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Ricardo Antunes: Capitalismo virótico não rima com conciliação

26 de dezembro de 2021

Para Ricardo Antunes, "quando se tem 5 mi­lhões de mortos, além da taxa de mor­ta­li­dade “normal” de cada ano, por do­enças e ques­tões di­versas, é porque o sis­tema chegou num nível com­pleto de des­truição, no qual a le­ta­li­dade co­meça a se tornar nor­ma­li­dade. A pan­demia não causou a tra­gédia, ela des­nudou, acen­tuou e exas­perou o que já vinha em an­da­mento. Basta citar três pontos que são an­te­ri­ores à pan­demia: 1) a des­truição hu­mana do tra­balho atinge ní­veis ini­ma­gi­ná­veis, cer­ta­mente muito su­pe­rior ao que se re­co­nhece ofi­ci­al­mente; 2) sobre a na­tu­reza, di­zíamos há 15 anos que o fu­turo es­tava com­pro­me­tido. Agora não faz mais sen­tido dizer isso, pois é o pre­sente que está com­pro­me­tido; 3) a igual­dade subs­tan­tiva entre gê­neros, raças, et­nias, nunca es­teve tão longe".

No Brasil, afirma Ricardo Antunes, "os par­tidos con­ti­nuam nos de­vendo. La­mento ver o PSOL que pa­rece cada vez mais re­petir a tra­je­tória do PT. Falo como fi­liado ao PSOL, e não como opo­sitor ou ini­migo. Mas pa­rece es­quecer que, em seu início, o PT lutou muito para não ser a cauda elei­toral do PMDB, que sempre de­fendia a frente ampla, alar­de­ando muito mudar para de fato tudo pre­servar". 

Gabriel Brito entrevista Ricardo Antunes, Correio da Cidadania, 23 de dezembro de 2021

Cor­reio da Ci­da­dania: Na en­tre­vista que en­cer­rava 2020, o fi­ló­sofo Ro­berto Ro­mano, in­fe­liz­mente uma das 620 mil ví­timas de covid-19, des­creveu o que con­si­de­rava um pro­cesso de dis­so­lução da so­ci­e­dade bra­si­leira, po­ten­ci­a­li­zado pela pan­demia. Tra­tava-se de uma alusão ao sig­ni­fi­cado quí­mico da pa­lavra, que Ro­mano usou para des­crever o que con­si­de­rava a dis­so­lução fí­sica, psí­quica e ter­ri­to­rial do país e sua po­pu­lação, as­so­lados por uma de­vas­tação co­man­dada pelo pró­prio apa­relho do Es­tado bra­si­leiro. Trata-se de uma crise geral do sis­tema usada por sua elite e grupos po­lí­ticos do­mi­nantes como opor­tu­ni­dade de re­for­mular todo um pacto so­cial, mais pre­ci­sa­mente aquele mar­cado pela Cons­ti­tuição de 1988 no caso bra­si­leiro. Como você pode sin­te­tizar 2021, um ano que pa­rece ter sido uma mera ex­tensão do an­te­rior, noção for­ta­le­cida pela pró­pria au­sência dos ritos de pas­sagem, e o que de­verá ficar para a me­mória his­tó­rica deste mo­mento?

Ri­cardo An­tunes: Posso sin­te­tizar dando o se­guinte exemplo. Logo nos pri­meiros meses de pan­demia, re­cebi um con­vite da Ivana Jin­kings, da Edi­tora Boi­tempo, para pu­blicar um pe­queno livro sobre a pan­demia. Agra­deci e disse que não, pois já es­tava fa­zendo lives e fa­lado tudo que es­tava pen­sando sobre a tra­gédia. Ela pediu para eu pensar uns dias. Um ou dois dias de­pois de re­fletir, acabei por aceitar e pensei: vou pegar en­tre­vistas que dei na época e co­locá-las no papel, sob a forma de um texto-sín­tese. Porém, quando co­mecei a es­crever este pe­queno livro, com o tí­tulo Co­ro­na­vírus: o tra­balho sob fogo cru­zado – pu­bli­cado em e-book – foi quando, de fato, eu co­mecei a re­fletir sobre o que sig­ni­fi­cava essa pan­demia. Lem­brei muito que minha mãe, nas­cida em 1918, fa­lava muito da gripe es­pa­nhola, era algo forte na me­mória dela. Du­rante dé­cadas ela se re­feria a isso como uma ex­pressão de horror. Fui, então, pouco a pouco, ao re­fletir e es­crever esse pe­queno texto, que co­mecei a en­tender o ta­manho da tra­gédia, o que me levou a uma con­clusão cen­tral: o ca­pi­ta­lismo, ou de modo ainda mais abran­gente, o sis­tema de re­pro­dução sócio-me­ta­bó­lico do ca­pital, além de ter uma en­gre­nagem des­tru­tiva – e aqui sou her­deiro de uma tese de Marx, que foi ex­po­nen­ci­al­mente de­sen­vol­vida por Més­záros - com a pan­demia tornou-se também um sis­tema letal. Foi aí que cu­nhei a ex­pressão ca­pi­ta­lismo vi­ró­tico ou pan­dê­mico. É essa, então, a minha sín­tese do que foram os anos de 2020 e es­pe­ci­al­mente, de 2021, quando ul­tra­pas­samos, no Brasil, a marca de 600 mil mortos. Para minha fe­li­ci­dade, este pe­queno livro foi, em fins de 2020, pu­bli­cado na Itália e agora está sendo tra­du­zido para o alemão, por uma edi­tora da Áus­tria.

De modo mais do que re­su­mido: a pan­demia não é um evento da na­tu­reza. Por exemplo, os de­gelos cada vez mais fre­quentes, que li­beram os vírus antes con­ge­lados que se es­par­ramam para a su­per­fície, têm a ver com aque­ci­mento global, energia fóssil, quei­madas, ex­tração mi­neral, pro­dução de­sen­freada, agroin­dús­tria, ex­pansão de área des­ti­nada ao gado, emissão de gases de efeito es­tufa, enfim, tudo isso nos levou a uma si­tu­ação não só des­tru­tiva como letal, por isso ca­pi­ta­lismo pan­dê­mico ou vi­ró­tico. Não se trata de uma aber­ração da na­tu­reza, por­tanto, os 5 mi­lhões de mortos pela pan­demia, dados que estão sub­no­ti­fi­cados (ima­gine a Índia, por exemplo; é im­pos­sível saber tudo que se passa num lugar com ta­manha in­di­gência hu­mana. E o Brasil segue na mesma linha).

Quando se tem 5 mi­lhões de mortos, além da taxa de mor­ta­li­dade “normal” de cada ano, por do­enças e ques­tões di­versas, é porque o sis­tema chegou num nível com­pleto de des­truição, no qual a le­ta­li­dade co­meça a se tornar nor­ma­li­dade. E tudo isso me faz lem­brar re­cor­ren­te­mente a tese de Marx e En­gels de que “tudo que é só­lido se des­mancha no ar”. Agora tudo que é só­lido pode der­reter, fe­necer.

