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Por que as eleições do Equador afetam tod@s nós

A eleição equatoriana escancarou uma forte disputa colocada para a esquerda latino-americana. É, para usarmos os termos de Lowy e Daniel Bensaid, uma bifurcação.

14 de fevereiro de 2021

José Correa Leite

SÃO PAULO - Circula na militância de esquerda brasileira um artigo publicado no Brasil de Fato, assinado como "Da redação": Candidato ecossocialista do Equador: indígena e apoiador dos golpes na América Latina.

Este artigo pretende demonstrar que a candidatura de Yaku Pérez, do Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik, apoiado pela Confederação dos Indígenas do Equador (a Conaie), teria um caráter direitista. Mas, para isso, o texto tenta construir argumentos de autoridade remetendo para outro artigo do Benjamin Norton publicado em um site bilíngue The Gray Zone: "Respaldado por EEUU, el candidato ‘ecosocialista’ de Ecuador, Yaku Pérez, apoya golpes de estado y ayuda a la derecha". O perfil do autor e a linha de artigos que escreve (e escreve muito, sempre numa linha campista, isto é, aquela em que a disputa entre os EUA e outros paises rivais, como Rússia, China, Síria, condiciona tudo o demais) podem ser conferidos aqui: https://muckrack.com/benjaminnorton.

Se vamos atrás dos links dos artigos que o Ben Norton cita, vamos chegar a esses:
https://www.eluniverso.com/noticias/2021/01/14/nota/9528838/yaku-perez-no-es-descabellado-acuerdo-comercial-estados-unidos

http://ecuadorya.com/yaku-perez-los-pobres-se-gastan-la-plata-en-cerveza/
https://twitter.com/MashiRafael/status/1357357132891312137

Propaganda negativa e calúnia
A conclusão a que chegamos é que o conjunto constitui o que chamamos de fakenews, ou, para sermos mais precisos, em linguagem publicitária, uma peça de uma campanha de propaganda negativa. Vejam os cortes dos vídeos e o uso de referências de outros para dizer o que o Pérez teria dito.

Yaku Pérez, da etnia Kichwa-Kañari, militante histórico do movimento indígena e ex-governador da província de Azuay, não é nada cuidadoso e claramente tem problemas. Participou ativamente do levante antineoliberal de 2019 contra Lenin Moreno. Mas todos os links do artigo citado, reproduzido acrítica e descuidadamente pelo Brasil de Fato, pegam uma ou outra frase fora do contexto, onde elas poderiam fazer sentido, ou esquecem que ele coloca coisas no condicional ("alguns" trabalhadores, "se as condições forem cumpridas"...). Ou os links são, para pessoas fora do Equador, pura desinformação. Por exemplo, sobre o dólar e o acordo comercial com os EUA, o dólar foi adotado como moeda no Equador em 1999 e isso se manteve até hoje, como política do Rafael Correa). Um brasileiro lê e fica assustado, mas mas no contexto equatoriano o que Yaku diz é que vai manter a política do Correa, continuada por Lenin Moreno.

Todos que conhecem o Equador acompanharam como o movimento indigena, suas lideranças e suas expressões eleitorais foram capazes de lutar por seus direitos, mas com inúmeros percalços táticos e com posições programáticas próprias, distintas da esquerda de origem europeia, em resumo, com suas limitações programáticas. Mas essas limitações e equívocos não são nada demais na comparação com que muitos candidatos a Executivos do PSOL, por exemplo, já apresentaram (para não falar nos do PT). A coerência programática que a atual direção da APIB soube imprimir à luta indígena no Brasil é, deste ponto de vista, um ponto fora da curva.

A questão é que, diferentemente do Brasil, onde o movimento indígena sofria derrotas atrás de derrotas isoladas nos governos petistas para o projeto desenvolvimentista (e Dilma nisso fez coisas horríveis, como Belo Monte ou a lei antiterror, como Eliane Brum sempre nos lembra), no Equador, o movimento indígena sustentou um enfrentamento de massas direto e justo contra o correísmo e o extrativismo ao longo de todo esse período. O resultado foi soldar uma aliança, que considero progressista, com o ambientalismo e o feminismo. Socialmente, isso ficou evidente no mapa das eleições (ver aqui: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/64/Votos_Presidente_por_Provincia_Ecuador_primera_vuelta_2021.svg/300px-Votos_Presidente_por_Provincia_Ecuador_primera_vuelta_2021.svg.png).

Arauz (candidato de Rafael Correa) ganhou na costa, o neoliberal Lasso em Quito e Yaku Pérez nas regiões andinas (menos Quito) e amazônicas, numa clivagem étnico-social do país. Mas os indígenas soldaram as alianças necessárias para desbordarem seus limites históricos, indo para os 20%.

O pânico do chamado "progressismo"

Um desbordamento dessa dimensão num país andino repercute em todos os demais da região e da América Latina em geral. A crise dá espaço para crescimento ou surgimento de esquerdas muito mais críticas ao sistema do que o "progressismo" desenvolvimentista, depredador e conciliador de classes de Correa, Maduro, Lula e Kirshners, fazendo confluir nessa direção desde o ambientalismo, o feminismo e o movimento indígena. (No Brasil, seria possível também acolher numa mesma frente social também os movimentos negro e LGBTQI).

