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Para entender a volta de Lula ao centro do palco

Fabio Luis Barbosa dos Santos e Marco Antonio Perruso, Correio da Cidadania, 16 de abril de 2021

5 de maio de 2021

A de­vo­lução dos di­reitos po­lí­ticos do ex-pre­si­dente Lula agitou a so­ci­e­dade bra­si­leira. As aná­lises con­cen­tram-se em torno da ope­ração ju­di­cial Lava Jato e das pers­pec­tivas elei­to­rais para 2022.

Há anos, a nar­ra­tiva pro­gres­sista tem res­sal­tado a per­se­guição ju­di­cial de Lula pela Lava Jato, no­ta­da­mente pelo ex-juiz e ex-mi­nistro da Jus­tiça Sergio Moro. Sem dú­vida, houve par­ci­a­li­dade e ile­ga­li­dade. Porém, isso não é ga­rantia de ino­cência para mem­bros dos go­vernos do PT e dos ou­tros par­tidos, pro­gres­sistas e con­ser­va­dores, que par­ti­ci­param do con­do­mínio de poder lu­lista entre 2003 e 2016.

En­tre­tanto, frente à de­so­ri­en­tação geral da bur­guesia bra­si­leira e à cres­cente in­sa­tis­fação po­pular, os hu­mores po­lí­ticos tem mu­dado. Se antes Lula foi en­car­ce­rado por meio de de­ci­sões ju­di­ciais po­li­ti­zadas, da mesma ma­neira foi solto de­pois, e agora, re­toma seus di­reitos po­lí­ticos. Nesta re­a­li­dade as nar­ra­tivas do­mi­nantes, seja a con­ser­va­dora seja a pro­gres­sista, de­nun­ciam como po­li­ti­ca­mente mo­ti­vados os re­sul­tados do ju­di­ciário que lhes de­sa­gradam.

Neste texto, ana­li­sa­remos os acon­te­ci­mentos re­centes à luz do mo­vi­mento geral da con­jun­tura bra­si­leira. A in­tenção é apre­ender o sen­tido desta evo­lução e suas po­ten­ci­a­li­dades, para além dos per­so­na­gens en­vol­vidos.

1. O pano de fundo da de­fe­nes­tração do PT, de Bra­sília, é a perda de efi­cácia do lu­lismo como modo de re­gu­lação das ten­sões so­ciais no país. Re­ca­pi­tu­lemos os con­tornos ge­rais do pro­cesso.

Após uma dé­cada exi­tosa, em que ar­ti­culou mo­destas me­lho­rias para os de baixo aos pri­vi­lé­gios de sempre dos de cima, uma con­ver­gência de fa­tores so­ciais, po­lí­ticos e econô­micos co­locou em xeque o lu­lismo. A con­junção entre as jor­nadas de Junho de 2013, maior ciclo de mo­bi­li­za­ções po­pu­lares da his­tória do país; os es­cân­dalos de cor­rupção, re­tra­tados como es­pe­tá­culos pela mídia cor­po­ra­tiva, que trans­formou jul­ga­mentos em no­velas e juízes em pop stars; e a de­sa­ce­le­ração econô­mica, que se des­do­brou em re­cessão a partir de 2015, mo­di­ficou a abor­dagem das classes do­mi­nantes em re­lação à re­pro­dução so­cial, que des­lizou da “con­tenção in­clu­siva” para a “ace­le­ração ex­clu­dente”.

Neste con­texto, a pedra fi­lo­sofal de um ne­o­li­be­ra­lismo in­clu­sivo cedeu lugar à in­ten­si­fi­cação da es­po­li­ação so­cial, en­quanto a ide­o­logia da con­ci­li­ação abriu alas para o en­fren­ta­mento aberto. É este o pano de fundo da de­po­sição de Rous­seff em 2016, da prisão de Lula e da vi­tória de Bol­so­naro em 2018.

2. Ao con­trário de en­tender o bol­so­na­rismo como uma re­ação ao lu­lismo, su­ge­rimos que a ten­ta­tiva pe­tista de conter a crise so­cial no sé­culo 21 im­plicou no re­curso a prá­ticas, dis­po­si­tivos e po­lí­ticas que ter­mi­naram ace­le­rando esta mesma crise. A con­tra­dição desta ló­gica, em que a ten­ta­tiva de conter o mo­vi­mento des­so­ci­a­li­zante não im­pede a sua ace­le­ração, pois im­plica em for­ta­lecer jus­ta­mente o que se pre­tende conter, pode ser cons­ta­tada em múl­ti­plos planos. Ve­jamos.