Assim, a minha pri­meira cons­ta­tação é essa: a pan­demia não causou a tra­gédia, ela des­nudou, acen­tuou e exas­perou o que já vinha em an­da­mento. Basta citar três pontos que são an­te­ri­ores à pan­demia:

1) a des­truição hu­mana do tra­balho atinge ní­veis ini­ma­gi­ná­veis, cer­ta­mente muito su­pe­rior ao que se re­co­nhece ofi­ci­al­mente. No Brasil são uns 18 mi­lhões de de­sem­pre­gados, con­si­de­rando também os de­sa­len­tados. A Po­pu­lação Eco­no­mi­ca­mente Ativa (PEA) que já foi su­pe­rior a 100 mi­lhões, re­duziu-se ex­pres­si­va­mente du­rante a pan­demia. O nível de in­for­ma­li­dade está em torno de 40%. E em maio de 2020 nos de­pa­ramos com uma nova tra­gédia re­la­tada pelo IBGE: “a in­for­ma­li­dade di­mi­nuiu”, in­for­mava o ins­ti­tuto. Boa no­tícia? Não, porque sig­ni­fi­cava que o tra­balho in­formal, que re­co­lhia aquele bolsão de de­sem­pre­gados, não con­se­guia se­quer cum­prir tal função. Ao con­trário, na­quele mês a in­for­ma­li­dade também es­tava de­sem­pre­gando. Por­tanto, no mundo do tra­balho, a de­vas­tação é com­pleta e mesmo ir­re­ver­sível, do ponto de vista do sis­tema do­mi­nante. Ele pode mi­norar, em épocas de ex­pansão, e re­gredir, nas fases de re­cessão. Pensar se­ri­a­mente em pleno em­prego, no ca­pi­ta­lismo global, é um com­pleto ab­surdo;

2) sobre a na­tu­reza, di­zíamos há 15 anos que o fu­turo es­tava com­pro­me­tido. Agora não faz mais sen­tido dizer isso, pois é o pre­sente que está com­pro­me­tido. E não sa­bemos se é pos­sível re­verter o curso atual de des­truição. Sa­bemos que dá pra es­tancar, e a pan­demia já deu pistas. Quando houve o fe­cha­mento das ci­dades e as pes­soas pa­raram de cir­cular, o ar me­lhorou. O trans­porte pri­vado e as in­dús­trias des­tru­tivas são ele­mentos fun­da­men­tais da des­truição da na­tu­reza di­ante de seu con­sumo de energia fóssil. E como vamos fazer para es­tancar a des­truição? Será pre­ciso eli­minar tudo que for su­pér­fluo e so­cial e am­bi­en­tal­mente des­tru­tivo;

3) a igual­dade subs­tan­tiva entre gê­neros, raças, et­nias, nunca es­teve tão longe, com a in­ten­si­fi­cação e apro­fun­da­mento das de­si­gual­dades e da mi­se­ra­bi­li­dade. A luta an­tir­ra­cista, a re­vo­lução fe­mi­nista em curso no mundo, as ma­gis­trais re­be­liões in­dí­genas mos­tram que o sis­tema do ca­pital nos levou ao fundo do poço, pois já es­tamos num de­grau abaixo da bar­bárie.

Daí a atu­a­li­dade da frase “tudo que é só­lido se des­mancha no ar”, porque não é mais pos­sível con­ti­nu­armos sob este modo de vida. A COP-26 em Glasgow sin­te­tiza per­fei­ta­mente. Só blá-blá-blá, como re­sumiu a jovem ati­vista sueca Greta Thun­berg. O ca­pi­ta­lismo não tem ne­nhuma pos­si­bi­li­dade de en­frentar essas tra­gé­dias e, se qui­sermos tratar as coisas com rigor, esse ce­nário só tende a pi­orar. Basta um sim­ples exemplo: o Jeff Bezos (ou será Bozos?), poucos meses atrás, de­pois de acu­mular ili­mi­ta­da­mente em todos os cantos do mundo (até na China o tri­li­ar­dário atua in­ten­sa­mente) agora sonha em acu­mular ex­plo­rando o es­paço. Não basta ter de­vas­tado o nosso ter­ri­tório, é che­gada a hora de acu­mular no es­paço si­deral... Assim, se há tanta des­truição da na­tu­reza, des­truição do tra­balho e obs­tá­culos à igual­dade subs­tan­tiva, termo cu­nhado por Més­záros, é porque esse mundo não se sus­tenta mais. Ao con­trário do There is no al­ter­na­tive, o im­pe­ra­tivo cru­cial de nosso tempo é rein­ventar um novo modo de vida.

E, para não pa­recer algo utó­pico, como se os (des)va­lores do ca­pital fossem eter­na­mente in­to­cá­veis, vale olhar um pouco para a his­tória. O feu­da­lismo, por exemplo, pa­recia um sis­tema po­de­ro­sís­simo, com uma no­breza for­tís­sima, rica e ar­mada. A igreja ul­tra­con­ser­va­dora e con­tro­la­dora. Ao lado, um Es­tado Ab­so­lu­tista e des­pó­tico. Tudo isso foi der­ru­bado, em 1789, com a pri­meira re­vo­lução bur­guesa ra­dical na França. Ruiu, assim como ruiu o cza­rismo russo em 1917. Tal como nestes mo­mentos his­tó­ricos, a so­ci­e­dade chegou a seu li­mite. Em 1917 tí­nhamos uma po­tência re­vo­lu­ci­o­nária nas­cente e po­de­rosa, a classe ope­rária com seus or­ga­nismos de luta, como os so­vi­etes ou con­se­lhos, os sin­di­catos de classe e os par­tidos ope­rá­rios. Cito só estas duas grandes re­vo­lu­ções, sem aqui en­trar em seus tantos des­do­bra­mentos, cada uma delas ao seu modo. Mas vale re­cordar que também a re­vo­lução bur­guesa teve de re­correr ao seu ins­tru­mental re­vo­lu­ci­o­nário para poder des­montar a ordem feudal.

E o Brasil de hoje é um la­bo­ra­tório da ex­pe­ri­men­tação, para se testar até onde a in­di­gência hu­mana pode ser le­vada, assim como a Índia, os países afri­canos, a exemplo da África do Sul. A pró­pria ex­clusão desse imenso e ma­ra­vi­lhoso con­ti­nente da va­ci­nação em massa é exemplo do que es­tamos alu­dindo. E o Brasil, se tudo isso não bas­tasse, tem um go­verno cujo pre­si­dente é di­ta­to­rial, se­mi­bo­na­par­tista e ne­o­fas­cista (ge­rando o que ca­rac­te­rizei como go­verno-de-tipo-lumpen) que com­bina sua forma au­to­crá­tica com uma po­lí­tica ne­o­li­beral pri­mi­tiva, do que re­sultou um ne­ga­ci­o­nismo ci­en­tí­fico que foi pro­pulsor vital para a ex­pansão da pan­demia. A ideia era: “vamos soltar a boiada” e o re­sul­tado são os mais de 600 mil mortos.

Para re­sumir: vi­vemos um es­tágio da hu­ma­ni­dade onde não há mais con­serto para o atual sis­tema. Nunca es­ti­vemos tão perto do fim da his­tória da hu­ma­ni­dade. O ca­pi­ta­lismo, pouco a pouco, acabou por com­pro­meter ir­re­ver­si­vel­mente a so­bre­vi­vência hu­mana, de modo mais in­tenso nas pe­ri­fe­rias, onde vive a ampla mai­oria da hu­ma­ni­dade que de­pende de seu tra­balho para so­bre­viver. Mas esta questão vital não se re­sume ao Sul do mundo. Vimos ca­mi­nhões do exér­cito le­vando idosos para en­terro na re­gião mais rica e avan­çada da Itália, pois não havia es­tru­tura de saúde su­fi­ci­ente para aco­lher os idosos que tra­ba­lharam dé­cadas para manter o país. E há os exem­plos de França, In­gla­terra, Ale­manha, para não falar dos EUA e seu sis­tema de saúde todo pri­va­ti­zado.

Pa­rece até que aden­tramos em outro pa­tamar da di­co­tomia “so­ci­a­lismo ou bar­bárie”. No­va­mente re­cor­rendo a Més­záros: agora é “so­ci­a­lismo ou bar­bárie, se ti­vermos sorte”. Porque na bar­bárie já es­tá­vamos antes da pan­demia, agora des­cemos ainda mais al­guns de­graus.

