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Perspectivas da pandemia: fadiga, segunda onda e vacinas

15 de setembro de 2020

Apresentação do dossiê

Neste domingo, 13 de setembro, morreram no Brasil de covid-19, segundo os dados oficiais, 874 pessoas; disputamos o campeonato de mais óbitos diários no mundo com os EUA e a Índia. Entretanto, a média de mortes diárias no Brasil caiu, nas últimas duas semanas, de mais de mil para cerca de 800 a 900, o que leva o governo e setores da mídia a apontarem perspectivas otimistas de controle da pandemia. Parte da população também quer considerar que a epidemia estaria sendo superada. Mas nada, no Brasil e no mundo, justifica este otimismo.

A pandemia, iniciada há apenas oito meses, já matou oficialmente mais de 917 mil pessoas - sendo 190 mil nos EUA e 131 mil no Brasil (o terceiro colocado, a Índia tem pouco mais da metade dos mortos do Brasil, 75 mil). No mundo são 28 milhões de casos (6,5 milhões nos EUA, 4,75 na Índia, 4,3 no Brasil e pouco mais de um milhão no quarto colocado, a Rússia). Neste 13 de setembro, tivemos um novo recorde global diário de número de novos casos, 308 mil casos - 5.537 mortes nas últimas 24 horas. A Índia vem registrando recordes diários, 94.372 novos casos só neste domingo! Há uma evidente relação entre governos conservadores radicais e a maior incidência da doença. O controle da pandemia exige um alto grau de coesão social, o oposto das políticas divisivas da extrema direita, a defesa dos negócios acima de tudo ou a apologia do individualismo egoísta feita pelo neoliberalismo - como diz Michael Sandel.

Por outro lado, a covid-19 é tudo menos uma doença conhecida. Ela foi entendida, em um primeiro momento, apenas como uma síndrome respiratória, mas é uma doença sistêmica muito complexa, que pode produzir sintomas inflamatórios em todo o corpo. Tão importante quanto as vítimas fatais, são aqueles que sofrem as sequelas - não sabemos ainda quão temporárias ou permanentes - das pessoas acometidas pelo vírus, mesmo as mais novas. Ninguém efetivamente compreende todos os mecanismos de contagio nem as possibilidades de reinfecção, que estão sendo constatadas e que terão impacto sobre as eventuais vacinas. Mesmo medidas como o uso das máscaras revelam-se um experimento social e sanitário inédito, que surpreende os pesquisadores - aparentemente reforçando a imunidade de seus usuários ao expô-los a pequeníssimas quantidade de vírus e ajudando muito a conter a severidade da enfermidade (Gandhi e Rutherford falam de uma "variolização", que estaria ajudando a reduzir a severidade da doença). Estudos matemáticos verificam a formação de "bolhas sociais", que reduzem também a velocidade de difusão do vírus - que segundo modelizadores e epidemiologistas ajudariam a explicar a redução da pandemia em São Paulo.

A Covid-19 - causada pelo vírus Sars-CoV-2 - é uma doença que, pelo seu meio de transmissão, tem uma enorme capacidade de difusão, a mais importante pandemia global desde a da H1N1 na sua forma da gripe espanhola de 1919 - segundo alguns estudos, com uma taxa de morbidade maior. Graças ao patamar atual de conhecimentos técnico-científicos e aos dispositivos de saúde pública, a situação não é tão devastadora do ponto de vista sanitário, e justamente os mecanismos de amparo das vítimas externaliza seus impactos para o tecido social de conjunto - sempre dentro das relações de poder estabelecidas. A medicina está melhorando os tratamentos, e reduzindo a percentagem de vítimas fatais em relação ao início da pandemia, e mesmo o tempo médio de internação. Há uma corrida inédita na história por vacinas. Não se aceitam mais as cenas dantescas que um desbordamento do sistema sanitário - considerado evitável - acarreta. Isso também associa-se à maiores precauções que as faixas etárias mais velhas da população estão tendo em seus comportamentos; o aumento mais significativo do número de casos está hoje ocorrendo, por todo o mundo, mas também no Brasil, entre jovens adultos que acreditam que não vão desenvolver os sintomas da doença. Mas, como coloca, corretamente, Esper Kállas na Folha de S.Paulo de 13 de setembro, o Sars-CoV-2 é "O vírus que veio para ficar".

Há também uma gradativa normalização da convivência com a pandemia. As medidas de isolamento tomadas pelo mundo afora estão associada à situação de classe; trabalhadores precarizados só podem cumprir quarentenas com políticas de amparo social. Muitos setores afluentes passaram a adotar o trabalho remoto, mantendo um isolamento social duradouro - que, como mostrou uma pesquisa do IBGE, se tornou um indicador de desigualdade social. A fadiga com as precauções que a pandemia exige, de outro lado, começa a se tornar insustentável para maiores parcelas da população de várias perspectivas: econômica (fruto da falta de proteção social); social (pelo acirramento das desigualdades que já eram enormes, mas agora se irradiam em todas as faces da sociedade - da comunicação à educação, das relações intergeracionais às interregionais...); sanitária (com o impacto sobre outras doenças e a funcionalidade geral dos sistemas de saúde); e psíquica (com uma pandemia de doenças mentais).

Isto leva à que parcelas da população, em especial jovens, busquem desesperadamente voltar às antigas rotinas de sociabilização e multipliquem, por exemplo, festas ou raves clandestinas. Emergem, ao mesmo tempo, os protestos contra as medidas de distanciamento e isolamento social (os protestos anti-máscaras impulsionados não apenas pela extrema-direita, mas por setores sociais díspares...). E, como pano de fundo, uma crescente pressão dos empresários para que os negócios voltem a ser o que eram. Nem a aparente normalização, nem a fadiga social, nem a pressão das empresas resolvem o problema da pandemia. Não vamos, tampouco, voltar a situação pré-pandemia.