O ex-pre­si­dente mun­dial do Bank Boston, Hen­rique Mei­relles, que re­nun­ciou como de­pu­tado tu­cano em 2003 para co­mandar o Banco Cen­tral sob Lula e que de­pois, foi mi­nistro da eco­nomia sob Temer; a ten­ta­tiva do go­verno Lula de fazer li­gação di­reta com o “baixo clero” no Con­gresso, que de­satou o es­cân­dalo do “men­salão” em 2005, res­pon­dido com mais es­paço para o PMDB no go­verno, le­vando Temer duas vezes à vice-pre­si­dência na chapa de Rous­seff; o apoio de li­de­ranças ne­o­pen­te­cos­tais às ad­mi­nis­tra­ções pe­tistas, que re­sultou em re­cuos na agenda com­por­ta­mental e na no­me­ação de mi­nis­tros evan­gé­licos como Mar­celo Cri­vella; os mi­li­tares en­vi­ados ao Haiti na in­tenção de fazer do Brasil um “global player”, que, em se­guida, im­ple­men­taram o know-how ad­qui­rido em mis­sões de ga­rantia da lei e da ordem no­ta­da­mente no Rio de Ja­neiro, e que agora formam o pri­meiro es­calão do go­verno Bol­so­naro; as cons­tru­toras, que não he­si­taram em mandar para a ca­deia, em de­la­ções reais ou ima­gi­ná­rias, aqueles que lhes abriram ca­minho para ga­nhar di­nheiro como nunca; isso para não falar em mo­vi­mentos so­ciais en­vol­vidos por po­lí­ticas pú­blicas vi­sando neu­tra­lizar sua com­ba­ti­vi­dade, em lugar de im­ple­mentar suas ban­deiras (como a re­forma agrária e ur­bana), re­sul­tando, treze anos de­pois, em um campo po­pular di­vi­dido, de­bi­li­tado e des­pres­ti­giado.

Em re­sumo, os mi­li­tares, os bancos, o PMDB, o vice-pre­si­dente Mi­chel Temer, o ne­o­pen­te­cos­ta­lismo, as em­prei­teiras, a pas­si­vi­dade, foram todos ali­men­tados e cul­ti­vados, em seu mo­mento, pelos go­vernos pe­tistas. Neste quadro, a fi­gura de imagem mais ade­quada da re­lação entre a de­fe­nes­tração do PT e a as­censão de Bol­so­naro não é uma gui­nada de 180 graus, mas uma me­tás­tase, na me­dida em que forças e in­te­resses cor­ro­sivos, cujo poder nunca foi de­sa­fiado e que pa­re­ciam con­tro­ladas sob o pe­tismo, se es­pa­lharam in­con­teste pelo te­cido na­ci­onal.

3. Face à agu­di­zação da vi­o­lência econô­mica e da vi­o­lência po­lí­tica, Bol­so­naro ofe­rece para a classe do­mi­nante a mol­dura deste ne­o­li­be­ra­lismo au­to­ri­tário, que é o Es­tado po­li­cial. Sem ter um pro­grama pró­prio, ter­cei­rizou a gestão da eco­nomia para um ge­nuíno Chi­cago boy, que além de es­tudar na es­cola de Milton Fri­edman tra­ba­lhou no Chile pi­no­che­tista nos anos 1980. Como re­cheio, avança uma agenda com­por­ta­mental, cul­tural e ci­en­tí­fica re­tró­gada - que a elite to­lera, mas não adora.

Seu apoio ao ex-ca­pitão se con­sumou como um ca­sa­mento de con­ve­ni­ência, já que o seu ideal é um bol­so­na­rismo sem Bol­so­naro. En­tre­tanto, o mi­litar tem ideias pró­prias, que apontam para uma di­nastia (tem três fi­lhos na po­lí­tica), tendo como par­tido os mi­li­tares, e como base so­cial os evan­gé­licos. Deste ponto de vista, seu maior de­safio é con­verter o apoio vir­tual que o elegeu em mo­bi­li­zação real. Trans­formar in­ter­nautas em ca­misas ne­gras (mi­lí­cias fas­cistas).

4. Neste quadro, qual seria a di­fe­rença fun­da­mental entre o go­verno Bol­so­naro e as ges­tões pe­tistas que lhe an­te­ce­deram? Crí­ticos do pro­gres­sismo sul-ame­ri­cano, como nós, alegam que, ao re­nun­ciar a en­frentar as raízes es­tru­tu­rais da de­si­gual­dade e da de­pen­dência, o go­verno pe­tista e seus si­mi­lares se re­sig­naram a uma gestão da crise. O go­verno Bol­so­naro, por outro lado, não se propõe a fazer gestão al­guma, pois ele go­verna por meio da crise.

