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Pessoas com deficiência: Revolução no Espectro (1)

Os aflitivos estímulos sonoros, visuais, luminosos, mas também de relações sociais intensificadas, onde o quão melhor você vive socialmente mais aceito é, aumentam muito a angústia das mais de 70 milhões de pessoas no espectro por todo o planeta.

21 de setembro de 2021

Daniel Lopes é militante da Insurgência São Paulo, comunicador,  estudante de cinema e autista.

Hoje é o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência. Há duas dimensões que permito-me abordar nesse texto: a experiência de uma pessoa autista atuante na luta revolucionária (2) e a vida no espectro em meio ao capitalismo moderno. (1)

Na luta pela emancipação humana e da classe trabalhadora, o sujeito toma cada vez mais forma principalmente na abordagem das opressões pelo sistema que vivemos. Para a realidade de quem descobre sua condição própria de vida como tragédia- realidade cotidiana dos autistas  - a partir da lógica médica de pessoas que precisam de conserto, tratamento e não conseguem superar “limites” impostos de formulação, vivência e compreensão da realidade, se torna cada vez mais necessário que tal debate sobre essas vivências seja abordado nas fileiras das organizações que lutam pela emancipação humana.

O desenvolvimento da sociedade a partir do produtivismo, do avanço científico e do conhecimento, de um lado aprofundaram o suporte, principalmente em políticas progressistas, de acolhimento de PCD’s no geral - o que avançou com medidas mínimas as condições de vida - passa-se no mesmo mundo onde nessa exata lógica de pressão social, grandes parcelas da população começam a se descobrir neuro diversas. Os estímulos aflitivos sonoros, visuais, luminosos, mas também de relações sociais intensificadas, onde o quão melhor você vive socialmente mais aceito é - aumentam muito a angústia principalmente as mais de 70 milhões de pessoas no espectro por todo o planeta.

Marxismo e autismo

Janine Booth, 1º de Abril de 2017. Traduzido do inglês por Pedro Côrtes

Explicando o crescimento no número de diagnósticos

Houve um crescimento significativo no número de diagnósticos de autismo nos últimos anos. Por que? Alguns que se baseiam na abordagem de modelo médico explicam tal fato como uma epidemia. Um gráfico que circula nos E.U.A. declara: há 10 anos, 1 a cada 1000 [pessoas era autista]; há 5 anos, 1 a cada 500; hoje, 1 a cada 88; e pergunta “já está com medo?”

Eu estou mais assustada com o pensamento por trás do gráfico do que com o crescente reconhecimento da prevalência do autismo. A explicação mais progressista e acurada é que, ao invés de um aumento na prevalência do autismo, é o nosso reconhecimento do autismo que está crescendo: a sociedade possui uma crescente consciência acerca do autismo; há uma maior disponibilidade de diagnósticos; e os critérios para o diagnóstico de autismo foi firmemente ampliado ao longo dos anos.

Podemos ir além disso. A crescente pressão social colocada pelo capitalismo sobre as pessoas e a crescente sobrecarga sensorial que ele arremessa sobre nós está causando mais e mais angústia, então mais e mais pessoas autistas estão buscando diagnóstico para ter acesso à ajuda. A sociedade e seus membros autistas estão entrando cada vez mais em conflito. Muitas pessoas autistas recebem seu diagnóstico de autismo tendo inicialmente procurado por ajuda para problemas de saúde mental como ansiedade ou depressão.

Austeridade e diferenças de classe na experiência autista

Desde a crise econômica iniciada em 2008, os governos aplicaram políticas de austeridade, fazendo a classe trabalhadora pagar pela crise econômica que nós não causamos. Estas políticas aprofundaram a pobreza e retiraram acesso à assistência. Pessoas autistas vindas de famílias mais ricas costumam lidar melhor com essa situação e situações de dificuldade em geral. Isto não quer dizer que a vida é fácil se você vem de um ambiente mais rico, mas ao menos há mais acesso a recursos e cuidados.