Cor­reio da Ci­da­dania: Além da aná­lise de am­pli­tude his­tó­rica e mais con­jun­tural, de­vemos também ob­servar os acon­te­ci­mentos e fenô­menos mais ime­di­atos. No caso bra­si­leiro, temos uma po­lí­tica ne­ga­ci­o­nista e sa­bo­ta­dora da pró­pria es­tru­tura de saúde pú­blica na lida com o vírus. Ao longo do ano, ma­ni­fes­ta­ções pelo im­pe­a­ch­ment dei­xaram no ar uma dú­vida a res­peito de haver uma real von­tade dos di­versos grupos po­lí­ticos em lutar pelo fim deste go­verno com todas as forças. Como você ana­lisa os se­tores opo­si­ci­o­nistas ao go­verno Bol­so­naro e sua con­cer­tação de poder, em es­pe­cial mi­li­tares? Não lutar de forma mais re­so­luta para in­ter­romper seu go­verno não é uma es­pécie de bomba-re­lógio, isto é, uma des­mo­ra­li­zação ins­ti­tu­ci­onal, ética, po­lí­tica e so­cial que adi­ante co­brará um preço de qual­quer um que vier a as­sumir o co­mando do país?

Ri­cardo An­tunes: O preço será im­pa­gável. No plano mais con­jun­tural, esta tra­gédia vai nos co­brar muitas dé­cadas até sairmos do ato­leiro. O que chamei de era de de­ser­ti­fi­cação ne­o­li­beral ini­ciada nos anos 90 vai se es­tender pelo sé­culo que co­meçou de modo mais do que hor­ro­roso. Os porquês desse quadro atual são di­fí­ceis de ex­plicar, vão exigir que es­tu­demos mais. Po­demos ini­ciar di­zendo que no meio do ca­minho tinha uma pan­demia, algo que não tinha ocor­rido, salvo em 1918. Não po­demos culpá-la to­tal­mente, mas não dá pra tirar sua im­por­tância, uma vez que o mundo se viu ater­ro­ri­zado pelo risco imi­nente da morte em todas as fa­mí­lias. No Brasil isso foi ainda mais acen­tuado, porque este go­verno im­ple­mentou uma po­lí­tica re­co­nhe­ci­da­mente ge­no­cida. In­vestiu na ideia de “li­berar” a po­pu­lação, sem fazer lock­down e assim forçar a imu­ni­dade de re­banho. Os mais vul­ne­rá­veis se­riam con­ta­mi­nados em massa – ne­gros(as), in­dí­genas, as­sa­la­ri­ados(as) po­bres, das pe­ri­fe­rias – e isso, se­gundo o ne­ga­ci­o­nismo, imu­ni­zaria a po­pu­lação branca, das classes mé­dias ur­banas que po­de­riam se de­fender com es­tra­té­gias co­ti­di­anas de tra­balho re­moto, menos pre­cário etc. A grosso modo, essa foi a po­lí­tica de li­be­ra­li­zação da pan­demia, por certo, um traço da le­ta­li­dade do sis­tema, como ocorreu du­rante meses nos EUA, sob Trump e em tantos ou­tros países. Assim, não po­demos dizer que Bol­so­naro não sabia o que fazer. Sabia per­fei­ta­mente. Trump também sabia, fez isso e só mudou quando viu que iria perder as elei­ções. O mesmo se deu com Bol­so­naro, que só mudou par­ci­al­mente, quando a CPI aflorou a pos­si­bi­li­dade real do seu im­pe­a­ch­ment.

Em uma ana­lise mais ampla e es­tru­tural, nunca ti­vemos aqui se­quer uma re­vo­lução de­mo­crá­tica bur­guesa, como In­gla­terra, França e ou­tros países. Ale­manha, Itália e Japão também aca­baram con­so­li­dando longos pe­ríodos de­mo­crá­ticos, sempre no sen­tido bur­guês do termo. Con­se­quen­te­mente, aqui não ti­vemos nem isso, o que ajuda a en­tender porque as ins­ti­tui­ções, frente a uma vi­tória ines­pe­rada do ne­o­fas­cismo, se in­ti­mi­daram e em vá­rios mo­mentos se aco­var­daram. Re­cen­te­mente também ti­vemos go­vernos do PT, com Lula saindo com alto nível de apro­vação em seu se­gundo man­dato. Mas é bom re­cordar que houve muita fle­xi­bi­li­zação e pre­ca­ri­zação do tra­balho, ainda que, pa­ra­le­la­mente, foram cri­ados 20 mi­lhões de em­pregos e o país cresceu e se ex­pandiu. É ver­dade também que Lula foi muito ge­ne­roso com a agroin­dús­tria (quanta in­jus­tiça em em­purrá-lo para o cár­cere), assim como foi ge­ne­roso com a grande bur­guesia, in­dús­tria, bancos etc.

Mas sua der­ro­cada, em es­pe­cial no se­gundo go­verno Dilma, re­sul­tado também da enorme ma­ni­pu­lação po­lí­tica da opi­nião pú­blica, le­vada a cabo pela mídia, so­mado ao des­gaste na­tural dos seus go­vernos, a partir das re­be­liões de 2013 e da am­pli­ação da crise no Brasil, PT, todo este ce­nário foi pro­picio à de­po­sição de Dilma. Se não há dú­vida de que havia cor­rupção nos go­vernos do PT (al­guém pode ima­ginar que um go­verno possa ter apoio do Cen­trão sem cor­rupção?), vendeu-se a ideia que se tra­tava do “go­verno mais cor­rupto da his­tória”, como se a cor­rupção ti­vesse em algum mo­mento dei­xado de existir no Brasil. Basta lem­brar da di­ta­dura, coisa que a parte da ju­ven­tude não tem ideia. O que se sabia na época, de es­cân­dalos de cor­rupção, a cen­sura da Di­ta­dura proibia a im­prensa de pu­blicar.

A cor­rupção, vale acres­centar, é traço, uma marca do ca­pi­ta­lismo, ela pode ser maior ou menor. Mas a di­reita des­taca esse fato quando quer depor um go­verno, como foi aqui, que não mais lhe in­te­res­sava. A Dilma, no plano es­tri­ta­mente pes­soal, é uma mu­lher co­ra­josa, nunca roubou nada. Seu maior li­mite deve-se ao fato de que ela não era apta a manter a con­ci­li­ação es­tru­tu­rada por Lula. Aqui vale um pa­rên­tese: Lula é um gênio da con­ci­li­ação, assim como Ge­túlio Vargas foi em seu tempo. Há, en­tre­tanto, uma di­fe­rença entre eles: Ge­túlio era um es­tan­ci­eiro dos pampas, um la­ti­fun­diário, do­tado de fortes atri­butos para con­ci­liar (vi­sando do­minar) am­plos se­tores da classe tra­ba­lha­dora. Já Lula, o ex-me­ta­lúr­gico, foi ainda mais além: mos­trou in­vulgar ca­pa­ci­dade de con­ci­li­ação com a classe do­mi­nante, mas não foi capaz de com­pre­ender que ja­mais con­se­guirá “do­miná-la”. E, pelo que vem fa­zendo no pre­sente, não é di­fícil an­tever novas tur­bu­lên­cias, um pouco mais para a frente. A Dilma lhe fal­tava esse perfil de con­ci­li­ação para manter seu go­verno.