De­pa­ramo-nos com formas di­fe­rentes de lidar com a agu­di­zação das ten­sões no ne­o­li­be­ra­lismo. O pro­gres­sismo se propõe a gerir estas ten­sões por meio de um ar­senal de best­prac­tices ava­li­zada pelo Banco Mun­dial. É uma con­tenção da crise. Já os Bol­so­naros deste mundo ad­mitem o ca­ráter au­to­fá­gico do ne­o­li­be­ra­lismo (uma luta de todos contra todos) e pro­metem armar as pes­soas para que elas se de­fendam, ata­cando – como ele pró­prio faz. É uma ace­le­ração da crise.

Em ou­tras pa­la­vras, en­quanto uns pro­curam o freio, ou­tros pisam no ace­le­rador. Mas nin­guém ques­tiona o trilho.

5. Em se­tembro de 2020 mais de mil bra­si­leiros mor­riam por dia ví­timas da covid-19 e o país es­tava há quatro meses sem mi­nistro da Saúde. No en­tanto, neste mês a po­pu­la­ri­dade de Bol­so­naro atingiu o seu nível mais alto. Como ex­plicar?

Do ponto de vista dos de baixo, des­ta­cavam-se dois fa­tores. Por um lado, o pre­si­dente não era (ainda) res­pon­sa­bi­li­zado pelas mortes. Por outro lado, o au­xílio emer­gen­cial, de valor quatro vezes maior, para quatro vezes mais fa­mí­lias, sus­tentou a po­pu­la­ri­dade de Bol­so­naro in­clu­sive no Nor­deste do país, an­te­ri­or­mente ca­ti­vado pelo Bolsa Fa­mília lu­lista.

En­quanto isso, em Bra­sília, o pre­si­dente tinha com­prado o amor do Cen­trão. Ao mesmo tempo, Bol­so­naro en­saiava uma versão menos ide­o­ló­gica de si pró­prio, pa­ci­fi­cando as re­la­ções com o Su­premo Tri­bunal Fe­deral e a mídia cor­po­ra­tiva. O grande ca­pital sau­dava a mu­dança, con­fi­ando que a es­ta­bi­li­dade lhe per­mi­tiria avançar sua pró­pria agenda.

O pa­ra­doxo era no­tável. Para com­pensar a queda no apoio entre a elite e as classes mé­dias que não com­praram o ne­ga­ci­o­nismo, Bol­so­naro se­guia o ca­minho do lu­lismo: for­ta­lecer os laços entre os mais po­bres, re­sig­nando-se ao prag­ma­tismo po­lí­tico – e por esta via, cos­tu­rava a es­ta­bi­li­dade an­siada pelo ca­pital.

Será que o pre­si­dente, que mer­gu­lhou o país na pan­demia vi­sando uma "re­vo­lução in­ver­tida" à moda do fas­cismo, se rein­ven­taria no molde de um "lu­lismo in­ver­tido"? O mesmo pro­blema pode ser visto de um ân­gulo di­fe­rente: será que a elite que an­seia por um "bol­so­na­rismo sem Bol­so­naro" fi­caria sa­tis­feita com um "Bol­so­naro sem bol­so­na­rismo"?

Em todo caso, se evi­den­ciou que o bol­so­na­rismo não é o con­trário do lu­lismo, mas o seu in­verso: assim como a “con­tenção” im­plica em “ace­le­ração”, a “ace­le­ração” exige “con­tenção”.

6. Porém, pas­sado mais de um ano de pan­demia, a si­tu­ação é ca­tas­tró­fica. Há dias em que mais de três mil bra­si­leiros morrem de covid-19. Os hos­pi­tais estão lo­tados, a va­ci­nação pouco avança e pro­blemas de saúde mental se mul­ti­plicam. Me­didas de iso­la­mento se im­põem sobre uma classe média es­tres­sada, mas são in­viá­veis para uma po­pu­lação tra­ba­lha­dora que já não re­cebe o au­xílio-emer­gen­cial. No Brasil, nin­guém en­xerga o fim da peste.