Cortes em gastos públicos afetam pessoas autistas diretamente. Serviços tiveram sua verba cortada ou fecharam, inclusive serviços de suporte familiar, serviços de suporte de emprego, creches e outros serviços. A austeridade também causa angústia social, visto que aumenta a necessidade de suporte das pessoas autistas com uma mão, enquanto leva embora com a outra mão o suporte que existia.

Caridade?

Frequentemente espera-se que você procure por caridades quando não há nenhuma assistência pública disponível. Mas apesar de algumas caridades voltadas ao autismo realmente providenciarem serviços úteis, elas também têm um papel negativo. Elas reforçam a visão de que pessoas autistas são objetos de pena, geralmente usando imagens condescendentes para atrair doações. Elas raramente são lideradas por autistas, e elas nem sempre estão do mesmo lado que aqueles dentre nós que lutam por libertação.

A caridade estadunidense mal-nomeada Autism Speaks [“Autismo Fala”] promove visões hediondamente negativas do autismo como uma “tragédia”, e é frequentemente piqueteada por ativistas autistas. No Reino Unido, a National Autistic Society [Sociedade Autista Nacional] não chega perto de ser tão ruim, mas possui uma diferença inaceitavelmente grande entre os salários de gerentes sênior e seus assistentes e, em 2013-2014, ao esperar que professores de suas escolas trabalhassem por salários menores do que os acordados nacionalmente para professores da rede estatal, provocou os sindicatos de professores a entrar em greve.

Autismo, neurodiversidade, e produção

Em qualquer análise marxista, é importante olhar a exploração do trabalho. Pessoas autistas estão em desvantagem para se empregar. Estas estatísticas são do Reino Unido, mas a situação é semelhante em outros lugares:

  • 43% dos adultos autistas saíram ou perderam um emprego devido à sua condição.
  • 41% dos adultos autistas com mais de 55 anos de idade passaram mais de 10 anos sem um emprego pago.
  • 37% dos adultos autistas nunca estiveram em um emprego pago depois dos 16 anos de idade.
  • 15% dos adultos autistas estão em um emprego de tempo integral.

Sob o pretexto da crise econômica, empregadores tomaram a ofensiva, com técnicas de gerência de alta pressão e empregos inseguros. A emergência de contratos de curto prazo, horas de trabalho imprevisíveis e contratos de zero-hora tem um efeito depreciativo sobre todos os trabalhadores – mas se você tem uma mente autista, e se apoia em previsibilidade e rotina, o impacto pode ser ainda pior.

Nós também temos visto uma mudança em direção ao “serviço ao consumidor”, em direção às habilidades “sociais” ou à “suavidade”, agora mais valorizadas que habilidades técnicas, até mesmo em indústrias bastante técnicas como transporte público. Nós vimos os serviços públicos serem mercantilizados, e seus usuários passaram a ser vistos como “consumidores”.

Isso pode causar problemas para pessoas cujo foco é sua habilidade técnica em seu emprego, ao invés de habilidades sociais estreitamente definidas. Entretanto, ao mesmo tempo, temos visto empregadores se esforçarem mais para recrutar e acomodar trabalhadores autistas. Apesar disto ser bem-vindo, às vezes estes empregadores deixam escapar que um de seus motivos é que desejam averiguar o potencial de explorar pessoas autistas.

Eles falam sobre o quão mais produtivas algumas pessoas autistas podem ser, e como elas tendem a se distrair menos com fofocas sociais. Eles podem até mesmo estar “escolhendo a dedo” aqueles trabalhadores autistas com o mais alto nível de habilidade e o mais baixo nível de suporte necessário. Tais empregadores estão mercantilizando os talentos de pessoas autistas ao invés de valorizá-los.