A curva epidemiológica da covid-19 é muito diversa. O combate à pandemia não foi coordenado internacionalmente; o governo Trump nos EUA trabalhou para solapar e mesmo destruir a Organização Mundial de Saúde. O resultado são reações nacionais dispares, que impedem que trabalhemos hoje com uma resposta coordenada à crise sanitária. Não se pode comparar detidamente as respostas, para além de padrões gerais: governos responsáveis e governos irresponsáveis perante a saúde da população, governos que depois de uma primeira respostas severa aliviaram as quarentenas em nome da reativação da economia, países que conheceram disputas políticas internas etc. O fato é que quando países que implantaram medidas fortes de controle sanitário - as vezes tirânicas, como no caso da China - relaxam estas iniciativas, a pandemia recrudesce e fala-se de uma segunda onda. Isso não tem sentido nos países que não conseguiram conter a pandemia e no máximo achataram um pouco a curva de contágio (no caso do Brasil ou dos EUA, graças à iniciativas de alguns governadores).

As matérias do dossiê abaixo

Para a imensa maioria da sociedade, diz a cientista-chefe da OMS na matéria abaixo, a pandemia deve durar pelo menos mais um ano antes que vacinas estejam massivamente disponíveis. Não se trata apenas de desenvolver a vacina, mas também de sua eficácia, número de doses, preço, produção e distribuição, modelos de vacinação, etc. Daí o horizonte de 2022.

Por outro lado, mesmo em quadros críticos como o de São Paulo, no Brasil, é possível melhorar parcialmente a curva epidemiológica da covid-19 - ainda que com um alto custo social. Como relata Beatriz Jucá na segunda matéria abaixo, a partir das entrevistas de Paulo Lotufo e Rafael Lopes, São Paulo é o estado que está puxando a redução do platô da curva brasileira. E, como finaliza Lopes, "os números de óbitos parecem estar melhorando, mas ainda não significam um controle. Nossa estratégia nunca foi de conter casos, mas de administrar os casos graves e os óbitos. O Brasil ainda tem muito por fazer para conseguir controlar a pandemia”.

A questão da vacina abre um enorme leque de problemas médicos, políticos e sociais: as dificuldades científicas e técnicas de desenvolvimento das vacinas, os prós e contras de cada uma (com os reveses no seu desenvolvimento), o papel das corporações privadas (a Big Pharma) e seu parasitismo político, o nacionalismo e o globalismo na corrida pelas vacinas, as prioridades de vacinação, a definição do que são expectativas realistas de tempo e alcance no uso social das vacinas, etc. As três últimas matérias do dossiê discutem estes temas, que ainda serão objeto de muitos debates pelo menos nos próximos um ou dois anos. Na edição de 9 de setembro do boletim Outra Saúde, Maíra Mathias e Raquel Torres discutem um leque grande de temas ligados aos percalços no desenvolvimento da vacina da Astrazeneca. Já as matérias de Mariella Bussolati e de Justin Delépine tratam de problemas econômicos, políticos e éticos postos para o atual modelo de desenvolvimento da vacina.

José Correa, 13 de setembro de 2020

OMS reduz expectativas e acredita que vacina contra a covid-19 não estará disponível antes de 2022

Cientista-chefe da organização indica que em meados de 2021 será possível começar a imunizar apenas os grupos de risco e assinala que os primeiros a receber a vacina deverão ser os profissionais de saúde

El Pais Brasil, com Manuel Ansede e Efe, 9 de setembro de 2020

A cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS), Soumya Swaminathan, alertou nesta quarta-feira que não acredita que as possíveis vacinas contra a covid-19 estejam disponíveis para a população em geral em menos de dois anos, embora os primeiros grupos de risco possam ser imunizados a partir de meados de 2021. Na semana passada, uma porta-voz da OMS, Margaret Harris, tinha dito que não esperava uma vacinação generalizada “antes de meados de próximo ano”.

Naquela ocasião, a OMS considerou alentador que várias vacinas estejam na fase 3 de estudos, mas alertou que “ainda há um trecho a percorrer”. Ao mesmo tempo, uma publicação confirmava que a vacina russa apresentava “resultados esperançosos”. Nesta quarta-feira, no entanto, a corrida pela imunização sofreu um baque, porque a AstraZeneca e a Universidade de Oxford interromperam seus testes após detectar que um dos voluntários teve uma doença ainda inexplicada, que está sendo investigada.

No mundo existem pelo menos 179 vacinas experimentais contra o coronavírus, e 34 delas já estão sendo testadas em humanos, segundo o registro da OMS. Mas os protótipos devem passar por três fases: uma primeira etapa, com dezenas de voluntários saudáveis, para descartar efeitos graves; uma segunda, com centenas de pessoas, para avaliar a resposta imune induzida, ajustar a dose e confirmar a segurança, e a chamada fase 3, em que a vacina experimental deve demonstrar que é segura e eficaz em ensaio com dezenas de milhares de pessoas por meses. “Muitos acham que no início do próximo ano chegará uma panaceia que resolverá tudo, mas não será assim: há um longo processo de avaliação, licenciamento, fabricação e distribuição”, enfatizou Swaminathan em uma sessão de perguntas e respostas com internautas nas redes sociais.

A especialista indiana indicou que o cenário mais otimista com que a organização trabalha é o de que os primeiros lotes de vacinas cheguem a vários países em meados de 2021, quando deverá ser dada prioridade aos grupos de maior risco, já que ainda não haverá doses suficientes para toda a sociedade. “Pela primeira vez na história, precisamos de bilhões de doses de uma vacina”, afirmou a cientista-chefe da OMS, lembrando que, para as campanhas anuais de vacinação em massa contra outras doenças, são necessárias no máximo centenas de milhões de doses.

Atualmente, a Comissão Europeia já tem acordos preliminares para comprar mais de 1,1 bilhão de doses de cinco vacinas experimentais diferentes contra o coronavírus: 300 milhões da candidata de Oxford; outros 300 milhões em desenvolvimento pela multinacional francesa Sanofi e pela britânica GSK; 225 milhões do protótipo da empresa alemã de biotecnologia Curevac; 200 milhões da empresa americana Johnson & Johnson, e 80 milhões de doses da também americana Modern. Todas essas vacinas ofereceram resultados promissores até o momento, mas nenhuma tem resultados garantidos.

