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Os dois rostos da extrema-direita ucraniana

28 de fevereiro de 2022

A propaganda de Putin mostra a Ucrânia como um estado fascista. A ocidente a extrema-direita ucraniana costuma ser negligenciada. Adrien Nonjon faz aqui o retrato realista de um fenómeno que apesar de continuar a ser “marginal”, tenta ser “o novo ponto de convergência e de partida para uma revolução nacional pan-europeia”.

Adrien Nonjon, The Converstion / Esquerda.net, 26 de fevereiro de 2022

Apesar de um aumento de atividade aquando da Revolução da praça Maidan(link is external) em 2014 e da guerra em Donbass(link is external), a extrema-direita ucraniana continua a ser um fenómeno marginal e, sobretudo, profundamente dividido.

De facto, dois discursos nacionalistas diametralmente opostos se confrontam no seio deste movimento. Um, “histórico”, “ocidental” e “intravertido” é encarnado por partidos como o Svoboda(link is external) e o Setor Direito(link is external); o outro, “neo-nacionalista”, “oriental” e “extravertido” é representado pelo movimento Azov(link is external).

Para compreender esta dicotomia, é preciso colocá-la no seu contexto e detalhar as ideologias e tradições políticas de onde nasce.

O nacionalismo da Galícia: o movimento original e a rejeição da URSS

O nacionalismo ucraniano dito “histórico” encontra as suas origens em diferentes organizações como o Congresso dos Nacionalistas Ucranianos (KUN, um partido nacional-democrata fundado em 1992 e dirigido pela segunda geração de emigrados na Alemanha e no mundo anglo-saxónico) e a sua formação paramilitar Tryzub(link is external). É um movimento dominado atualmente pela União Pan-Ucraniana “Svoboda” (Liberdade), uma organização política anteriormente conhecida pelo nome de Partido Social-Nacionalista Ucraniano (SNPU).

Nascido oficialmente a 13 de outubro de 1991 em Lviv através da fusão de diferentes organizações nacionalistas, este movimento inscreve-se, falando esquematicamente, nas tradições nacionalistas e paramilitares da Ucrânia ocidental, nomeadamente galicianas. Foi nesta região, dominada desde 1772 até 1918 pelos austro-húngaros, depois, desde 1918 a 1939 pelos polacos, que se desenvolveram, a partir do século XIX, as primeiras ideias que defendiam a especificidade da Ucrânia e, sobretudo, o seu direito a existir enquanto nação soberana e independente(link is external).

Berço de uma cultura proto-nacionalista, a Galícia assiste, no período entre as duas guerras mundiais (tendo a Ucrânia sido unida à URSS a partir da criação desta em 1922), ao desenvolvimento, na clandestinidade, de vários movimentos políticos, sendo um dos mais importantes a Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e o seu braço armado, o Exército Insurrecional da Ucrânia (UPA). Dirigido por nacionalistas ucranianos de origem galiciana, como Roman Choukhevytch e Stepan Bandera, conhecidos como os responsáveis pelos massacres de Volhynie(link is external) (1942-1944), este movimento-guerrilha tentará lançar as bases de um novo Estado, independente do jugo estalinista.

No início da Segunda Guerra Mundial(link is external), a OUN e o UPA, com a força de 200.000 homens, vai privilegiar uma colaboração de circunstância com a Alemanha nazi; depois voltam-se contra o ocupante que recusa a criação de um Estado independente, antes de serem finalmente derrotados pela URSS.

Devido à sua luta a favor da independência e à sua ideologia radical animada por um desejo de rutura total com a URSS, estes movimentos galicianos influenciaram, evidentemente, depois de 1991, a ideologia e a postura dos ultra-nacionalistas. Beneficiaram igualmente da incapacidade da esquerda ucraniana de se desembaraçar das conotações negativas ligadas ao passado soviético.

Réplica radical ao sismo de 1991 visando alcançar a saída definitiva da Ucrânia da dependência russa, a ideologia do SNPU quer-se, desde os seus inícios, fundamentalmente identitária e racista. Construída à volta das noções de “Terra” e do “Sangue”, esta ideologia monolítica funda-se numa etnia ucraniana, entendida como um fundamentalismo branco e, portanto, como uma superioridade racial sobre os inimigos pressupostos da Ucrânia, a saber a Rússia, a Polónia e o povo judeu.