Con­fron­tada com uma tra­gédia hu­ma­ni­tária, com uma crise econô­mica que só se agrava, acen­tuada pela de­te­ri­o­ração da imagem in­ter­na­ci­onal do país, vozes do es­ta­blish­ment evocam uma pac­tu­ação so­cial. O li­be­ra­lismo cos­mo­po­lita con­testa o na­ci­o­na­lismo re­a­ci­o­nário do pre­si­dente: apenas o ne­o­li­be­ra­lismo os une.

É neste ce­nário que Lula re­cu­perou os seus di­reitos po­lí­ticos.

7. A pri­meira con­sequência da no­vi­dade foi que o pes­si­mismo di­ante da bola de neve bol­so­na­rista deu lugar a um oti­mismo mes­si­â­nico. Este sen­ti­mento não é novo: pouco antes da pan­demia, o res­pei­tado líder do MST, João Pedro Sté­dile, de­clarou: “Lula tem de ser nosso Moisés, con­vencer o povo a atra­vessar o Mar Ver­melho. Não há outro per­so­nagem que possa cum­prir esse papel”.

O outro lado da mesma moeda é que se con­so­lidam as chances de Bol­so­naro con­cluir seu man­dato. Mais do que nunca, as ener­gias po­lí­ticas se ca­na­lizam para uma can­di­da­tura Lula em 2022, em lugar de um im­pe­a­ch­ment.

Quem acre­dita que o PT apos­tará na pressão das ruas deve en­tender que isso é uma im­pos­si­bi­li­dade ló­gica. O apelo po­lí­tico de Lula re­side na con­ci­li­ação, que im­plica jus­ta­mente em evitar que trans­borde o des­con­ten­ta­mento po­pular. O seu jogo é jo­gado na pe­quena po­lí­tica de Bra­sília, não nas ruas.

A es­pe­rança agora é que a es­querda “res­pon­sável” re­torne à Bra­sília para ad­mi­nis­trar o que so­brar do país em 2023.

8. Não é pos­sível saber se a hi­pó­tese Lula pros­pe­rará. Mas é pos­sível saber duas coisas.

Em pri­meiro lugar, o mo­vi­mento da classe do­mi­nante na di­reção de uma mo­da­li­dade mais vi­o­lenta e au­to­ri­tária de ne­o­li­be­ra­lismo não se mo­di­fi­cará. Aos seus olhos a es­tru­tura ins­ti­tu­ci­onal pre­vista pela “Cons­ti­tuição Ci­dadã” de 1988 se tornou ana­crô­nica. A utopia da ci­da­dania sa­la­rial se foi, sem nunca re­al­mente ter che­gado.

A se­gunda cer­teza é que uma volta pe­tista apenas re­me­diará, na me­lhor das hi­pó­teses, a crise ci­vi­li­za­tória que vi­vemos. Po­demos supor que, se o PT es­ti­vesse hoje na pre­si­dência, faria o seu me­lhor para cons­truir uma arca sal­va­dora no di­lúvio da pan­demia, sem co­locar em xeque quais­quer pa­râ­me­tros da re­pro­dução ne­o­li­beral no Brasil. Em suma, faria o me­lhor pos­sível, onde o pos­sível é pouco.

En­quanto isso, a di­nâ­mica so­cial que faz do co­ti­diano uma luta de todos contra todos, em um mundo onde o tra­balho se torna es­casso e as balas abundam, se agra­varia.

9. Como no ro­mance “O mé­dico e o monstro”, con­tem­plamos no Brasil duas faces dis­tintas de um mesmo su­jeito. Ou para ser mais pre­ciso, nos de­pa­ramos com duas formas di­fe­rentes, mas não con­tra­di­tó­rias, de ma­nejar a des­so­ci­a­li­zação au­to­fá­gica que ca­rac­te­riza o ne­o­li­be­ra­lismo: uma é a con­tenção; a outra, a ace­le­ração.

Também se cons­tata um pa­ra­doxo, na me­dida em que o pro­gres­sismo fora do go­verno se con­verte em uma po­lí­tica res­tau­ra­ci­o­nista, exor­tando à volta a um pas­sado ide­a­li­zado, en­quanto a di­reita se po­si­ciona a favor do mo­vi­mento da his­tória – a favor do “pro­gresso”, que só pode con­duzir à bar­bárie.

Fabio Luis Bar­bosa dos Santos é pro­fessor da Uni­fesp, autor de Uma his­tória da onda pro­gres­sista sul-ame­ri­cana (Ele­fante, 2019) e Marco An­tonio Per­ruso é pro­fessor da UFRRJ e co-or­ga­ni­zador de O Pâ­nico como po­lí­tica - o Brasil no ima­gi­nário do lu­lismo em crise (Mauad, 2020).