Quem deve receber a vacina primeiro
Na seleção dos grupos prioritários para receber a vacina, a especialista insistiu que “os profissionais de saúde devem ser os primeiros, e assim que chegarem mais doses devem ser vacinados os mais velhos, as pessoas com outras doenças, para assim ir cobrindo cada vez mais a população, um processo que levará dois anos”. Até lá, “as pessoas devem ser disciplinadas”, ressaltou Swaminathan, indicando que devem ser mantidas as medidas preventivas atuais (como distanciamento físico, uso de máscara, higienização das mãos) ou semelhantes.

A cientista também explicou aos internautas como funciona o Covax, iniciativa com que a OMS e outras organizações internacionais ajudam financeiramente na pesquisa de vacinas contra a covid-19 em troca de que seja garantida a distribuição dessas vacinas em todo o mundo, não apenas nos países mais ricos.

Swaminathan destacou que cerca de cem países em desenvolvimento podem ser beneficiados com esse programa, e disse que mais de 70 manifestaram interesse em participar. Para isso, o Covax está em negociações com as principais empresas e instituições que pesquisam vacinas contra a covid-19 do mundo para adquirir grandes quantidades de doses quando sua eficácia e segurança forem comprovadas.

“Alguns fabricantes propõem preços de custo, enquanto outros sugerem que sejam maiores ou menores dependendo de um país ser mais ou menos rico”, revelou a especialista a respeito das negociações com as farmacêuticas. Sobre o preço aproximado das doses, Swaminathan indicou que, atualmente, parece que poderia oscilar entre 2 e 30 dólares (10,60 e 158,80 reais), mas ressalvou que o mercado “é muito dinâmico” e o valor “mudará à medida que mais vacinas forem disponibilizadas”.

Ela também lembrou que a maioria dos países “vacina sua população gratuitamente ou quase sem custo” direto para o bolso dos pacientes. O Covax faz parte do programa da OMS denominado Acelerador ACT, que cobre não só vacinas, como também ferramentas de diagnóstico e terapias para os pacientes com coronavírus. Quatro meses depois do lançamento dessas iniciativas para garantir acesso universal às ferramentas contra a pandemia, foram feitos “grandes progressos”, assegurou Swaminathan, acrescentando que a rapidez com que vacinas e medicamentos estão sendo pesquisados não prejudicará a segurança do paciente.

São Paulo puxa queda de mortes por covid-19 no país, mas é cedo para cravar controle da pandemia


Após meses de óbitos na média diária acima de mil, país registra redução, mas especialistas recomendam cautela na análise. Tendência é que transmissão do vírus continue num patamar mais baixo

BEATRIZ JUCÁ, El País Brasil, 10 de setembro de 2020

Depois de um longo platô contabilizando todos os dias uma média de mais de mil mortes por coronavírus, há duas semanas o Brasil apresenta uma queda nos novos óbitos notificados. Dados oficiais do Ministério da Saúde mostram que o país tem registrado uma média entre 800 e 900 mortes diárias nas duas últimas semanas epidemiológicas ― entre 23 de agosto e 5 de setembro. Uma tendência de redução na média móvel de mortes por covid-19 também é observada no levantamento feito pelo consórcio da imprensa com dados das secretarias estaduais da Saúde. Os números podem soar animadores, mas ainda é cedo para cravar que o país está controlando a pandemia.

Especialistas afirmam que os dados nacionais precisam ser interpretados com cautela, já que a queda pode estar sendo impulsionada pela redução de óbitos apresentada nos populosos Estados de São Paulo e Minas Gerais. A tendência é que, nacionalmente, o Brasil siga vivenciando a transmissão do vírus em um patamar mais baixo, mas os estágios da epidemia ainda são muito diversos nas regiões. “A impressão que dá é que o que está puxando [a queda nacional] para baixo é o Estado de São Paulo. Alguns Estados ainda estão subindo, mas o impacto de São Paulo é forte porque é um Estado muito populoso. E outros locais não estão com a aceleração inicial”, afirma o epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, Paulo Lotufo. Desde o começo da crise, São Paulo apresenta os maiores números absolutos tanto de casos de covid-19 quanto de óbitos. A queda representativa do Estado, o mais populoso do país e que apresenta queda de óbitos há quatro semanas, impacta as estatísticas nacionais.

Lotufo explica que a capital paulista já apresentava uma queda no número de mortes, mas apenas nas últimas semanas essa tendência tem se apresentado no interior do Estado. “No início da crise, várias cidades do interior estavam bastante reticentes e fecharam [as atividades]. Mas vieram aberturas precipitadas que os obrigaram a fechar novamente. Isso está impactando na atual redução de óbitos”, analisa o epidemiologista. A queda de óbitos de São Paulo apresenta uma curva bastante íngreme no gráfico apresentado do Ministério da Saúde, embora o documento não apresente números específicos da queda do Estado.

O Observatório Covid-19 BR, que acompanha os dados da pandemia desde o começo da crise, concorda que há uma queda de óbitos em São Paulo, confirmada inclusive com a correção estatística feita por conta dos atrasos que existem na notificação das novas mortes. “A possibilidade de queda de óbitos por covid-19 no Brasil existe, é real. Mas a gente ainda tem que esperar algum tempo para saber se essa queda é efetiva ou se há influência do atraso de notificações”, explica Rafael Lopes, membro do Observatório. Ele também diz que é preciso considerar o peso da queda apresentada por São Paulo nos dados nacionais. “Quando se olha o Brasil inteiro, temos que considerar as diferenças na dinâmica e no momento epidêmico nas várias regiões. Uma queda de óbitos em São Paulo sempre vai pesar mais nos dados nacionais que do Ceará, porque o tamanho das populações são muito diferentes”, explica.

O último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde aponta que São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais apresentaram os maiores números de novos óbitos na semana epidemiológica que vai de 30 de agosto a 5 de setembro, mas os três demonstraram redução na cifra em relação à semana anterior. Amazonas apresentou um incremento considerável, mas o Estado estaria incluindo agora mortes que estavam em investigação. Estados do Sul e Centro-Oeste, que começaram a crise com menos casos e apresentaram crescimento nos últimos meses, têm apresentado uma desaceleração no número de mortes por covid-19.