Esta visão inspira-se na maior parte no nacional-socialismo alemão e nas primeiras teses integralistas do teórico ucraniano Dmytro Donstov(link is external) (1883-1973) que considerava os russos como um povo asiático. É por isso que o SNPU adota as cores vermelha e preta da UPA mas igualmente a runa invertida Wolfstangel dos SS para simbolizar a “ideia de nação”. Para além disso, o SNPU mantém através do seu folclore – nomeadamente as numerosas marchas com tochas – a memória coletiva da UPA e da divisão da SS ucraniana, a Halychyna, glorificando desta forma a dimensão militar de combate destas organizações.

A postura extremista e provocadora do SNPU legitimou o recurso à violência para fins políticos na Ucrânia pós-soviética mas não lhe permitiu sair do seu berço eleitoral galiciano – onde tem resultados à volta de 1% – e ganhar outros territórios. Contrariamente a outros partidos nacionalistas, como o Congresso dos Nacionalistas Ucranianos, muito mais democrata e moderado, o SNPU não conseguiu obter nenhum lugar  no parlamento em 1994 e 1998.

Por isso, em 2004, os seus dirigentes Andriy Parubiy e Oleh Tyahnibok refundaram o SNPU, expurgando-o de todos aqueles símbolos neo-nazis rebatizando-o de Svoboda. Apesar do Svoboda mostrar um programa mais social, a retórica chauvinista galiciana anti-russa que denuncia a “ucraniofobia” permanece.

Ainda que o seu crescimento no conjunto do território ucraniano (10,4% dos votos nas eleições legislativas de 2012, chegando a alcançar 30% na Galícia) se deva largamente ao hibridismo do seu programa e às questões sociais ligadas às dificuldades da Ucrânia independente, convém realçar que a difusão deste nacionalismo histórico fica a dever muito às políticas memoriais empreendidas em 2009-2010 pelo presidente Yushchenko (2004-2010) que nomeará(link is external), a título póstumo, como “Heróis da Ucrânia”, Stepan Bandera bem como os principais membros e teóricos da OUN, procurando com isso promover uma memória que teria sido, no passado, atingida pelo anátema soviético. A revitalização do nacionalismo galiciano também se explica pela sua mediatização feita pelo sucessor de Yushchenko na presidência, Viktor Yanukovych (2010-2014), que procurava favorecer o crescimento do Svoboda(link is external) de forma a surgir como o garante contra o fascismo nas presidenciais de 2014.

Ao invés de se imporem como uma força suficientemente legítima, apesar da sua participação na Revolução da praça Maidan, os partidos que representavam o nacionalismo histórico caíram para segundo plano no contexto pós-revolucionário de 2014 que inaugurou definitivamente a era pós-soviética na Ucrânia. Tendo falhado nas eleições presidenciais de 2014 (Oleh Tyahnibok e Dmytro Iarosh, respetivamente candidatos da União Svoboda e do Setor Direito, obtêm apenas 1,2% e 0,7% dos sufrágios) e em seguida nas legislativas desse mesmo ano (4,7% para a lista do Svoboda e 1,8% para a do Setor Direito), o nacionalismo histórico desvaneceu-se nos anos seguintes em detrimento de um outro movimento dito “neo-nacionalista”.

Ainda que possa ser semelhante em termos de radicalidade e da importância que a sua ideologia confere ao tema nacional, o neo-nacionalismo distingue-se do nacionalismo histórico em vários pontos.

Face à polarização do país devido a novas questões identitárias, económicas e militares herdadas da dissolução da URSS, certos movimentos implantados no leste e centro do país, como a Assembleia Nacional Ucraniana – Auto-defesa Ucraniana (UNA-UNSO)(link is external), decidiram reconsiderar os paradigmas do nacionalismo ucraniano. Já não se tratava apenas da restauração das permanências etno-culturais da nação ucraniana separando-se de um império, mas de repensar o seu lugar no seu ambiente geográfico. Desta forma, o “neo-nacionalismo” opõe-se ao nacionalismo histórico ucraniano utilizando a referência a uma conceção “civilizacional” da Ucrânia que a liga à Europa pela sua herança cultural e histórica.