Uma úl­tima nota pra se tentar en­tender o ta­manho da crise po­lí­tica aberta. Bol­so­naro, entre ou­tras causas e con­tin­gên­cias, ga­nhou a eleição apre­sen­tando-se como o can­di­dato contra o sis­tema. E isso lhe fez con­quistar forte vo­tação po­pular na classe tra­ba­lha­dora mais em­po­bre­cida, para não falar das classes mé­dias con­ser­va­doras e do de­ci­sivo apoio da bur­guesia bra­si­leira, que é in­capaz de viver sem pre­dação. Mas, se o can­di­dato de ex­trema di­reita se dizia (por certo fal­sa­mente) contra o sis­tema, a mai­oria dos can­di­datos que se apre­sen­tavam como sendo de es­querda, se es­me­rava em apre­sentar pro­postas para con­sertar o sis­tema. É im­pres­si­o­nante a ca­pa­ci­dade que a es­querda tem (e aqui não me res­trinjo so­mente ao caso bra­si­leiro) em se apre­sentar na ba­talha elei­toral e afirmar que vai ar­rumar o sis­tema. Pre­ci­samos rein­ventar uma es­querda que tenha co­ragem de afirmar que este sis­tema é des­tru­tivo e letal, que re­cu­pere o sen­tido de es­pe­rança que se es­garçou ao longo de dé­cadas de ne­o­li­be­ra­lismo, que não será pos­sível ter em­prego para a to­ta­li­dade da classe tra­ba­lha­dora sem mu­danças es­tru­tu­rais pro­fundas, que não vai con­se­guir pre­servar a na­tu­reza e que será im­pos­sível avançar na luta pela igual­dade subs­tan­tiva entre ho­mens, mu­lheres, ne­gros, brancos, in­dí­genas, sem ferir e con­frontar os in­te­resses do ca­pital e da classe bur­guesa que hoje reina como in­to­cável e in­ques­ti­o­nável.

Cor­reio da Ci­da­dania: Ou seja, res­taria pouco es­paço para re­petir fór­mulas con­ci­li­a­tó­rias, num con­texto onde as pró­prias lutas so­ciais pro­gres­sistas mu­daram de perfil?

Ri­cardo An­tunes: Sim, veja-se o exemplo do Par­la­mento. Em me­ados do sé­culo 19, quando houve o golpe de Luis Bo­na­parte na França, Marx es­creveu (lembro aqui de me­mória): “o par­la­mento francês perdeu o mí­nimo da cre­di­bi­li­dade que tinha di­ante da po­pu­lação”. Ima­gino o que es­cre­veria se co­nhe­cesse o Brasil con­tem­po­râneo. Como pro­ceder num país onde é o pre­si­dente da câ­mara quem de­cide so­zinho se tem im­pe­a­ch­ment ou não? A po­pu­lação per­cebeu que este par­la­mento está com­prado pelo go­verno, de modo que os de­pu­tados só po­derão aban­donar Bol­so­naro na reta final da eleição, se o barco cha­furdar, quando os in­te­resses do Cen­trão já es­ti­verem to­tal­mente ga­ran­tidos. E não é di­fícil ima­ginar, então, se isso ocorrer, que esse mesmo pân­tano será a nova base de apoio do go­verno Lula. É por isso que o Brasil tem uma his­tória in­ter­mi­nável que com­bina e mescla farsa, tra­gédia e tra­gi­co­média.

Por tudo isso eu re­cordei de Er­nest Bloch, acerca da ne­ces­si­dade de se res­gatar o prin­cípio de es­pe­rança. E isso não se faz com con­ci­li­ação, mas através de mu­danças es­tru­tu­rais pro­fundas. Ve­jamos os exem­plos das co­mu­ni­dades in­dí­genas, em seus ex­pe­ri­mentos so­ciais que antes de mais nada pre­servem a na­tu­reza não só para sua ge­ração, mas para as ge­ra­ções fu­turas, dos fi­lhos, dos netos, para a hu­ma­ni­dade. Apesar de todas as di­fi­cul­dades, o MST como mo­vi­mento co­le­tivo so­bre­vive, tem es­colas, ex­pe­ri­mentos co­o­pe­ra­tivos, re­a­liza lutas fe­mi­ninas, da ju­ven­tude, dos tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras, assim como o MTST em suas lutas por mo­radia e por uma vida me­lhor. Os par­tidos con­ti­nuam nos de­vendo. La­mento ver o PSOL que pa­rece cada vez mais re­petir a tra­je­tória do PT. Falo como fi­liado ao PSOL, e não como opo­sitor ou ini­migo. Mas pa­rece es­quecer que, em seu início, o PT lutou muito para não ser a cauda elei­toral do PMDB, que sempre de­fendia a frente ampla, alar­de­ando muito mudar para de fato tudo pre­servar. O PT nasceu contra essa ideia de Frente, mas isso, sa­bemos, já faz mais parte do pas­sado do que do pre­sente, ainda que dentro do PT também se possa en­con­trar mi­li­tância crí­tica e que se pre­o­cupa com esse ce­nário.

Por fim, para compor o quadro de tantas di­fi­cul­dades, hoje não está fácil fazer lutas ope­rá­rias. As pes­soas sabem do risco ainda maior do de­sem­prego cau­sado pela pan­demia e sabem que mesmo sem fazer luta ou greve já tem o risco de ver seu nome na lista de de­mis­sões. A con­jun­tura tem um caro lado ad­verso para o mo­vi­mento ope­rário. Assim, es­tamos obri­gados a avançar nas lutas que fazem parte da his­tória da classe tra­ba­lha­dora e também ter ou­sadia para in­ventar novas formas de luta so­cial e de classes, que flo­rescem no Brasil, Amé­rica La­tina, África, Ásia. O que deve, en­tre­tanto, ser for­te­mente en­fa­ti­zado que o ca­minho apa­ren­te­mente mais se­guro da con­ci­li­ação de classes acaba por nos dis­tan­ciar ainda mais da rein­venção de um novo modo de vida para além dos cons­tran­gi­mentos im­postos pelo ca­pital, que já atingiu um nível de de­vas­tação – e con­trar­re­vo­lução – que con­verteu a “de­mo­cracia” atual em um ta­bu­leiro onde, em úl­tima ins­tância quem manda são os ca­pi­tais, as grandes cor­po­ra­ções fi­nan­ceiras que nos im­põem uma re­a­li­dade fic­ci­onal, cujo ob­je­tivo não é outro senão es­ca­mo­tear o do­mínio das bur­gue­sias glo­bais, na­tivas e fo­râ­neas, que são as que detêm o con­trole das ri­quezas e também de todos os go­vernos do mundo, com ra­rís­simas ex­ce­ções.

É por isso que não há ne­nhum país ca­pi­ta­lista que não tenha sua eco­nomia sob con­trole di­reto do ca­pital fi­nan­ceiro, o mais des­tru­tivo, o mais des­pro­vido de qual­quer sen­tido aní­mico. Lembro aqui a for­mu­lação de Marx. O sonho do ca­pital, desde sua gê­nese, é fazer com que di­nheiro (D) vire mais di­nheiro (D’). Mas para que o di­nheiro vire mais di­nheiro, Marx de­mons­trou que é pre­ciso pro­duzir mer­ca­do­rias para, ao final, gerar acu­mu­lação de ca­pital. Daí sua fór­mula in­ter­mi­nável: D-M-D’, se­guida de D’-M’-D”, de­pois D’’-M’’-D”’ e assim segue o curso in­ter­mi­nável da ló­gica da acu­mu­lação de ca­pital, dado que sem pro­dução não se cria mais di­nheiro, a pro­dução de mais valia é vital para a acu­mu­lação de ca­pital e o ciclo se torna in­ter­mi­nável. E hoje ele só pode se re­pro­duzir, como in­di­camos an­te­ri­or­mente, de­vas­tando e des­truindo tudo que lhe obsta e atra­palha.

Nesse sen­tido, o mundo vive um mo­mento hor­ro­roso, como vemos na briga entre Apple e Hu­awei pelo mer­cado global do 5G, grande sím­bolo das dis­putas glo­bais e do ta­manho do im­bró­glio em que se en­contra a hu­ma­ni­dade. Não tenho dú­vidas de que, em meio a tantas tra­gé­dias, en­tra­remos em uma era de con­vul­sões so­ciais pro­fundas. Não tenho o se­gredo de como serão tais con­vul­sões, mas elas vão acon­tecer.