 

Gráfico do Ministério da Saúde mostra queda de óbitos na média das duas últimas semanas epidemiológicas.REPRODUÇÃO DO BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO

 

Para se ter uma noção melhor do momento atual da epidemia, é importante olhar para os dados de mortes por síndrome respiratória aguda grave ―uma complicação de outras gripes e da covid-19― pela data de início dos sintomas. Nessa análise, o Ministério da Saúde também observa um arrefecimento. “Fazendo o desconto das últimas semanas [que devem ser desconsideradas por conta do atraso de notificação], a gente vê que há uma tendência de redução dos óbitos”, observa o secretário substituto de Vigilância em Saúde, Eduardo Macário. Já em relação aos novos casos de infecção por coronavírus, o Ministério da Saúde aponta que houve um incremento de 5% nesta semana. Segundo a pasta, essa variação representa uma tendência à estabilidade.

 

Dados de óbitos por síndrome respiratória aguda grave.REPRODUÇÃO DO BOLETIM DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

 

“A grande mensagem na hora de olhar os números da epidemia é ter cautela. A epidemia, em todos os níveis ―nacional, estadual ou municipal― é sempre resultado de ações humanas. E aí, por mais que as pessoas estejam se movimentando mais, estão usando mais máscaras e se protegendo”, afirma Rafael Lopes. Muitos locais do Brasil estão cada vez mais ampliando o relaxamento das quarentenas, mas o pesquisador afirma que o comportamento social menos severo que o do lockdown não pode minimizar a importância das medidas de segurança. “A queda é de mil pra 800 mortes. É expressiva, mas não significa que a coisa está bem. De modo algum significa que pode abrir mão dos cuidados”, acrescenta.

No mundo inteiro, epidemiologistas alertaram há meses para o risco de uma segunda onda de contágio em países que atingiram o pico e depois apresentaram relativo controle da epidemia. A Espanha, por exemplo, tem identificado novos focos de epidemia no país, mas a situação está distante da primeira onda vivenciada pelo país. Outros países europeus também não apresentaram novos surtos tão grave quanto o da chamada primeira onda. O epidemiologista Paulo Lotufo evita falar na possibilidade de uma segunda onda quando se analisa uma epidemia desconhecida há oito meses e que ainda não se sabe sobre sua sazonalidade. “Eu tenho muito medo de ficar trabalhando com essa disputa de nomenclatura que não auxilia em nada. O que está claro é que o vírus não foi embora, ele continua aí. Todo cuidado ainda é pouco”, afirma.

Lotufo diz que mesmo fazer uma comparação entre países é complicada. A Itália vivenciou uma face dura da pandemia principalmente na região da Lombardia, mas conseguiu conter impactos no sul do país. Já o Brasil, um país continental, poderia ter controlado melhor a epidemia na região Sul, na avaliação do pesquisador. “Rio Grande do Sul e Minas Gerais, que tiveram poucos casos no início da crise, seriam locais que poderiam estar com números muito melhores se tivessem sido mais rigorosos no isolamento”, avalia. Para ele, as medidas de etiqueta respiratória e distanciamento social devem ser seguidas mesmo quando a pandemia dá os primeiros sinais de arrefecimento. “A sociedade precisa discutir é o que é prioritário. Uma coisa que o Brasil e os Estados Unidos parece que não conseguem fazer. É prioritário abrir escolas ou shoppings? Você precisa ter um controle geral do contágio. Se abre uma coisa, vai diminuir a chance de reabertura de outra”, diz.

Lopes acrescenta que a queda dos números de mortes no país está longe de representar uma solução da pandemia. Para ele, a redução não é representativa para que o país assuma um nível seguro. “O Brasil patina muito para conseguir compreender a epidemia. Continuamos no mesmo pé de quatro ou cinco meses. Ainda testamos muito pouco, e nossos testes são usados para confirmar casos, mas não para controlar epidemias”, avalia. Essa deficiência que ainda existe na testagem, segundo Lopes, aparece na alta taxa de positividade do país: de 35,9%, segundo dados do próprio Ministério da Saúde. “Os números de óbitos parecem estar melhorando, mas ainda não significam um controle. Nossa estratégia nunca foi de conter casos, mas de administrar os casos graves e os óbitos. O Brasil ainda tem muito por fazer para conseguir controlar a pandemia”, finaliza.

Um revés na busca da vacina contra a covid

Suspensão dos testes com imunizante da Astra-Zeneca teria sido causada por inflamação tratável, na medula de um voluntário. Outros experimentos avançam. E mais: negligência do Brasil diante da pandemia agrava deficiências na Educação

Maíra Mathias e Raquel Torres, Outra saúde, 9 de setembro de 2020

A SUSPENSÃO NOS ENSAIOS

Os ensaios com a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela AstraZeneca foram suspensos por conta de uma suspeita de efeito adverso em um participante. Como se sabe, o candidato a imunizante está na fase 3 dos testes, sendo aplicado em milhares de voluntários em vários países, entre eles o Brasil.

Quem deua notícia primeiro foi o site STAT, ontem à tarde. Na reportagem, um porta-voz da AstraZeneca declara que o “processo de revisão padrão da empresa acionou uma pausa na vacinação para permitir a revisão dos dados de segurança” e investigar o caso, mas sem dar detalhes sobre o que exatamente aconteceu. Mais tarde, o New York Times deu novas informações a partir de uma fonte anônima. De acordo com ela, trata-se de um participante do Reino Unido que foi diagnosticado com mielite transversa, uma síndrome inflamatória (tratável) que afeta a medula espinhal e frequentemente é disparada por infecções virais. Porém, até o fechamento desta edição da newsletter, isso não havia sido confirmado pela AstraZeneca.

