor de mercado, a comunicação social e o imperador não falam neles. Os casos referidos e extrapolados são os de uns navios de cruzeiro, de onde vêem o mundo as gentes com valor de mercado.

O dito “vírus chinês“, na versão de sacudir o capote de Trump, o imperador louco, também revelou que o respeito pelos princípios do respeito pela pessoa humana da nossa civilização está ao nível daquele que a nossa civilização acusa o seu inimigo: um ser humano preso numa cadeia americana vale o mesmo que um ser humano preso numa cadeia chinesa. Nada. Não têm valor de mercado. Nesse aspecto, entre a nossa civilização e a da China não há distinção. Só para recordar: quer os Estados Unidos, quer a China, têm pena de morte.

Todas as civilizações se assentam no principio do respeito por quem fez parte dela, por quem pertenceu a uma comunidada e esse respeito reflete-se no último ato, com maior ou menor pompa. Este império, o nosso, produziu uma civilização, a primeira, em que os “seus mortos” são lixo desde que sejam pobres e, logo, sem valor. O coronavírus revelou a miséria desta civilização do mercado, da lei da selva, da ganância. Trump é o ogro que configura a monstruosidade desta civilização. A Maçã está podre e nós, os europeus, ou a deixamos apodrecer por si e nos afastamos, ou apodrecemos com ela.

Livrarmo-nos desta crise é afastarmo-nos da maçã podre.