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Quem morre por Covid-19 no cárcere brasileiro?

A recusa do Brasil em realizar uma política de desencarceramento ampla e racional tem levado à concretização de uma tragédia anunciada e aprofundado os efeitos nocivos da seletividade punitiva

8 de setembro de 2020

Emerson Ramos*, Luísa Câmara Rocha* e Sérgio Pessoa Ferro*

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

Em 31 de maio, ocorreu a primeira morte por Covid-19 no sistema prisional da Paraíba, estado a partir de onde este texto é escrito. A vítima começou a apresentar sintomas da doença no início daquele mês e não possuía comorbidade. Preso aos 18 anos por tráfico de 31g de cocaína e porte ilegal de arma de fogo na cidade de Patos (PB), estava livre há apenas quatro meses, desde que terminara de cumprir medida socioeducativa também por ato infracional análogo ao tráfico de drogas. O jovem morreu aos 21 anos, sem pai registrado e após o falecimento da mãe.

Negro, pobre e preso em flagrante por tráfico de drogas, ele representa o perfil padrão das pessoas que compõem o sistema prisional brasileiro.

Em um mar de 748 mil pessoas presas, a sobrerrepresentação dos corpos negros é evidente. No último censo realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), com dados de junho 2017, 63,64% da população prisional declarou-se negra (preta ou parda) contra 35,48% que se declarou branca. Números que são diferentes quando se observa o total da população do país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 55% dos brasileiros declararam-se pretos ou pardos enquanto 43% declaram-se brancos.

A política criminal de drogas é a maior responsável por esse quadro. Com 29,26% da população carcerária presa por tráfico, este é o crime que, isoladamente, mais prende em território nacional. A gritante seletividade punitiva relacionada aos delitos da Lei de Drogas está umbilicalmente ligada ao controle social da raça pela prisão, vez que um dos principais efeitos da guerra às drogas é a criminalização dos territórios negros e pobres, fazendo do cárcere uma extensão dessas zonas urbanas. O que se percebe é o entrelaçamento entre o caráter seletivo e racial do sistema de justiça criminal, no qual há um direcionamento de controle social concreto à população negra, e que o discurso do “combate” ao tráfico de drogas assume a legitimidade jurídica (e supostamente neutra) desse processo.

O sistema de justiça criminal torna-se, portanto, mais um espaço perpassado pelo racismo, ganhando centralidade por ser uma readequação de um sistema racializado de controle social surgido com a escravidão. Assim, a “guerra às drogas” é a narrativa central desta engrenagem redesenhada. O discurso da epidemia e de amedrontamento da população em relação às substâncias ilícitas cria o caldo necessário para a militarização de territórios periféricos sob o verniz de enfrentamento a este “problema” social.

O mercado de drogas ilícitas constitui-se como uma atividade lucrativa e, nos grandes centros urbanos, a distribuição aos consumidores é geralmente exercida por parte dos excluídos do sistema econômico, isto é, pela classe trabalhadora que se situa à margem do mercado lícito. Este contingente é formado principalmente por adolescentes que nunca ocuparam uma vaga no mercado formal, com acesso precário à educação e que constituem o grupo social mais vulnerável a ser utilizado pelo tráfico, como no caso da primeira vítima da pandemia no cárcere paraibano. No caso deste jovem, ele insistemente confessou que fazia do tráfico de drogas seu “meio de vida” por estar “desempregado”.

Nesse sentido, a primeira morte por Covid-19 no sistema prisional da Paraíba é um registro desolador de todo o cárcere brasileiro. Historicamente marcado pela superlotação, pela seletividade punitiva e pelas condições insalubres, os presídios nacionais são espaços claramente propícios à intensificação da crise sanitária e ao adoecimento da população prisional. Apesar desse quadro, pouco foi feito para evitar a contaminação em massa das pessoas presas.

A recusa do Brasil em realizar uma política de desencarceramento ampla e racional tem levado à concretização de uma tragédia anunciada e aprofundado os efeitos nocivos da seletividade punitiva, emblematicamente retratada pela decretação da prisão domiciliar de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro investigado pelo suposto esquema de “rachadinha”. Presas e presos, policiais penais, profissionais de saúde e outras pessoas que lidam diretamente com a população carcerária têm morrido em virtude da Covid-19. Mortes que poderiam ter sido evitadas quando da adoção de medidas sanitárias preventivas e, sobretudo, de alternativas penais ao encarceramento. Soltar pessoas em grupo de risco e/ou que cometeram crimes sem violência ou grave ameaça (o que inclui o delito de tráfico de drogas) tornou-se uma medida de saúde pública e preservação do direito à vida de toda a comunidade prisional.