Seria um efeito adverso compatível com a vacinação, podendo ter sido desencadeado pelo vetor adenovírus do imunizante. Segundo o Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação do Ministério da Saúde, existem relatos raros dessa mesma síndrome (e outras síndromes neurológicas) após a administração da vacina contra a hepatite B, mas nunca foram encontradas evidências suficientes para dizer se existe de fato uma relação causal.

No caso dos testes paralisados, também não dá para saber se o problema foi realmente um efeito da vacina ou se a síndrome teria se desenvolvido de qualquer forma – daí a necessidade de parar tudo e investigar, procurando outros voluntários que possam ter tido o mesmo problema. Via de regra, a pausa em ensaios significa parar de recrutar novos voluntários e interromper a dosagem nos já inscritos, mas mantendo seu acompanhamento.

É preciso dizer que, embora a novidade seja perturbadora, suspensões em testes são comuns e o caso só confirma o quanto a fase 3 é importante, impossível de pular. A segurança é confirmada de forma preliminar nas fases 1 e 2, mas nessas etapas, com um número reduzido de participantes, efeitos menos comuns podem não aparecer. No caso dessa candidata, os resultados das primeiras fases mostraram efeitos colaterais considerados leves ou moderados em 60% dos participantes.

Infelizmente, o contratempo vem em péssima hora no Brasil, justo quando o presidente Jair Bolsonaro decidiu cair nas graças do movimento antivacina. Ontem ele voltou a dizer que ninguém pode ser obrigado a se imunizar. Não é difícil imaginar os efeitos que a paralisação deve ter em grupos que já vociferavam contra os imunizantes.

OS EFEITOS IMEDIATOS

Horas antes da suspensão, o ministro interino da Saúde Eduardo Pazuello afirmou que o governo pretendia imunizar as pessoas muito em breve. “Em janeiro do ano que vem, a gente começa a vacinar todo mundo“, disse ele a uma youtuber de dez anos que participou de reunião ministerial. A principal aposta do governo federai é justo a vacina de Oxford/AstraZeneca.

Os testes, obviamente, foram pausados aqui também. “Trata-se de uma prática comum em estudos clínicos envolvendo fármacos. O comitê de monitoramento de segurança do estudo analisa se o caso tem ou não relação com a vacina e, assim que a análise for concluída, a fase 3 deve ser retomada”, disse em nota a Unifesp, que coordena o estudo em São Paulo. Segundo a instituição, entre os cinco mil voluntários que já tomaram a vacina aqui, não houve intercorrências graves. A Fiocruz disse que vai acompanhar os resultados e a Anvisa informou que foi comunicada, mas não se pronunciou.

Mesmo que as investigações não demonstrem causalidade entre a vacina e a síndrome, o cronograma do estudo pode ser afetado.

ENQUANTO ISSO…

A Rússia liberou sua vacina Sputnik V – cuja fase 3 dos ensaios ainda está em andamento – para o público em geral, com a entrega do primeiro lote prevista para “um futuro próximo”. O vice-diretor do Instituto Gamaleya, Denis Logunov, já havia dito que a liberação poderia acontecer esta semana.

E o CEO da BioNTech, Ugur Sahin, confirmou na CNN que a vacina desenvolvida por essa empresa junto com a Pfizer deve estar pronta para aprovação em outubro – a tempo de impactar as eleições presidenciais nos EUA. A previsão é que sejam produzidas cem milhões de doses este ano (todas já encomendadas por Donald Trump) e mais 1,3 bilhão em 2021.

É uma promessa duvidosa, considerando que os testes são imprevisíveis. Apesar da afobação, a Pfizer e a BioNTech estão entre as nove empresas que assinaram um compromisso público de “desenvolver e testar vacinas potenciais para covid-19 de acordo com altos padrões éticos e princípios científicos sólidos“. Como comentamos na última edição, essa é uma tentativa de a indústria manter a credibilidade diante da evidente pressão política de Trump para uma aprovação rápida. O comunicado foi publicado ontem.

CRESCENTE ABANDONO

A taxa de abandono de vacinas no Brasil cresceu 47,6% nos últimos cinco anos, segundo a apuração de Estêvão Gamba e Sabine Righetti, na Folha. Essa taxa se refere ao número de pessoas que começam um determinado esquema vacinal e o largam no meio do caminho antes de tomar todas as doses necessárias para garantir a imunização: a criança que toma a primeira dose da tríplice viral, mas não a segunda, por exemplo. Se em 2015 essa taxa era de 15,8%, no ano passado chegou a 23,4%. O aumento é desigual e foi muito pior em alguns estados, como Goiás, em que praticamente dobrou. E, como nota a reportagem, essa trajetória pode ser um problema no contexto da pandemia. É que das 33 candidatas em testes clínicos atualmente, 29 devem exigir pelo menos duas doses. Fora que ainda não se sabe se as futuras vacinas vão ter que ser tomadas de novo todo ano, como acontece com a da gripe.

IMPACTOS DURADOUROS

A OCDE divulgou ontem um relatório que trata dos impactos da pandemia na educação, com foco nos efeitos sobre a produtividade do trabalho e, consequentemente, na economia. A entidade projeta uma queda de 1,5% no PIB mundial até o fim do século devido à interrupção nas aulas. O tombo será maior nos países que demorarem a se organizar de modo a retomar o desempenho de antes da crise sanitária. É o caso do Brasil.

Com as atividades presenciais suspensas desde março, o país acumula um atraso superior à média: no fim de junho, já eram 16 semanas de paralisação contra 14 nos países ricos. No começo de setembro, fazíamos parte do grupo de oito entre 46 nações onde as aulas seguiam suspensas (com exceção do Amazonas). Isso, claro, é consequência da taxa de contágios que até semanas atrás estava descontrolada.

Mas existem fragilidades históricas. A OCDE apontaque um dos gargalos para retomar as atividades de forma segura por aqui é a quantidade de alunos por sala de aula. Até o 5º ano do ensino fundamental, temos, em média, 23 estudantes por classe – o que nos coloca na 10ª pior posição entre 32 nações com dados disponíveis. O cenário se agrava nos anos finais do ensino fundamental (que vai 6º ao 9º ano), quando as classes têm 27 alunos, o que nos coloca na 6º pior posição.