A emergência e a estruturação de uma força neo-nacionalista como o movimento Azov(link is external), que é o seu principal porta-estandarte desde a fundação do seu partido, batizado Corpo Nacional(link is external), a 14 de outubro de 2016, está a jusante desta mutação política favorecida pelo contexto geopolítico imediato. Centralizado à volta de Andriy Biletsky, o fundador do regimento Azov e depois do Corpo Nacional, o movimento Azov pode ser considerado como a encarnação de um “nacionalismo soldadesco” situado na interseção da extrema-direita parlamentar do Svoboda (que conta atualmente com um deputado na Rada) e dos grupúsculos paramilitares ultra-nacionalistas e neo-nazis, como os Patriotas da Ucrânia, a partir do qual o comando inicial do regimento Azov e depois do Corpo Nacional saiu maioritariamente. Aproveitando a reputação deste regimento de elite da Guarda Nacional Ucraniana, que conta com cerca de 4.000 homens, e que desempenhou um papel significativo na reconquista da cidade portuária de Mariupol(link is external), este movimento pretende tornar-se uma parte duradoura da paisagem política ucraniana.

Devido a interpretar os acontecimentos de 2014 como o advento de uma nova "ordem ucraniana(link is external)" e ao seu envolvimento militar na frente Donbass, o movimento Azov é o depositário de uma luta política que pretende não destruir um "sistema" culpado pela perda da grandeza nacional, mas sim reformulá-lo a partir do interior de acordo com os seus próprios padrões. Trata-se de uma forma de nacionalismo revolucionário que procura construir uma comunidade de destino à escala da nação.

Este projeto encontra as suas origens nos princípios da “naçãocracia” de Mykola Stsiborsky(link is external) (1897-1941) e do “social-nationalisme” de Iaroslav Stetsko(link is external) que constituirão a ideologia definitiva da OUN a partir do mês de agosto de 1939. Rejeitando tanto os princípios etnicistas e centralizadores dos regimes nazis e fascistas, bem como os princípios das democracias liberais e o coletivismo comunista, procuram recompor o Estado segundo um princípio de solidariedade e uma “Terceira Via” em que a Ucrânia não se inscreveria em nenhum dos blocos geopolíticos existentes.

Estabelecido desta forma numa rejeição do ocidente liberal e de um oriente “neo-bolchevique” e euro-asiático, o neo-nacionalismo ucraniano procura ultrapassar a complexidade das questões identitárias próprias à história ucraniana que permanece presa na escolha geopolítica e civilizacional entre a Europa e o “Mundo Russo” (Rousskiï Mir).

Ao passo que, para se afastar da órbita russa, partidos como o Svoboda se mostram favoráveis a uma adesão à Nato e a um aumento da cooperação com o Ocidente – o que lhes permite ao mesmo tempo cultivar uma certa proximidade com partidos europeus de extrema-direita dura como a União Nacional de Le Pen no seio da Aliança Europeia dos Movimentos Nacionais(link is external) –, os neo-nacionalistas, por seu turno, são maioritariamente partidários de uma “guerra perpétua” contra a Federação Russa que entendem ser – tal como o Ocidente – o principal obstáculo à criação de um Estado-Nação ucraniano plenamente consolidado e predominante no mundo eslavo.

Esta estratégia desenvolve-se atualmente à volta da União Báltica Mar Negro – Intermarium(link is external) que o movimento Azov pretende popularizar com a ajuda de uma nova direita ucraniana em formação. Organizada em torno do clube metapolítico Plomin, dirigido pela filósofa Olena Semenyaka(link is external). Mais do que estabelecer uma nova rede de alianças contra a Rússia, os neo-nacionalistas ucranianos tencionam, através da ideia do Intermarium, reanimar e enraizar a ideia de identidade e civilização europeia. Outrora periférica na Europa e à margem do debate de ideias, a extrema-direita ucraniana tenta tornar-se um ponto de convergência e de partida de uma revolução nacional pan-europeia.

Adrien Nonjon é doutorando em História pelo Inalco, Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais. O seu objeto de estudo é a extrema-direita ucraniana. Texto publicado originalmente no The Conversation a 8 de junho de 2021. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.