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. Em suma, o STF atestou que há uma violação massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas e uma prolongada omissão de autoridades no cumprimento de suas obrigações pela garantia e promoção dos direitos. Tendo por base essa constatação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu ainda em março deste ano a Recomendação nº 62, visando a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção do novo coronavírus no âmbito do sistema de justiça penal e socioeducativo.

A recomendação apresenta um conjunto de diretrizes desencarceradoras que pode ser adotado pelos magistrados e tribunais no período da pandemia, tendo em vista fatores como a aglomeração de pessoas, a insalubridade do espaço prisional, as dificuldades para garantia da observância dos procedimentos mínimos de higiene e isolamento rápido dos indivíduos sintomáticos, a insuficiência de equipes de saúde, etc. Apesar disso, não houve a adoção sistemática de nenhuma medida alternativa ao cárcere durante a pandemia, ainda que no caso de crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa e de que a vida e a saúde da pessoa presa estejam em perigo. Na implementação do combate à proliferação do novo coronavírus no ambiente prisional, há um foco na suspensão das visitas, medida que impede a colaboração das famílias na promoção da saúde das pessoas presas, uma vez que são as famílias que levam para elas remédios, alimentos e itens de higiene (além da atenção afetiva).

Toda essa propulsão da morte estimulada pela omissão estatal estabelece um regime de exceção onde as vidas negras encarceradas não contam para as políticas de saúde pública durante a governabilidade da pandemia no Brasil. Para o filósofo camaronês Achille Mbembe, as premissas modernas de racionalidade jurídica nem sempre valem nos territórios coloniais em que a autonomia individual é substituída por uma política de extermínio movida pela raça. Seguindo esse raciocínio, é possível descrever as mortes por Covid-19 nas prisões brasileiras como um projeto de genocídio da população negra pelo Estado (como dizia Abdias Nascimento), herança de um regime de escravidão que até hoje revive através da seletividade punitiva e das condições prisionais.

Essa forma de pensar não é vã, nem mesmo excessivamente crítica. Para exemplificar o que expomos, pontuamos aqui um fato simbolicamente muito marcante. Uma das medidas do Plano de Contingência adotado pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária da Paraíba (SEAP/PB) em abril deste ano foi a identificação e a transferência das pessoas privadas de liberdade com suspeita de infecção pelo coronavírus para a Penitenciária de Segurança Média Juiz Hitler Cantalice, situada na capital do estado.

Ao observar a morte de um jovem negro em uma unidade de custódia que recebe o nome de Hitler Cantalice, é inevitável rememorar o projeto de extermínio levado a cabo pelo holocausto nazista. Malgrado o sentido “literal” do nome do estabelecimento escolhido para a tutela da população privada de liberdade tenha por “referente” a homenagem a um juiz, sua composição simbólica nos remete às técnicas industriais de eliminação da diferença pelo nazismo e seus primeiros testes no imperialismo colonial, como reputa Achille Mbembe.

O campo de concentração no nazismo é o fora do Estado de Direito, um lugar em que a exceção deixa de ser transitória para ser confundida com a própria norma. Ele passa por metamorfoses, de maneira que pode ser visto em zonas de imigração, bem como nas favelas e prisões brasileiras, onde estão suspensos os direitos constitucionais a pretexto de uma “guerra às drogas”, que mata mais que estas mesmas. Esses motivos nos levam a interpretar o percurso da primeira vítima da Covid-19 no sistema prisional paraibano como o cumprimento de uma “sentença de morte”. E entender a pandemia como uma janela de oportunidade para a intensificação do caráter necropolítico do sistema prisional brasileiro.

Emerson Ramos é doutor pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGS/UFPB) e mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da mesma instituição. Professor da UNIFIP.

Luísa Câmara Rocha é advogada e mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas da UFPB (PPGCJ/UFPB). Professora do curso de Direito das Faculdades Asper/FAP.

Sérgio Pessoa Ferro é doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Também mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da mesma instituição.

Foto: Agência Brasil