O controle dos trabalhadores

O trabalho sob o capitalismo é altamente regulamentado, em seu ritmo, em seus métodos, em seus processos e em suas metas. O trabalho providencia pouquíssima ou nenhuma liberdade ou flexibilidade de ação para pessoas que pensam diferentemente e que querem fazer as coisas de forma diferente.

Crucial para conquistarmos um futuro melhor para pessoas autistas, particularmente no âmbito do trabalho, é alterar o trabalho, e não os trabalhadores. Há bastante conselhos disponíveis para pessoas autistas sobre como conseguir ou manter um emprego, mas a maioria se baseia em como mudar a nós mesmos para impressionar o empregador e “encaixarmos” no trabalho – basicamente, como fingir que você não é autista.

Muito melhor do que isto seria que o trabalho fosse alterado, juntamente ao ambiente de trabalho, que o ritmo e os métodos de trabalho fossem mais acessíveis para pessoas, quaisquer sejam suas estruturas cerebrais. Para isto, a ideia central é a de controle dos trabalhadores: trabalhadores controlando, tanto individualmente quanto coletivamente, o ambiente sensorial e a forma de se realizar um trabalho em uma empresa, por exemplo.

Do coletivo ao individual

Nas últimas décadas, à sombra das derrotas do movimento trabalhista, o discurso político mudou de um foco coletivo para um foco individual. Entretanto, ao invés de trazer reconhecimento de direitos individuais e diferenças, minou as perspectivas do progresso coletivo. Passamos a ter também uma ênfase no “sucesso” que leva as pessoas a fracassar.

Porque se a sociedade estabelece um padrão de sucesso que você não consegue atingir, então conclui-se que você não é suficiente, que de alguma forma isto é culpa sua. Um exemplo é a noção legal de “ajustes razoáveis”, mudanças que precisam ser feitas para permitir que um autista ou pessoa desabilitada de alguma forma possa participar igualmente da sociedade.

Foi um avanço que tal noção fosse incorporada à legislação de discriminação à desabilidade. Entretanto, você só recebe estes ajustes como um indivíduo, eles foram feitos apenas para quando você identifica a si e à sua desabilidade, e você precisa provar que de alguma forma você está em desvantagem para conseguir os ajustes de que precisa.

Seria muito melhor para os ambientes de trabalho, para os serviços e para a sociedade uma mudança geral, tornando-se mais acessíveis e mais amigáveis ao autismo, abordando as desvantagens autistas coletivamente ao invés de individualmente.

A economia política do autismo

Karl Marx escreveu sobre “a economia política da classe trabalhadora”, querendo dizer a luta da classe trabalhadora por leis e políticas que nos beneficie, ainda que sejam custosas ao capitalismo. Se nós escrevêssemos uma lista de mudanças que queremos para atingir igualdade para pessoas autistas, a conta a ser paga pelo capitalismo poderia ser bastante cara.

Mas é apenas a dura realidade – queremos estas mudanças, estas medidas para aliviar a angústia, para por fim à discriminação e à exclusão. Nós queremos mais igualdade, independentemente do custo disso para o sistema capitalista existente.

Um grupo de autistas e ativistas com outras neurodivergências estão atualmente trabalhando com o Chanceler Sombra[2] John McDonnell para redigir um manifesto pelo autismo/neurodiversidade – uma lista de políticas para o Partido Trabalhista atingir um progresso significativo em direção à igualdade. As demandas do movimento trabalhista só configurarão uma vitória para pessoas autistas se elas forem um reflexo da neurodiversidade da classe trabalhadora – se, em vez de adotar métodos de pensamento típicos, elas reconhecerem que, assim como a classe trabalhadora possui diversidade de etnias, gêneros, sexualidades, entre outras, a classe trabalhadora também possui diversidade neurológica.

Isto abre a discussão sobre por qual tipo de sociedade estamos lutando. Com o que se parecerá o socialismo? Como o socialismo irá reconhecer e aceitar a diversidade neurológica de forma que o capitalismo não é capaz?