Outro problema levantado pela entidade é o financiamento da educação na pandemia e para lidar com os problemas de aprendizagem que vêm depois. Para se ter uma ideia, ontem o projeto Covid Tracking estimou a quantidade mensal de testes que os Estados Unidos precisam para retomar as aulas presenciais com segurança: 193 milhões por mês. Hoje, são feitos mensalmente apenas 21 milhões. Tudo isso está bem longe da nossa realidade, e por aqui ainda temos que lidar com o risco de desvinculação das verbas da educação.

Finalmente, o relatório corrobora o diagnóstico de que a aprendizagem é menor com o ensino remoto e que a desigualdade de acesso à internet, equipamentos e condições de estudo amplia o abismo entre ricos e pobres.

Em tempo: ontem, escolas públicas e privadas do estado de São Paulo reabriram. Segundo o governo, 200 escolas da rede estadual retomaram as atividades, o que corresponde a apenas 3,5% do total. E nessas unidades, a taxa de presença foi baixa: entre 10% e 15% dos estudantes compareceram.

REVERSÃO DE CONQUISTAS

Outro relatório divulgado ontem, desta vez por várias agências da ONU, concluiu que o novo coronavírus pode estar minando os avanços de redução da mortalidade infantil. Uma pesquisa conduzida no inverno pela Unicef com 77 países constatou uma sistemática interrupção nos serviços de saúde: 68% relataram problemas na imunização; 63% nos exames pré-natais; e 59% nos cuidados pós-natais. Outro estudo citado no relatório, feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ouviu governos de 105 países. Em 52% dos casos, foi relatada interrupção nos serviços de saúde infantis, e em 51% nos programas de combate à desnutrição.

FECHOU E FLEXIBILIZOU CEDO

Pesquisadores da USP, da Universidade de Oxford e do Imperial College analisaram dados sobre a conduta dos prefeitos na pandemia. O levantamento foi feito pela Confederação Nacional dos Municípios em questionário respondido por 4.061 cidades, ou 73% do total do país. Quase 70% dos gestores que adotaram restrições afirmaram que tomaram essa decisão antes de confirmar o primeiro caso da doença. Já a flexibilização das quarentenas, confirmada em 61,9% dos casos, aconteceu de forma precipitada, principalmente em abril e maio.

“Diferentemente da implantação das medidas não farmacológicas (como distanciamento social), a flexibilização foi extremamente dessincronizada. (…) A maioria dos municípios que registrou picos de ao menos 20 casos novos por dia flexibilizou as restrições antes de chegar nesse patamar”, afirmou a diretora do Centro de Estudos sobre o Brasil da Universidade de Oxford, Andreza Santos, em entrevista ao Estadão. O estudo, que será lançado hoje, indica que faltou coordenação nacional.

E o Brasil registrou ontem 516 mortes. O número ficou abaixo de 800 pelo segundo dia consecutivo, mas, como acontece nos finais de semana, o feriado pode ter impactado a contagem nos estados. Mesmo assim, a média móvel de óbitos continua em tendência de queda: chegou a 691, a menor registrada desde 14 de maio. Temos 127,5 mil mortes e 4,1 milhões de infecções registradas no total.

PRA FICAR DE OLHO

O relatório da PEC do pacto federativo deve ser apresentado hoje pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC). Ele adiantou que o texto abre um espaço de R$ 25 bilhões a R$ 30 bi no orçamento da União. Isso acontece com a regulamentação dos gatilhos do teto de gastos (que inclui a redução de jornada e salário dos servidores públicos, por exemplo) e a desindexação, desobrigação e desvinculação das despesas com saúde e educação.

O dilema da vacina: por onde começar, já que as doses serão poucas no início?

Há muitas dúvidas sobre quem – se e quando uma vacina contra a Covid-19 estará disponível – terá que recebê-la primeiro. Pelo menos inicialmente as doses serão inevitavelmente escassas e isso provocará tentativas de reserva ou racionamento. Muitos especialistas estão, portanto, analisando o problema da distribuição, incluindo a Organização Mundial da Saúde. Uma possível resposta é encontrada em um artigo publicado na Science, resultado de um grupo de pesquisadores internacionais que atuam na área médica, ciências morais, economia e filosofia.

Mariella Bussolati, Business Insider/IHU-UNisinos, 8 de setembro de 2020. Tradução de Luisa Rabolini.

No documento, eles propõem um Fair Priority Model, um modelo de prioridade justo, que se baseia em três princípios fundamentais:

- ser útil para as pessoas para limitar os danos,

- dar prioridade aos países desfavorecidos pela pobreza ou baixa longevidade,

- evitar a discriminação.

O objetivo deveria ser o de reduzir as mortes prematuras e os efeitos colaterais do vírus.

De fato, devem ser evitados os egoísmos nacionalistas, que impediria a distribuição do remédio para fora das fronteiras. O problema é global e raciocinar dentro das fronteiras tornaria os esforços inúteis. Muitos governos realmente estão falando sobre parâmetros de acesso justos. Existem também organizações internacionais, como a Covax, que enfatizaram a urgência de se adotar métodos imparciais. A esse respeito, o presidente dos Estados Unidos Trump afirmou que não colaborará com a Covax porque está vinculada à Organização Mundial da Saúde, com a qual rompeu relações em maio. No entanto, isso poderia limitar o acesso dos EUA a uma vacina se ela for desenvolvida por outros.

Depois, há o problema de que muitos fabricantes são empresas privadas, que podem decidir não seguir nenhuma regra e vender pela maior oferta. No entanto, algumas empresas farmacêuticas afirmam concordar com as estratégias propostas. Em qualquer caso, o que se entende por correção, justiça e equidade ainda deve ser decidido. E sobretudo quais são os parâmetros que nos permitem bloquear o avanço da doença.

