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Paridade de gênero chega ao Judiciário chileno

14 de abril de 2022

O Estado deve garantir que as nomeações ao Sistema de Justiça respeitem o princípio da igualdade

Mais uma vez, lenços e cartazes verdes e roxos inundaram a Convenção Constitucional chilena quando após a aprovação de uma norma que abre caminho para a paridade e a abordagem de gênero no Judiciário. A inovação política pode servir de exemplo para a América Latina. Apesar da maioria dos países da região terem cotas para mulheres na política, ainda carecem de igualdade de gênero nos sistemas judiciais.

Se os chilenos aprovarem a nova Constituição este ano, todos os órgãos do Sistema Nacional de Justiça terão que se reger pela paridade e pela perspectiva de gênero, além de garantir a igualdade substantiva. A norma chegou ao anteprojeto da nova Carta Magna com o apoio de 115 constituintes, contra 24 que votaram contra e 13 que se abstiveram.

Esta norma traduz-se em duas ações concretas: primeiro, prevê que o Estado deve garantir que as nomeações no Sistema Nacional de Justiça respeitem o princípio da paridade em todos os órgãos da jurisdição, incluindo a nomeação das presidências; e segundo, que os tribunais devem incluir uma perspectiva de gênero em suas decisões.

Bárbara Sepúlveda, advogada e constituinte do Partido Comunista, argumentou perante o plenário da Convenção que este último ponto era necessário porque "das poucas mulheres que podem aceder à justiça por razões econômicas, a maioria tem suas causas de violência de gênero transformadas em julgamentos sobre sua vida íntima, comportamento sexual, sobre suas escolhas e erros pessoais. O foco, que deveria estar na agressão, é desviado para o julgamento moral.”

A constituinte independente Ingrid Villena completa: "Isso significa que, dentro da função de administrar a justiça, não apenas juízes, mas também funcionários públicos, e também qualquer outro operador de justiça, da polícia a garçons, todos devem tratá-lo com respeito. Que vítimas de violência doméstica, por exemplo, não precisem passar por agressões cinco ou seis vezes; evitar que o sistema não dê credibilidade a suas histórias, ou insultem as vítimas com comentários como, 'E você estava bêbada?' ou 'Por que você estava na rua?".

Nesse contexto, a aprovação dessa norma empolgou as constituintes feministas e acadêmicos e juristas, que qualificaram o evento como "histórico". Isso porque, embora a abordagem de gênero na justiça já exista no Chile e tenha sido aplicada em muitos casos, ainda depende dos critérios de cada magistrado.

Desde 2017, o Judiciário chileno conta com uma Secretaria Técnica para a Igualdade de Gênero e a Não Discriminação, que inclusive emitiu um "Caderno de boas práticas para incorporar a Perspectiva de Gênero nas sentenças". Em 2021, houve até uma disputa judicial com essa perspectiva, à qual se aplicaram 34 sentenças.

No primeiro caso, o juiz reconheceu que duas mulheres eram mães de uma criança e ordenou que o Registro Civil o registrasse como tal. No segundo, o juiz condenou um homem em um caso de violência doméstica em que a mulher sempre voltava para seu agressor, pois levou em consideração que a mulher não podia terminar o relacionamento devido à "disparidade de poder [que] a impede de enfrentá-lo e de se afastar de sua influência.”

Existe uma cultura no sistema judicial de rejeição e recusa em aplicar a perspectiva de gênero

Mas nem sempre os magistrados seguem as recomendações da secretaria. “Infelizmente, fica à critério de quem quer implementar essas boas práticas. O que os vários estudos nos mostram é que existe uma cultura no sistema judicial de rejeição e recusa em aplicar a perspectiva de gênero como uma boa prática que protege igualdade perante a lei”, explica Daniela López, fundadora do escritório de advocacia feminista AML Defensa de Mujeres (Defesa de Mulheres), e acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade Central.

Segundo López, sua constitucionalização é vital, “porque estabelece um mandato obrigatório do Estado para formar e aplicar a perspetiva de gênero, uma vez que os operadores de justiça têm demonstrado apatia em fazê-lo, perpetuando a reprodução de preconceitos e estereótipos de gênero. Isso gera desigualdade e discriminação pelo simples fato de se ser mulher na sociedade”, conclui.

Paridade nas nomeações e no debate

Em termos de paridade nas nomeações, também será um avanço substancial. Hoje, dos 21 ministros da Suprema Corte, apenas 8 são mulheres. De fato, entre 1823 e 30 de março de 2021, foram nomeados 216 ministros e 11 ministras, segundo dados do próprio Judiciário. No entanto, nos tribunais de primeira ou segunda instância, há mais juízas do que juízes.

A norma gerou debate: por um lado, os representantes de centro-direita na Convenção Constituinte argumentaram que os juízes deveriam se basear apenas na justiça.

Por outro, a conhecida magistrada Karen Atala – que processou o Estado do Chile por uma sentença em que perdeu a custódia de suas filhas por ser lésbica – assegurou em entrevista ao jornal La Tercera que "não é necessário incluir uma perspectiva de gênero na nova Constituição. Nós juízes já o fazemos”. Além disso, argumentou que a correção da paridade de gênero poderia prejudicar as juízas, por exemplo, que são maioria nos tribunais.

Se a Constituição for aprovada, o Chile seguirá os passos da Argentina e do México, que já incluem normas similares em suas Constituições.

Na Argentina, por exemplo, o feminicídio da Micaela García, de 21 anos, levou a uma lei que estabelece a obrigatoriedade de treinamento em gênero e violência de gênero para todos os funcionários públicos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E, no México, entrou em vigor, em 2019, uma reforma da Constituição que garante que metade dos cargos decisórios sejam dados a mulheres nos três poderes do Estado, em órgãos autônomos e candidaturas partidárias, entre outros.

Os três países podem servir de exemplo para abrir a discussão sobre a paridade e a abordagem de gênero na justiça para toda a América Latina.