Há um pânico no chamado "progressismo" do continente e no Podemos espanhol (que, com suas reivindicações do "populismo de esquerda", reverencia caudilhos e candidatos a caudilhos em todo o continente). Recordemos que todas as expressões do "progressismo", mas em particular Maduro e Evo Morales, estão há décadas indissoluvelmente ligadas ao estado e governo cubanos, ainda muito marcados pela visão de um mundo dividido entre um "campo imperialista" e outro supostamente "antiimperialista", como seriam, quem diria, a China e a Rússia capitalistas atuais, numa nostalgia de uma superpotência que lhes desse amparo geopolítico.

A política do "progressismo" é se sustentar na polarização e na ausência de alternativas entre "nós e eles", sendo nós o "povo" e seus "líderes", de preferência enquadrados por organizações sociais de massa domesticadas e o "eles", a burguesia, o imperialismo - para eles apenas o dos EUA. Esta narrativa política de polarização e aliança com novos proto-imperialismos, vem alimentando fortemente a extrema direita, que se aproveita dos limites, erros e problemas do “reformismo fraco” (para usar o conceito que o André Singer emprega para caracterizar a política do PT) para crescer por todo o continente.

Com o processo de “defenestração interna” de Evo e Garcia Linera, promovido pelo MAS depois do golpe de 2019 (expresso na chapa Arce-Choquehuanca que venceu as eleições recentes), ficou evidente que os limites da orientação progressista vem sendo questionados pelos movimentos indígenas desde de dentro e pela base. Quem acompanha a Bolívia sabe que Luis Arce e Davi Choquehuanca precisaram reunificar as forças sociais do MAS para derrotar o golpe de 2019, mas o futuro de sua relação com Evo Morales está sendo definido nas organizações sociais da Bolívia profunda.

Todo este setor teme que Yaku Pérez e o Pachakutiki - com seus problemas e limites - seja o tronco que pode fazer com que a barragem "progressista" conciliadora se rompa. A calúnia nas redes sociais desse setor da esquerda virou a norma. O youtuber comunista Jones Manoel, modernizando o velho método da “amálgama” dos debates stalinista dos anos 1950 (nome antigo para “fake news”), afirma no twitter: “Parei só agora para pesquisar sobre o Yaku Pérez. Rapaz, que combo maldito é esse sujeito. É uma mistura de Ernesto Araujo, Vera Magalhães e Eduardo Jorge”. Que nível baixo querem impor ao debate! Depois de uma passada de olhos por um ou dois sites caluniosos do "progressismo", sem a menor vontade política de compreender a complexidade dos movimento indígenas, tampouco a história e as contradições populares do Equador com o correísmo, a política do youtuber é a da desqualificação lacradora, baseada na mentira. Ativistas e militantes da esquerda que queiram acompanhar um debate sério de dentro da esquerda indigenista e ecologista ver: https://oplas.org/sitio/noticias/

Escolha de caminhos estratégicos

As diferentes posições e sensibilidades sobre a relação do projeto ecossocialista e a luta indígena com o projeto dos "progressismos" se expressam na análise das eleições equatorianas. Como esta tensão se expressa no debate sobre todas as situações nacionais e as diferentes relações que setores de esquerda têm com partidos e governos "progressistas", do PSUV da Venezuela ao Justicialismo na Argentina, passando pela enorme constelação de esquerda no Chile. Temos que separar o que são informações do que são material de propaganda, fakenews e amálgamas, por vezes mais exaltados e depreciativos, de uma ou outra posição.

Termos três candidaturas de esquerda entre os quatro primeiros colocados (o quarto colocado, com bem mais que os 10%, é algo como um socialdemocrata) nas eleições equatorianas, é de dar inveja aos brasileiros. Mostra uma sociedade muito mais mobilizada e organizada do que a nossa, onde o movimento indígena vem, nas últimas décadas, se colocando socialmente como a coluna vertebral de uma parte substancial da esquerda, aquela que pode superar as mazelas da velha esquerda e trilhar um novo caminho. Isso deveria ser motivo de alegria e não de desespero para nós, um estímulo para aprofundarmos o debate ecossocialista e nosso projeto de sociedade.

Os temas do clima e meio-ambiente, da reprodução social, da democracia real e do internacionalismo já vinham reorganizando os rumos das lutas populares, mas se tornaram centrais e incontornáveis em todo o mundo de hoje. São as grandes placas aviso da bifurcação que temos pela frente. Não enxergamos estes sinais de aviso e não seguirmos estas orientações podem nos conduzir ao precipício.

Nenhuma corrente política vai longe sem definições estratégicas: toda a esquerda séria do continente tem que saber se trabalha para superar o progressismo ou se recompor sob seus marcos. O Equador colocou, afinal, esta disjuntiva com toda sua força.