Até agora, aqueles que se questionaram a respeito apresentaram duas propostas principais: vacinar o mais rápido possível os trabalhadores da saúde e a população de risco, por exemplo, maiores de 65 anos. São estratégias que podem ser consideradas justas, mas de acordo com a equipe do Fair Priority Model, não são perfeitas. Em sua proposta, eles acreditam que é importante mitigar tanto essas quanto os danos permanentes aos órgãos, e evitar efeitos secundários, incluindo a superlotação dos sistemas de saúde ou os efeitos no sistema econômico. Deveria ser considerada uma administração baseada no sofrimento, medido com base nas mortes.

Contudo, deve-se levar em conta que a difusão deveria em qualquer caso ser ampla, pois para interromper a transmissão é necessário que 60-70% da população esteja imune. Nesse sentido, o plano da Organização Mundial da Saúde é diferente: propõe começar vacinando 3 por cento dos habitantes de cada nação e continuar com base nas reservas até que 20 por cento dos cidadãos sejam vacinados.

Dessa forma, porém, o problema é enfrentado considerando o mundo todo igual, e não com base nas necessidades. Situações com populações idênticas têm níveis variados de mortalidade e de problemas econômicos, afirmam os autores. Eles também consideram que imunizar preferencialmente quem trabalhas nos hospitais, que já têm acesso aos equipamentos de proteção, não reduz drasticamente os efeitos. E nem mesmo começar com os idosos bloquearia a pandemia. Os países pobres têm em média muitos jovens e pouco pessoal médico, mas o contágio é muito elevado.

As fases de implementação do modelo proposto poderiam, portanto, ser três: a primeira prevê a redução das mortes, calculadas com base na redução da expectativa de vida. A segunda deveria ter como objetivo minimizar as consequências econômicas e sociais. A terceira daria prioridade a quem se encontra com taxas de transmissão mais elevadas e, em geral, em todo lugar deveria se procurar favorecer as medidas que as reduzem.

Um dos principais objetivos do Modelo de Prioridade Justa é evitar as marginalizações e ajudar os mais desfavorecidos. Os estudiosos esperam que possa servir no futuro, se outras pandemias surgirem, pois argumentam que, como acontece no caso das mudanças climáticas, devemos aprender a olhar para longe, resolvendo os problemas em vez de nos concentrarmos na identificação dos responsáveis.

Covid-19: É possível a vacina não ser um negócio?

A corrida pela criação da vacina contra a Covid-19 também é uma corrida por financiamento, especialmente público. No entanto, são os laboratórios, que detêm as patentes, que tomam as decisões relativas à produção, para quem vendê-la e a que preço.

Justin Delépine, Alternatives Économiques/IHU-Unisinos, 8 de setembro de 2020. A tradução é de André Langer.

Diante de uma pandemia duradoura, o mundo ainda está procurando uma saída. Uma verdadeira corrida contra o tempo foi lançada para desenvolver a vacina contra a Covid-19 o mais rápido possível. Uma corrida que põe em concorrência pequenos e grandes laboratórios farmacêuticos de todo o mundo, às vezes associados a organismos públicos de pesquisa. Mas, à medida que se multiplicam os anúncios de investimentos e acordos entre governos e laboratórios, uma questão torna-se central: quem pagará por essa futura vacina e quem terá acesso a ela?

Em maio passado, uma declaração de Paul Hudson, diretor-geral da Sanofi, provocou alarido: se o seu laboratório encontrar uma vacina, os Estados Unidos serão os primeiros a se beneficiar dela, declarou. O motivo? As autoridades americanas foram os primeiros a investir e a investir pesadamente nesta pesquisa. Suas palavras provocaram uma indignação generalizada – inclusive na cúpula do executivo – na França, sede do laboratório globalizado. Sua declaração lançou alguma luz sobre a relação de poder entre as empresas farmacêuticas e os Estados, as primeiras buscando maximizar a cooperação financeira dos segundos.

A corrida para encontrar a vacina é, portanto, também uma corrida por financiamento. Financiamentos ainda mais importantes, porque, desta vez, o tempo para levar uma vacina ao mercado é particularmente curto.

Desenvolvimento acelerado
Normalmente, encontrar e colocar uma vacina no mercado leva de sete a dez anos. Diante da atual epidemia, as indústrias pretendem reduzir este tempo para menos de dois anos. Para acelerar o ritmo, os laboratórios são obrigados a antecipar cada etapa do seu desenvolvimento antes de validar totalmente a etapa anterior, de forma a poder poupar meses preciosos.

“Toda a fase de desenvolvimento é feita paralelamente à pesquisa, para que as fábricas sejam montadas e a produção comece antes que os resultados finais da vacina candidata sejam obtidos. Se os resultados forem positivos, a fabricação em massa já terá começado e as capacidades de produção já estarão disponíveis”, explica Claire Roger, presidente do comitê de “vacinas” da Leem [Associação Francesa de Empresas Farmacêuticas], organização que reúne empresas farmacêuticas.

É claro que essa aceleração do ritmo aumenta o montante da fatura. Principalmente porque, se a vacina candidata não cumprir as promessas, as doses produzidas vão para o lixo. No entanto, os laboratórios estão longe de serem os únicos a tirar o talão de cheques. “A maior parte do dinheiro investido na pesquisa da vacina Covid-19 é público”, lembrou Gaëlle Krikorian, ex-diretora da campanha de acesso a medicamentos da organização Médicos Sem Fronteira (MSF).

De acordo com o think tank Policy Cures Research, pelo menos 5,4 bilhões de dólares em dinheiro público foram fornecidos para apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de uma vacina em nível global, 2,6 bilhões dos quais foram investidos pelo governo estadunidense. Uma quantia significativa, já que o mercado global de vacinas gira em torno de 60 bilhões de dólares no total. E, novamente, esses 5,4 bilhões representam apenas uma parte do financiamento público consagrado à vacina contra a Covid, e sem contar, por exemplo, todas as pré-encomendas que os governos fazem para garantir o seu fornecimento.

