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Os agentes do apocalipse

29 de junho de 2021

A nova subtileza já não é em geral atacar a existência da crise climática, mas sim enquadrá-la e domesticar os cenários que existem, pervertê-los e retratá-los de uma maneira em que o sistema não precise qualquer mudança.

Há uma caricatura frequentemente dirigida aos militantes pela justiça climática, que vai desde os níveis mais “respeitáveis” da elite capitalista até aos mais boçais representantes da extrema-direita, tocando uma boa parte da esquerda: de que somos apocalípticos. Como qualquer boa caricatura, é um desenho destinado a exagerar uma parte da informação e esconder o resto, de modo a mais facilmente poder tirar legitimidade a um grupo enorme de pessoas que age contra quem empurra o mundo para o colapso.

Há algumas semanas foi publicado em Portugal um livro a atacar a radicalidade do movimento pela justiça climática, escrito por um suposto ambientalista e revisor do IPCC. A tese principal, nesta entrevista ao Expresso, é de que “não vem aí nenhuma extinção em massa, as alterações climáticas não vão provocar fome, a desflorestação da Amazónia não tem efeitos drásticos sobre a atmosfera, o aquecimento global não é responsável por grandes incêndios florestais nos últimos anos.”. Estas teses são refutadas pela observação científica.

Já estamos a viver na 6ª grande extinção em massa da História Natural que conhecemos, cujo resultado provém da acção humana, em particular da destruição e da degradação de habitats, sobre-exploração de recursos e alterações climáticas. A perda massiva de espécies e vulnerabilidade das populações pode ser consultada aqui.

2020 foi o segundo ano mais quente desde que há registos, com uma temperatura média global de aproximadamente 14,94ºC (comparados com os 13,8ºC de temperatura média global entre 1850 e 1900). É difícil perceber o argumento de que as alterações climáticas não vão provocar fome, não são precisas sequer referências para explicar a relação directa entre os fenómenos gerais de desertificação, aumento de temperatura e redução de precipitação e a produtividade agrícola. Hoje há pessoas a morrer de fome – num futuro ainda mais quente as pessoas alimentar-se-ão de empreendedorismo? Qual o valor nutricional do optimismo? - Zero.

A desflorestação da Amazónia tem vários efeitos simultâneos e dramáticos sobre a atmosfera e sobre o clima global: a transformação da maior floresta tropical húmida do mundo numa savana com poucas árvores (que é a maior ameaça enfrentada) libertaria quantidades massivas de dióxido de carbono para a atmosfera e reduziria drasticamente a capacidade de absorção de dióxido de carbono. Além disso, mudaria a circulação aérea de água, mudando os regimes hídricos continentais de toda a América, com impactos em todo o mundo. Também lá vivem cerca de 50 mil espécies de plantas, um número ainda maior de animais e cerca de 10% de todos os insectos do mundo, além de fungos e micróbios, que simplesmente perderiam o seu habitat – mas como também já vimos, a tese é de que não há nenhuma extinção e provavelmente também não haverá no futuro.

Sobre incêndios florestais, mais calor em geral provoca mais condições para incêndios. Haverá alguns lugares onde especificamente isto não se aplica, mas a nível global, este argumento é absurdo.

Estas teses, inequivocamente erradas, servem apenas para fazer a ponte para o objectivo principal: dizer que o movimento climático é demasiado radical e que não vale a pena fazer qualquer mudança de fundo na sociedade. O autor das teses só tem para propor a conveniente expansão do nuclear (seu contributo para o IPCC) e do gás fóssil.

A confortável complacência dos verdugos suicidas do sistema com os cenários da crise climática não é um acaso – foi e é construída diariamente. Os agentes do apocalipse têm um braço cultural muito bem representado na imprensa, que é uma das instituições que cria as condições para esta complacência. Do lado da extrema-direita, o Observador faz eco de teses negacionistas climáticas ou negacionistas na prática, como outros jornais e revistas, mas no fundo estas e outras instituições foram criadas para defender o capitalismo e fazem-no. Embora em alguns casos a intencionalidade já esteja há muito afastada do procedimento rotineiro, a defesa inconsciente do sistema pelas instituições é a expressão da “patologia da normalidade”. Tal como o psicanalista Erich Fromm referiu há muito, quando importantes bases da sociedade estão assentes em lógicas doentias, são criados padrões de normalidade que são patológicos. À luz destes padrões, o que caia fora deste conforto parece aberrante. Por isso a procura inconsciente de uma tecnologia mágica nova, a insistência em políticas ou tecnologias que não funcionam e aumentam emissões ou até sonhar com o pesadelo nuclear. Uma sociedade pode estar doente, estruturada e a operar contra o funcionamento saudável dos seus membros individual e colectivamente, além do ambiente que a sustenta.

Em 2018, a Academia das Ciências da Suécia atribuiu o prémio Nobel da Economia a William Nordhaus pelo seu trabalho em modelação de impactos da crise climática. O economista americano colocou, na preleção dada quando ganhou o prémio, uma citação de si mesmo: “incluindo todos os factores, a estimativa final é que os danos são de 2,1% do rendimento global para um aumento de 3ºC, e de 8,5% do rendimento global para um aumento de 6ºC.”. O Nobel da Economia propôs, com base numa análise custo-benefício, a estabilização da temperatura da Terra nos 4ºC acima da era pré-industrial. Há uma avaliação de um campo do conhecimento, de base científica, louvada com o mais alto dos prémios, que sugere que o colapso de todas as camadas de gelo de terra, da Amazónia e das florestas boreais, a paralisação da Corrente de Jacto e da circulação termohalina oceânica, os pilares do sistema climático global, só provocarão uma redução de 8,5% do rendimento global.

Não devemos esconder os cenários reais da crise climática, são devastadores, mas nós somos as gerações que nasceram nesta altura e que terão de resolver este problema. O capitalismo tentará todas as mentiras do mundo para travar a mudança que é necessária para travar a crise climática. Às vezes será mais subtil, outras vezes mais brutal. Mas nunca oscilará e tentará sempre criar novas alianças (nuclear, geoengenharia, necropolítica e genocídio) para travar a mudança. Contará com a inércia institucional dos seus agentes passivos mas também com os seus agentes activos. Não é defeito – é feitio, e vai das salas de cerimónia de Oslo à redação do Observador.

A nova subtileza já não é em geral atacar a existência da crise climática, mas sim enquadrá-la e domesticar os cenários que existem, pervertê-los e retratá-los de uma maneira em que o sistema não precise qualquer mudança. É por isso que o movimento pela justiça climática é hoje acusado de apocalíptico e mais tarde será acusado de extremista: para aqueles que só querem garantir a manutenção do status quo, o fim do mesmo é o fim do mundo. Na nossa era, a manutenção do status quo implica o colapso. Mas, ao contrário dos agentes da catástrofe, dos braços culturais do capitalismo, o movimento pela justiça climática não se resignará ao apocalipse.

Artigo publicado em expresso.pt a 28 de junho de 2021