Cor­reio da Ci­da­dania: A res­peito de novas di­nâ­micas de lutas e con­fron­ta­ções so­ciais, o Chile passa por um com­plexo pro­cesso po­lí­tico, que cul­minou na ela­bo­ração de uma nova Cons­ti­tuinte e, pa­ra­le­la­mente, numa eleição que marcou uma forte po­la­ri­zação so­cial. No en­tanto, pa­rece haver al­guma dis­so­nância entre o cha­mado “es­tal­lido” que parou o país por meses e as pla­ta­formas elei­to­rais, re­fle­tida in­clu­sive na alta taxa de abs­tenção nas urnas. En­quanto o es­tal­lido apa­ren­tava um mo­no­pólio das ideias pro­gres­sistas e de es­querda na luta po­pular, nas urnas um can­di­dato de ul­tra­di­reita es­teve perto da vi­tória. Em ou­tras pa­la­vras, a vi­tória de um can­di­dato pro­gres­sista não ne­ces­sa­ri­a­mente será su­fi­ci­ente para fazer avançar as pautas pro­gres­sistas for­te­mente ex­pres­sadas nas ma­ni­fes­ta­ções de massa. O Brasil e o re­torno triunfal de Lula como es­pe­rança de tempos me­lhores não tendem a re­pro­duzir essa di­nâ­mica, de forma até mais no­tória, a con­si­derar a com­po­sição al­ta­mente re­a­ci­o­nária do Con­gresso e o pe­cu­liar pro­ta­go­nismo dos mi­li­tares em nosso ce­nário?

Ri­cardo An­tunes: O Chile tem sido um grande la­bo­ra­tório so­cial. Pela pri­meira vez, no pe­ríodo mais re­cente, com a eleição de Al­lende e a ten­ta­tiva de im­plantar o so­ci­a­lismo por meio elei­toral. E acres­cento que esse ex­pe­ri­mento teve um traço su­blime de gran­deza, que na época não víamos, em razão de nossas re­servas quanto às pos­si­bi­li­dades do so­ci­a­lismo pela via elei­toral. Mas é pre­ciso dizer que a ex­pe­ri­ência de Al­lende foi gran­diosa e der­ro­tada pelo velho golpe mi­litar, di­ta­to­rial, re­pressor, que tanto ma­cula a Amé­rica La­tina. O se­gundo ex­pe­ri­mento ti­vemos com a fusão da di­ta­dura mi­litar de Pi­no­chet com o ne­o­li­be­ra­lismo. O Chile foi o pri­meiro país ne­o­li­beral do mundo, antes mesmo que a In­gla­terra, que foi a pri­meira na Eu­ropa, se­guida pela Ale­manha de Helmut Kohl e, claro, os EUA de Re­agan. A di­ta­dura chi­lena im­plantou um ne­o­li­be­ra­lismo pri­mi­tivo e san­gui­nário, não é à toa que foi lá que Paulo Guedes foi ex­pe­ri­mentar seus apren­di­zados ob­tidos na cha­mada Es­cola de Chi­cago.

E, como cor­re­ta­mente apon­tado na per­gunta, as ex­plo­sões so­ciais de 2019 no Chile davam a im­pressão de que as es­querdas so­ciais vi­viam um pleno do­mínio sobre o país. E as elei­ções mos­traram que não era bem assim, pois o can­di­dato na­zista (Jose An­tonio Kast, filho de um ofi­cial alemão na­zista) ga­nhou no pri­meiro turno e as­sustou. É aqui que entra a tra­gédia que a de­mo­cracia bur­guesa impõe às es­querdas. Ga­briel Boric é li­de­rança jovem, nas­cida nas lutas so­ciais e es­tu­dantis de dez anos atrás, um pouco à margem dos par­tidos tra­di­ci­o­nais. Mas agora co­meça a ser tes­tado: ou fazia as con­ces­sões ao centro, para ga­nhar as elei­ções, ou corria o risco de perder as elei­ções.

A si­tu­ação de hoje, com pe­quenas va­ri­a­ções lo­cais, é mais ou menos assim: a ten­dência elei­toral do­mi­nante na Amé­rica la­tina tem sido mais ou menos assim: um terço de es­querda, um terço di­reita aberta e mesmo fas­cista e um terço de centro, que vai para um ou outro lado con­forme os con­textos. A ex­pansão da ex­trema-di­reita é mun­dial, e a partir da eleição de Trump, ou do Brexit, ela cresceu, a exemplo do leste eu­ropeu, Fi­li­pinas, até na Índia. Ela cresceu e a in­fluência de mo­vi­mentos ne­o­na­zistas au­mentou.

Como já dis­semos agora e em ou­tras en­tre­vistas, a es­querda foi pouco a pouco aban­do­nando o que era seu ele­mento mais forte, que era de ser ra­dical em suas for­mu­la­ções. E digo ra­dical em termos eti­mo­ló­gicos, isto é, de buscar as raízes dos pro­blemas. E hoje a ex­trema–di­reita abraçou o dis­curso ra­dical, perdeu a ver­gonha de se apre­sentar assim. Ela nem mais se de­fine como di­reita e sim como ex­trema-di­reita, como fas­cista ou mesmo na­zista. E ela quer mudar o sis­tema, ao seu modo, assim como o na­zismo de Hi­tler e o fas­cismo de Mus­so­lini também fa­lavam em mu­dança do sis­tema. E em meio ao res­sur­gi­mento deste ce­nário, a es­querda ma­jo­ri­ta­ri­a­mente, para de­fender o que resta de “li­ber­dades de­mo­crá­ticas”, vem se tor­nando a via de con­cer­tação do sis­tema. Não é di­fícil ima­ginar onde isso vai acabar.

No caso bra­si­leiro, de­pois de 2013 não vimos nada pa­re­cido com os grandes le­vantes ini­ci­ados em 2019 no Chile e que se man­ti­veram mesmo na pan­demia. A causa ime­diata foi o au­mento do preço do trans­porte, tal como em 2013 por aqui. E o Chile vinha sendo um barril de pól­vora há anos. Era certo que o país ia ex­plodir em algum mo­mento. Havia uma la­tência, algo pa­re­cido com um vulcão. Se você olhá-lo por cima verá que mesmo sem a erupção está tudo bor­bu­lhando lá dentro. Era assim que o país se en­con­trava já há anos. Pude estar vá­rias vezes no Chile nesta úl­tima dé­cada. A pri­va­ti­zação do país criou bol­sões de po­breza num povo que cada vez mais bus­cava re­cordar e re­viver a ex­pe­ri­ência de Al­lende.

O Brasil vive algo pa­re­cido, em­bora ainda não se tenha dado conta ple­na­mente (os pri­meiros si­nais estão se evi­den­ci­ando), de­pois de 5 anos de des­truição, para citar so­mente os anos mais re­centes. O povo olha hoje o pe­ríodo Temer-Bol­so­naro e pensa: “quero Lula de volta”. Se che­gamos num nível onde as pes­soas põem o osso na pa­nela pra ter o cheiro da carne... Isso co­meça a ser en­ten­dido, pois no go­verno Lula tinha carne ou frango na mesa da am­plos se­tores da classe tra­ba­lha­dora, ao menos uma vez por se­mana. Qual­quer com­pa­ra­tivo, então, é fa­vo­rável ao PT, mesmo tendo sido um go­verno so­cial-li­beral e não an­ti­ne­o­li­beral. Sem ne­nhum traço re­for­mista com­pa­rável ao go­verno João Gou­lart, que em 1964 caiu por isso. O PT não caiu por ser re­for­mista. O PT caiu porque a con­ci­li­ação não in­te­ressa mais. A de­mo­cracia virou o ta­bu­leiro das grandes cor­po­ra­ções e, ou a es­querda joga de acordo com o que a bur­guesia quer, ou a bur­guesia apa­rece com a opção fas­cista pra co­locar a faca no pes­coço das es­querdas. Te­me­rosa, as es­querdas acabam acei­tando esse jogo. Até o Alckmin é co­bi­çado para vice, assim como foi Temer an­te­ri­or­mente. E Lula diz que dorme tran­quilo. Mas al­guém acha que Lula ima­ginou um gol­pista em Temer? Não, até porque é a re­a­li­dade que faz o gol­pista. Temer, com sua su­ti­leza hor­ri­pi­lante, se fez gol­pista na hora em que as classes do­mi­nantes dele pre­ci­saram. E foi assim que ele con­se­guiu, re­cen­te­mente, se­gurar Bol­so­naro, seu “com­pa­nheiro de ba­ta­lhas”, que as­sinou o papel que Temer es­creveu sem he­sitar. “Não quer cair? Vem co­migo, faz assim”. E Bol­so­naro res­pondeu: “es­creve que eu as­sino”.

