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Por que o STF retirou da pauta julgamento das terras indígenas?

23 de outubro de 2020

Roberto Antonio Liebgott, Cimi Sul Equipe Porto Alegre, 23 de outubro de 2020

Na noite de 22 de outubro de 2020, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Fux, decidiu retirar da pauta de julgamento, agendado para o dia 28 de outubro, o Recurso Extraordinário 1.017.365 relativo a um processo contra uma parcela da demarcação da terra Lá Klaño, do povo Xokleng, de Santa Catarina.


Esse processo foi caracterizado como sendo de repercussão geral já que, a partir dele, haverá um entendimento jurídico quanto a manutenção dos direitos indígenas, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988, ou seja, que os povos indígenas têm direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, direitos estes inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis. Os ministros do STF poderão também, a partir desse julgamento, referendar o antidireito, mediante a tese política do marco temporal, que foi forjada para impor a prevalência dos interesses econômicos sobre os direitos indígenas, uma vez que se criou a versão de que povos indígenas podem requerer, tão somente, a demarcação de áreas de terras se nelas estivessem vivendo no dia 05 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a atual Constituição Federal.


Há três razões que podem ter movido o Ministro Fux a retirar de pauta, ou seja, adiar o julgamento que vem sendo considerado o mais importante da história recente dos povos indígenas no Brasil. A primeira razão vincula-se ao número de ministros que compõem o pleno do STF, devem ser 11, mas com a aposentadoria de Celso de Mello houve a necessidade de indicação de um novo ministro, fato que ocorreu recentemente e tendo sido escolhido, pelo presidente Bolsonaro, o desembargador federal que atuava no TRF 1, em Brasília, Kassio Marques. Ele tomará posse nas próximas semanas e deverá, portanto, votar nesse processo.


A segunda razão, que pode ter influenciado o presidente do STF Luís Fux a adiar o julgamento, foram as pressões políticas de ruralistas, de empresários da mineração e do próprio governo federal, que desejam explorar as terras indígenas, mas, neste momento, avaliaram que a composição do STF apontava uma forte tendência de que se julgaria esse processo seguindo os balizamentos constitucionais e, portanto, diante desse contexto, optaram pelo recuo tático, até a posse do novo ministro.


A terceira razão foi a intensa mobilização dos povos indígenas em torno do julgamento. Há muito tempo não se via tamanha comunicação e articulação dos indígenas, de modo espontâneo e virtual, desde lá, das longínquas aldeias, acampamentos, áreas improvisadas e até demarcadas, propagando suas opiniões, acerca do julgamento, para o Brasil e para o mundo. Foram incontáveis as manifestações pela manutenção da Constituição Federal, pela garantia dos direitos originários e em defesa da vida, da terra e da natureza. De todos os lugares, de quase todas as terras indígenas foram divulgadas mensagens de vídeos, áudios, cartas, documentos exigindo a manutenção dos direitos e contra o marco temporal. As falas, as rezas, os rituais, os apelos de líderes religiosos, de caciques, de homens e mulheres, de jovens, adolescentes e crianças indígenas percorrem o Brasil e o mundo, anunciando que, apesar da pandemia e dos desafios impostos pelo governo brasileiro, os povos fiscalizam, monitoram e lutam pelos seus direitos à terra. Talvez essa, dentre as demais razões pelo adiamento do julgamento, seja a mais relevante e expressiva. Os ministros estavam sendo alertados pelos povos de que o marco temporal é mais um instrumento para o genocídio. Os ministros, certamente acompanharam esse movimento de vida, luta e resistência dos povos.


Mas há também o outro lado, o da perversidade, da exploração e da aniquilação. O lado dos que desejam única e exclusivamente lucrar com as terras e seus recursos. Para estes setores a Constituição Federal é um empecilho e, portanto, querem a sua mudança. E a tese do marco temporal, compõem a antipolítica, o antidireito, a lógica da exclusão e da propagação da morte, constitui-se numa estratégia perversa criada pelos inimigos dos povos indígenas para destrui-los.
Mas há resistência e luta. Os povos e seus apoiadores manterão as articulações e fortalecerão as mobilizações internas, nas comunidades, e externas, na sociedade toda.


Neste momento os inimigos dos povos, ao que parece, decidiram dar um passo atrás e, com isso, ganharem tempo até que ocorra a recomposição do colegiado do STF para, a partir dela, buscar convencer os julgadores da nossa Corte Suprema a olharem de costas para os direitos indígenas e referendarem a tese genocida.


Os povos indígenas não vão permitir que isso ocorra. Defenderão, como sempre fizeram, a terra mãe.


Seguiremos todos na luta e na esperança, em defesa da vida dos povos indígenas. NÃO ao marco temporal e SIM aos direitos originários.

Porto Alegre, RS, 23 de outubro de 2020