Detalhes de dezenas de acordos concluídos entre governos e laboratórios não são públicos. Portanto, é difícil quantificar com precisão os valores recebidos por eles, nem o que recobrem. Mas a exemplo da pré-encomenda americana ao laboratório Johnson & Johnson por um bilhão de dólares ou da dupla franco-inglesa Sanofi-GSK por 1,2 bilhão, ou da União Europeia para a AstraZeneca por 750 milhões de euros, as somas investidas pelos poderes públicos nesta vacina são de bilhões. Os Estados Unidos sozinhos teriam liberado 9 bilhões de dólares para a vacina contando todas as suas pré-encomendas.

Devemos agregar a isso também os recursos fora do contexto de uma crise de saúde: de órgãos públicos, como o Instituto Pasteur, mas também de mecanismos de auxílio à pesquisa, como o caríssimo crédito fiscal para pesquisa (CIR) na França.

Um revelador das desigualdades
Acima de tudo, esse apoio ilustra as desigualdades entre os países. Com essas pré-encomendas, os Estados ricos garantem o acesso à futura vacina reservando, de certa forma, linhas de produção. Aqui, novamente, os Estados Unidos são o maior provedor de fundos. Eles fizeram uma pré-encomenda de cerca de 800 milhões de doses de seis candidatos a vacinas, o Reino Unido 340 milhões e a Europa e o Japão várias centenas de milhões cada um.

Já os países mais pobres, que representam a maioria da população mundial, podem recorrer a outro grande financiador: o programa Covax, administrado especialmente pela Coalizão de Inovações e Preparação para Epidemias (Cepi). Esta fundação executa a política de vacinas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e recebe ajuda de vários Estados e filantropos privados, incluindo a Fundação Bill e Melinda Gates.

A Cepi, portanto, financiou 9 candidatos a vacinas no valor de 900 milhões de dólares. No entanto, estima a necessidade em 2,1 bilhões de dólares para garantir 2 bilhões de doses, o que permitiria abastecer os países menos afortunados a um custo zero ou a um custo menor. E embora a Cepi tenha pedido várias centenas de milhões de doses de alguns laboratórios, a maior parte das encomendas vem de países ricos.

Uma patente onipotente?
“Visto que o financiamento público é importante e, sobretudo, muito visível em um período de pandemia, as expectativas em relação às contrapartidas são elevadas, e, especialmente, em relação à propriedade intelectual do que será produzido”, observa Gaëlle Krikorian.

 

Depois da polêmica criada pelas declarações do diretor-geral da Sanofi, Emmanuel Macron defendeu que a futura vacina “fosse um bem comum global, fora das leis do mercado”. A intenção é louvável, mas o presidente não pode ignorar os regulamentos internacionais sobre produtos de saúde. O laboratório que descobre a vacina é protegido pelos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre propriedade intelectual (Adpic) e possui a patente mundial para a fabricação desse produto por pelo menos vinte anos, que lhe fornece uma renda financeira para compensar os custos de pesquisa. Em suma, detém o monopólio da produção da vacina, decidindo quantas vacinas produzir, para quem vender e negociando com os Estados o seu preço.

 

“A pesquisa de uma vacina contra a Covid é amplamente subsidiada pelo público, mas sua patente será privada”, lamenta Nathalie Coutinet, economista da Universidade Paris-13 especializada na indústria farmacêutica. O monopólio conferido por uma patente justifica-se, de fato, pela assunção de riscos financeiros na pesquisa. No entanto, isso não existe no presente caso. “As patentes são mecanismos de incentivo ao financiamento privado que podem ser úteis, mas não são os únicos, e devemos parar de abusar delas, especialmente quando o financiamento público é significativo”, conclui Gaëlle Krikorian.

 

O poder conferido por essas patentes também corre o risco de repercutir nas políticas de preços dos diferentes laboratórios farmacêuticos. Os preços certamente serão diferentes dependendo do país. Os mais ricos, e em primeiro lugar os Estados Unidos, geralmente concordam em pagar mais para serem atendidos primeiro. O que acentua a desigualdade de acesso à saúde entre países ricos e pobres.

 

O preço também varia de acordo com os laboratórios, que possuem estratégias diferentes nessa área. A britânica AstraZeneca, que tem um dos projetos mais avançados, anunciou, por exemplo, que comercializará seu produto a preço de custo. “Isso é puramente declarativo, pondera Jérôme Martin, do Observatório da Transparência nas Políticas de Medicamentos. Como não divulgam os custos da pesquisa nem a margem dos intermediários, é impossível verificar se esse preço de custo será real”.

 

O laboratório mencionou ainda um preço em torno de 2,50 euros por dose. Outras empresas, como as americanas Pfizer, Merck ou Moderna, assumiram claramente que desejam lucrar com essas futuras vacinas. A Moderna sugere um preço de comercialização entre 50 e 60 dólares. Uma diferença que terá graves consequências sobre as finanças dos organismos de reembolso. E que poderá, portanto, retardar a difusão de uma vacina.

 

Modelo start-up
Essa diferença de preço também se explica por diferenças nos modelos econômicos das empresas farmacêuticas. A Moderna, por exemplo, tem um dos projetos mais avançados, competindo com os maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, mas é uma start-up com menos de mil funcionários e apenas uma década de existência. “As empresas farmacêuticas tendem a terceirizar a pesquisa, porque é muito cara, e assim cofinanciar start-ups de biotecnologia e comprá-las ou se juntar a elas se seu produto for eficiente”, resume Nathalie Coutinet.

 

No entanto, estas start-ups, das quais a Moderna é um exemplo perfeito, baseiam o seu desenvolvimento na inovação e só podem sobreviver financeiramente graças aos investidores que concordam em financiá-las com prejuízo até que os seus produtos cheguem à fase da comercialização. “Esses novos modelos participam de uma hiperfinanceirização do setor, explica o economista, pois assim que a inovação da start-up dá certo, os investidores que se arriscaram procuram recuperar seus custos, empurrar a estrutura para os mercados financeiros e exigem alta lucratividade”.

 

Se essas deficiências do mercado farmacêutico já existiam antes da pesquisa da vacina contra a Covid-19, a atual pandemia torna-as visíveis, revelando um setor opaco e amplamente financeirizado cujo poder de mercado garantido por patentes não reflete mais os esforços feitos na pesquisa.