Eu re­co­nheço que es­tamos numa si­tu­ação de­li­cada. O que eu não quero mais viver de­pois de quase quatro dé­cadas? Não quero mais uma di­ta­dura mi­litar e menos ainda uma di­ta­dura fas­cista. Na di­ta­dura mi­litar de 64, não sa­bíamos se iri­amos presos na ca­lada da noite. Por­tanto, claro que numa eleição entre um fas­cista e um não fas­cista, se assim for o se­gundo turno, a nossa opção é obvia. Até pra poder salvar o mí­nimo e úl­timo resquício da Cons­ti­tuição de 1988. Ela foi re­sul­tado de um pacto so­cial também con­ser­vador. Lembro de vastos se­tores da es­querda que éramos contra a Cons­ti­tuição Fe­deral de 1988, não foi à toa que o PT não a as­sinou e par­la­men­tares que o fi­zeram foram ex­pulsos do par­tido. É uma Cons­ti­tuição que hoje se mostra pro­gres­sista, mas que na época sa­bíamos que podia ter sido muito mais avan­çada, bem me­lhor. Na hora final o Cen­trão – que já existia – foi lá e fez seus acertos e con­tra­bandos. Era um avanço em re­lação à di­ta­dura, claro, mas a luta de classe no Brasil dos anos 80 foi das mais fortes da his­tória do sé­culo 20. A Cons­ti­tuinte foi um avanço, mas o pân­tano era po­de­roso ali também; os con­ser­va­dores de então fi­zeram o que pre­ci­sava para manter traços de clara con­ser­vação. Foi assim que che­gamos até aqui.

Qual al­ter­na­tiva posta por Lula? Um re­pe­teco ainda mais mo­de­rado de 2002. Se ele ga­nhar, vamos res­pirar a sen­sação de mais li­ber­dade de­mo­crá­tica, de que nos dis­tan­ci­amos um pouco do fas­cismo. No en­tanto, não dá para ima­ginar mu­danças pro­fundas. Qual­quer go­verno de es­querda de­veria re­vogar todas as me­didas de go­verno de Temer pra cá: PEC dos gastos não fi­nan­ceiros, con­trar­re­formas tra­ba­lhista e pre­vi­den­ciária, leis de ter­cei­ri­zação, li­be­ração geral de agro­tó­xicos, todo o des­monte so­cial e am­bi­ental. E também a lei an­ti­ter­ro­rismo edi­tada por Dilma, entre ou­tras me­didas até do go­verno do PT, re­es­ta­ti­zação das em­presas es­tra­té­gicas, ativos es­tra­té­gicos como ae­ro­portos... Vão fazer isso com Alckmin? Ele não é um bo­neco, tem ex­pressão, sempre foi de centro-di­reita, ainda que não seja um fas­cista.

Não por acaso Bol­so­naro teve apoio po­pular amplo. O pro­fundo des­gaste so­frido pelo pe­tismo nas massas tra­ba­lha­doras en­con­trou em Bol­so­naro o único can­di­dato que se dizia contra o sis­tema. Assim, ainda es­tamos numa quadra his­tó­rica ter­rível, de con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva, para lem­brar nosso que­rido Flo­restan Fer­nandes, e as es­querdas se­guem ainda muito acu­adas.

Só não é pior o quadro porque a si­tu­ação do ca­pi­ta­lismo é de crise pro­funda. Fa­lamos da crise das es­querdas e dos mas­sa­cres contra a classe tra­ba­lha­dora. Mas é pos­sível sus­tentar um sis­tema que des­trói a hu­ma­ni­dade e na­tu­reza em todas as suas di­men­sões, para en­ri­quecer de forma brutal 1% ou pouco mais da po­pu­lação mun­dial, que por sua vez vai con­cen­trar 90% da ri­queza e levá-la ao es­paço si­deral, porque aqui já não tem mais es­paço – in­clu­sive fí­sico – para sa­quear a hu­ma­ni­dade e des­troçar a na­tu­reza?

Por­tanto, volto ao início da en­tre­vista: tudo que é só­lido pode der­reter. E as es­querdas têm esse de­safio pela frente, que não é con­sertar o sis­tema – que é, re­pito, “in­con­ser­tável”- mas rein­ventar um novo modo de vida. O de­safio das es­querdas so­ciais, da re­vo­lução fe­mi­nista an­ti­ca­pi­ta­lista, do mo­vi­mento an­tir­ra­cista está em curso. Temos muito a aprender com as co­mu­ni­dades in­dí­genas, que vi­veram sua his­tória in­teira sem pro­pri­e­dade pri­vada, sem mer­ca­doria, sem lucro. Por que tudo isso é in­dis­cu­tível e in­to­cável? Por que fa­lamos tanto em di­mi­nuir os di­reitos da classe tra­ba­lha­dora? Por que não fa­lamos em di­mi­nuir os di­reitos da pro­pri­e­dade pri­vada? Pre­ci­samos aprender com as co­mu­ni­dades à margem do ca­pital, com as pe­ri­fe­rias e suas ex­pe­ri­ên­cias de auto-or­ga­ni­zação, com os sin­di­catos de classe e es­pero que os par­tidos de es­querda sejam ca­pazes de vol­tarem a ser aber­ta­mente contra a ordem. As es­querdas devem re­cusar a ba­talha na linha de menor re­sis­tência, para re­cordar a me­tá­fora de Més­záros. O ca­pital apre­senta o seu par­la­mento como ta­blado para a luta. E a es­querda vai lá. Apre­senta as elei­ções e as es­querdas jogam todo o oxi­gênio nelas.

A pan­demia nos mos­trou que de­vemos rein­ventar um novo modo de vida. Es­tamos obri­gados a isso, uma vez que o modo de vida atual é des­tru­tivo e cada vez mais letal.

Mas dizem “ah, o so­ci­a­lismo acabou”. É brin­ca­deira di­zerem isso. O so­ci­a­lismo teve 150 anos pra der­rotar o ca­pi­ta­lismo e ainda não o fez. É ver­dade. Do mesmo modo que o ca­pi­ta­lismo de­morou mais ou menos três sé­culos pra der­rotar o feu­da­lismo. As pri­meiras lutas ca­pi­ta­listas re­metem à re­vo­lução co­mer­cial de Ve­neza, pra não irmos na re­vo­lução de Avis em Por­tugal. O re­nas­ci­mento co­mer­cial data dos iní­cios do sé­culo XVI. E o ca­pi­ta­lismo só foi vi­to­rioso, na França e na In­gla­terra, ao final do sé­culo XVIII. Na Ale­manha, Itália e Japão, no final do sé­culo XIX. Por que o so­ci­a­lismo teria obri­ga­to­ri­a­mente que der­rotar o ca­pi­ta­lismo em um sé­culo e meio?

E o ca­pi­ta­lismo não tem mais jeito de se sus­tentar, senão pela via au­to­crá­tica que tem a apa­rência de de­mo­crá­tica. Se os seus in­te­resses co­meçam a ser des­lo­cados, o ca­pital re­move o ta­bu­leiro, e o jogo pre­cisa co­meçar de novo.

Em 2021 com­ple­tamos 150 anos do mais belo ex­pe­ri­mento so­ci­a­lista. Durou 71 dias. Uma ex­pe­ri­ência mo­nu­mental. A Co­muna de Paris não caiu pelas suas de­for­ma­ções in­ternas, como as re­pú­blicas da an­tiga URSS. Caiu porque o exér­cito de Ver­sa­lhes, do ab­so­lu­tismo francês se aliou ao prus­siano, pa­raram de lutar entre si e se uniram para mas­sa­crar e der­rotar os co­mu­nardos. Uma ex­pe­ri­ência que caiu pelos seus mé­ritos, não suas de­for­ma­ções. Que a Co­muna seja nosso ponto de par­tida e não de des­pe­dida.

Cor­reio da Ci­da­dania: Sobre mi­li­tares, o que fazer com eles? Um país que não puniu sua di­ta­dura não se vê agora atado por mi­li­tares que en­xergam o país, seu ter­ri­tório e seu povo de forma tão re­tró­grada, senão até mais, quanto aqueles que es­ta­be­le­ceram 20 anos de di­ta­dura mi­litar? Sua pre­sença no apa­rato ad­mi­nis­tra­tivo não é um obs­tá­culo de­ci­sivo para qual­quer fu­turo go­verno pós-Bol­so­naro em termos de re­or­ga­ni­zação mí­nima da es­tru­tura pú­blica e seu aten­di­mento de ne­ces­si­dades bá­sicas da po­pu­lação?

Ri­cardo An­tunes: Cer­ta­mente será um obs­tá­culo. Se há al­guma coisa hoje evi­dente que os go­vernos pe­tistas foram in­ca­pazes de en­frentar, foi a questão mi­litar. Quando Lula foi eleito, em 2002, com mais de 53 mi­lhões de votos, e os mi­li­tares ainda eram lem­brados pelos hor­rores da Di­ta­dura, era o mo­mento de se en­frentar a questão mi­litar. Na Ar­gen­tina foi um li­beral (Raúl Al­fonsín) que ini­ciou os pro­cessos contra os mi­li­tares da di­ta­dura de 1976-82, acu­sados de tor­turas, as­sas­si­natos e crimes dos mais bár­baros, como apro­pri­ação de cri­anças fi­lhas das mi­li­tantes que eram ado­tadas pelos bur­gueses, que re­ce­biam de pre­sente de mi­li­tares com­pro­me­tidos até a me­dula com os crimes co­me­tidos, coisa que tem clara se­me­lhança com a de­su­ma­ni­dade tí­pica do na­zismo. Foi um go­verno li­beral e con­ser­vador quem fez tal en­fren­ta­mento.

No Uru­guai também foram pro­ces­sados os mi­li­tares pra­ti­cantes de vi­li­pên­dios como cen­sura e mortes de mi­li­tantes. No Chile o horror do exér­cito “quase prus­siano” e das forças ar­madas pos­ter­garam o acerto de contas. Aqui tem uma cou­raça que pro­tege os mi­li­tares, e grande parte do ódio dos mi­li­tares ao go­verno do PT se deve às me­didas to­madas pelo go­verno Dilma, com a im­plan­tação da Co­missão da Ver­dade. O go­verno Lula sempre evitou me­didas que des­con­ten­tassem mi­li­tares. E o preço dessas ações vemos hoje, quando mi­li­tares da ca­serna des­co­briram que podem se lo­cu­pletar no apa­relho ad­mi­nis­tra­tivo e civil, du­pli­cando e às vezes tri­pli­cando seus sa­lá­rios.

As con­sequên­cias ne­fastas são pre­sen­ci­adas a cada dia. Ao se ter como mi­nistro da saúde um chefe de tropa “es­pe­ci­a­lista em lo­gís­tica” abriu-se o ca­minho para a tra­gédia que vimos, no des­caso com a pan­demia, da qual Pa­zu­ello é cor­res­pon­sável. Mas há uma con­sequência po­si­tiva no meio de tantos hor­rores: está se der­re­tendo a imagem “san­ti­fi­cada” dos mi­li­tares, como seres “in­cor­rup­tí­veis”. É só ter uma bo­quinha que tudo se mostra di­fe­rente, não ne­ces­sa­ri­a­mente para o con­junto da tropa, mas para par­cela ex­pres­siva, in­clu­sive da ativa. E também está se de­sin­te­grando a ideia de que só po­lí­tico é cor­rupto, como creem os se­tores mais toscos e ig­no­rantes das ca­madas mé­dias, por exemplo.

Mas a re­so­lução disso é di­fícil. O pro­cesso de po­li­ti­zação das forças ar­madas terá que ser, mais dia ou menos dia, efe­ti­va­mente en­fren­tado, assim como a rei­te­ração da sua ab­so­luta im­pos­si­bi­li­dade – sob pena grave – de atuar po­li­ti­ca­mente. Quem tem ar­senal bé­lico, não pode exercer função po­lí­tica, deve sair da ca­serna, se assim quiser atuar. E Bol­so­naro, sa­bendo que a ge­ne­ra­li­zação do sen­ti­mento po­pular de que ele faz o pior go­verno de todos os tempos, cada vez mais pro­cura en­con­trar al­ter­na­tivas de apoio nas mi­lí­cias e nas PMs; não à toa está ten­tando di­mi­nuir o con­trole dos go­vernos es­ta­duais sobre elas. Assim, a re­so­lução da questão mi­litar passa efe­ti­va­mente pela ação po­pular, pela de­cisão so­be­rana da po­pu­lação, ao de­li­berar o que pode e o que não pode ser feito.

Por certo, nada se pode es­perar da classe do­mi­nante, que é pre­da­tória e sempre flertou com o fas­cismo. Sempre é bom lem­brar que a bur­guesia bra­si­leira en­cheu de re­cursos pró­prios o apa­relho de re­pressão criado pela di­ta­dura mi­litar.

Por­tanto, a questão mi­litar será de di­fícil en­fren­ta­mento. E, fran­ca­mente, não será sob o go­verno Lula que en­fren­ta­remos essa questão. Ele não tem nem nunca teve es­tru­tura po­lí­tica pra tal en­fren­ta­mento. Nunca teve pos­tura ou­sada frente a mi­li­tares, nem mesmo na época das grandes greves que o pro­je­taram nos anos 70. Nesse sen­tido a Dilma foi muito mais co­ra­josa. Não à toa a Co­missão da Ver­dade acon­teceu sob seu go­verno, não com Lula, o que foi su­fi­ci­ente pra deixar os mi­li­tares en­san­de­cidos contra o PT de Dilma, uma vez que a Co­missão re­co­nheceu os crimes como tendo res­pon­sá­veis dentro das forças ar­madas.

Se ima­gi­narmos que nossa re­pú­blica nasce de golpe mi­litar e ao longo de sua his­tória as in­ter­ven­ções mi­li­tares se su­ce­deram, te­remos di­fi­cul­dades. Mas em algum mo­mento isso terá de ser en­fren­tado.

Até nos EUA, onde existe uma clara se­pa­ração ju­rí­dica dos mi­li­tares, que não podem atuar na po­lí­tica in­terna, sa­bemos que Trump tentou de­ses­pe­ra­da­mente, es­pe­ci­al­mente no final do seu man­dato, in­cen­tivar os nú­cleos gol­pistas exis­tentes nos EUA. Ele acre­ditou que a in­vasão do Ca­pi­tólio con­taria com apoio de se­tores im­por­tantes das forças ar­madas, o que não ocorreu. Assim, não será fácil en­frentar a questão mi­litar, ainda mais de­pois da po­li­ti­zação exa­cer­bada que as FA so­freram, agora sob o go­verno Bol­so­naro.

Cor­reio da Ci­da­dania: Pra fi­na­lizar, en­tramos um pouco no uni­verso que sempre foi es­tu­dado por você, o mundo do tra­balho. Como en­xerga a classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira, que pa­rece cen­tral no pro­cesso de dis­so­lução aqui de­ba­tido, com suas atuais mor­fo­lo­gias, no meio deste tur­bi­lhão de de­mandas e frus­tra­ções so­ci­o­e­conô­micas? A CPI dos apli­ca­tivos en­cerra o ano po­lí­tico em São Paulo e, apesar da pouca re­per­cussão, não es­tamos di­ante de uma ja­nela do que deve ocorrer nos pró­ximos tempos em termos de lutas de classes tra­ba­lha­doras?

Ri­cardo An­tunes: Eu não queria estar na pele de Lula em plena lula de mel com o santo Alckmin, se a dupla vencer a eleição e tomar o poder. Ima­gi­nemos o re­pre­sa­mento pre­sente nos que sentem fome, mi­séria, perda de di­reitos, in­for­ma­li­dade, des­truição da pro­teção so­cial e tra­ba­lhista, de­sem­prego, a frus­tração de tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras que estão fora do sis­tema de pre­vi­dência... Se a classe tra­ba­lha­dora votar em Lula é na es­pe­rança de re­con­quistar uma si­tu­ação an­te­rior po­si­tiva. Como fazer isso com um go­verno que pre­tende re­e­ditar, nesta si­tu­ação gra­vís­sima em que nos en­con­tramos, a po­lí­tica da con­ci­li­ação? Não será nada fácil.

Se Alckmin é um grande sím­bolo do con­ser­va­do­rismo, como avançar na re­forma agrária, só pra dar um exemplo? Como re­vogar todas as me­didas de de­vas­tação da era Temer-Bol­so­naro?

Há um se­gundo ponto, im­por­tante, e mais con­cei­tual: a nova mor­fo­logia do tra­balho nos obriga a en­tender que aden­tramos em uma era de lutas so­ciais. Como en­frentar a questão do tra­balho ube­ri­zado? Nin­guém po­derá falar de julho de 2020 sem falar no breque dos apps, a greve dos tra­ba­lha­dores de apli­ca­tivos. Esse epi­sódio já é parte da his­tória da luta da nova classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira. Daqui a 30 anos, quando es­cre­verem a his­tória da luta da classe tra­ba­lha­dora no sé­culo 21, terão de citar o dia 1 de julho de 2020 e si­na­lizá-lo como uma greve das mais im­por­tantes, o #Bre­que­Do­sApps, que abriu um ciclo novo de re­voltas em vá­rias partes do mundo.

Re­cen­te­mente, uma li­de­rança chi­nesa desse setor so­freu forte per­se­guição; na In­gla­terra, França, Itália, em vá­rios países da Amé­rica La­tina as greves de apps se es­par­ra­maram... Há, por con­sequência, si­nais de avanços nas lutas. A Co­missão Eu­ro­peia de­finiu re­cen­te­mente que tra­ba­lha­dores de Uber e as­se­me­lhados têm di­reitos pro­te­tivos, sim, não são autô­nomos, são as­sa­la­ri­ados. A Es­panha já re­co­nheceu, em 2021, que tais tra­ba­lha­dores devem ser abar­cados na le­gis­lação pro­te­tora do tra­balho. A Índia teve greves de mais de 200 mi­lhões de ope­rá­rios há cerca de 3, 4 anos, e mais re­cen­te­mente de pe­quenos pro­pri­e­tá­rios cam­po­neses contra po­lí­ticas ne­o­li­be­rais. São exem­plos de dis­tintas lutas que tendem a se ex­pandir e se ge­ne­ra­lizar.

Temos ainda a pro­le­ta­ri­zação do setor de ser­viços. Este deixou de estar à margem do ca­pi­ta­lismo, uma vez que se en­contra cada vez mais pri­va­ti­zado. A co­mo­di­ti­zação, mer­ca­do­ri­zação e pri­va­ti­zação dos ser­viços os con­ver­teram em grandes em­presas lu­cra­tivas que não param de crescer. Há uma imen­sidão de em­presas, como a Amazon, que não param de crescer em cima da su­pe­rex­plo­ração do tra­balho.

Qual o pulo do gato dessas em­presas? Con­verter o as­sa­la­riado em apa­rente não as­sa­la­riado. Trans­fi­gurar uma pessoa pro­le­ta­ri­zada em “autô­noma”. Na me­dida em que isso avança, e tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras viram “em­pre­en­de­dores”, isso ocorre para que sejam ex­cluídos da le­gis­lação do tra­balho. E o pro­le­ta­riado de ser­viços não para de se am­pliar. Lem­bremos quantas greves ti­vemos em call-cen­ters, na in­dús­tria ho­te­leira, nas ca­deias de fast food, na úl­tima dé­cada.

Isso tudo ainda cau­sará muitas ex­plo­sões so­ciais, pois não houve ne­nhum pe­ríodo, nem nos mais di­fí­ceis, em que a classe tra­ba­lha­dora não pro­cu­rasse se or­ga­nizar. Em seu início, como mostra En­gels no livro A si­tu­ação da classe tra­ba­lha­dora na In­gla­terra, ti­vemos o lu­dismo, isto é, a quebra de má­quinas. Se­guiram-se inú­meras greves, de­pois veio a cri­ação dos sin­di­catos, o mo­vi­mento car­tista etc. Foram assim as lutas do pro­le­ta­riado in­dus­trial ao longo do tempo e o mesmo vale para as lutas do pro­le­ta­riado rural.

Pouca gente lembra hoje, mas pouco de­pois do ciclo das greves do ABC houve es­pe­ta­cu­lares greves dos boias-frias na re­gião de Ri­beirão Preto e in­te­rior de SP, onde a agroin­dús­tria de­vas­tava tudo. Agora aden­tramos um pe­ríodo his­tó­rico que in­clui o setor de ser­viços na di­nâ­mica das grandes lutas.

Por fim, quero en­fa­tizar aqui a crise atual do ca­pi­ta­lismo, cujo sis­tema não ofe­rece ne­nhuma pers­pec­tiva de fu­turo para a hu­ma­ni­dade. E ne­nhuma pers­pec­tiva de pre­sente que não passe por des­truição e le­ta­li­dade, algo ti­pi­fi­cado pela atual fase pan­dê­mica.

Mu­da­remos tal es­tado de coisas na me­dida em que re­cu­pe­rarmos este mo­saico de lutas so­ciais que se veem em todos os con­ti­nentes. En­tra­remos em uma era de fortes tur­bu­lên­cias. Quem diz ser im­pos­sível, des­preza a his­tória. O im­pério ro­mano caiu, a so­ci­e­dade feudal caiu, os im­pé­rios te­o­crá­ticos ori­en­tais também; a União So­vié­tica, o se­gundo país mais po­tente do mundo na época, caiu sem ne­nhuma in­vasão de um exér­cito ca­pi­ta­lista. Caiu como cas­telo de cartas. Eu não sei quem de nós verá o mesmo sobre o ca­pi­ta­lismo. Não tenho ilusão de que terei olhos para co­me­morar isso, mas en­tra­remos numa era de muitas lutas so­ciais.

Pela pri­meira vez na his­tória, a hu­ma­ni­dade corre risco pro­fundo. Por­tanto, se o fim da hu­ma­ni­dade se apre­senta como pos­sível, o im­pe­ra­tivo cru­cial do nosso tempo é rein­ventar um modo de vida onde o tra­balho tenha sen­tido hu­mano e so­cial, au­to­de­ter­mi­nado; que a igual­dade entre gê­neros, raças, et­nias e ge­ra­ções seja subs­tan­tiva e que a na­tu­reza seja pre­ser­vada. E este novo modo de vida é in­com­pa­tível com qual­quer mo­da­li­dade de ca­pi­ta­lismo.

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.