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Sem legislação, plataformas estão “nadando de braçada” no Brasil

21 de abril de 2022

Se, de um lado, o desenvolvimento tecnológico proporcionou qualidade de vida e contribui para o aumento da expectativa de vida de parte da população, de outro, ele ainda “não favorece uma massa de pessoas que estão à margem, que são usadas para serem trituradas dentro da lógica capitalista”, pondera Roseli Figaro, na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

João Vitor Santos e Ricardo Machado entrevistam Roseli Figaro; edição de Patricia Fachin. Instituto Humanistas Unisinos, 4 de abril de 2022

Pesquisadora do projeto Fairwork, ela comenta a seguir os principais resultados do primeiro relatório sobre a atuação das plataformas digitais no Brasil em relação ao trabalho decente, lançado recentemente. Segundo ela, a pontuação das principais plataformas atuantes no país indica que “o que elas estão fazendo é barbárie”. Ela explica: “Duas das plataformas estão menos mal pontuadas porque receberam dois pontos, que são o iFood e a 99. O iFood pontuou nos itens básicos ‘contrato de trabalho’ e ‘representação coletiva’ e a 99 pontuou em ‘salário’ e ‘condições de segurança’. Não pontuaram em mais nenhum item. O Uber teve um ponto no item básico ‘condições de trabalho’. A Rappi, o GetNinjas e o Uber Eats não obtiveram pontos. Foram avaliados como zero em todos os itens. Em nossos levantamentos, não conseguimos identificar provas de que eles cumpram quaisquer desses cinco princípios, mesmo no item básico”.O relatório, acrescenta, evidencia que as plataformas estão “nadando de braçada” no Brasil porque “temos uma tradição de trabalho informal, de relações de trabalho que são ainda pré-capitalistas e que permitem que essas empresas, ao chegarem no país, sejam vistas como benfeitoras, permitindo que elas tomem atitudes absolutamente em desacordo com a legislação”. Roseli Aparecida Figaro Paulino é professora livre-docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP. Possui pós-doutorado pela Universidade de Provence, França. Ela é coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa da USP/Comunicação e Censura e do Grupo de Pesquisa do Arquivo Miroel Silveira. Dedicou seus estudos à comunicação relacionada ao mundo do trabalho. É também autora de outros seis livros, entre eles, citamos: Comunicação e Análise do Discurso (São Paulo: Contexto, 2012). Confira a entrevista. IHU – Como se constitui o projeto Fairwork e qual a importância de sua atuação também diante da realidade brasileira? Roseli Figaro – Esse projeto de pesquisa é uma iniciativa da Universidade de Oxford. A partir dos princípios do trabalho decente, se constituíram grupos de pesquisadores em diferentes universidades em 27 países. O projeto tem uma coordenação global e pesquisas são realizadas em cada um dos países membros. No Brasil, entramos no Fairwork em 2020 e lançamos o primeiro relatório sobre a realidade do país. A Unisinos é a coordenadora da pesquisa e constitui uma rede com a Universidade de São Paulo – USP, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e a Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, com equipes multidisciplinares. No Rio de Janeiro tem uma equipe da área do Direito, em São Paulo e na Unisinos, uma equipe da área de comunicação, na UFRGS, uma equipe de psicologia e, no Paraná, uma equipe da comunicação. Nós trabalhamos, a partir da metodologia do Fairwork, em torno dessa ideia de trabalho decente. O Fairwork traduziu isso em cinco princípios. IHU – Quais são? Roseli Figaro – São aqueles mínimos: remuneração decente – para cada país buscamos saber se se paga, depois de oito horas de trabalho diário, no final do mês, um salário mínimo mensal; condições justas de trabalho, que dizem respeito a equipamentos de proteção individual e ao mínimo de segurança para o trabalhador; contratos decentes, ou seja, que haja contratos claros e explícitos, com termos de contratos de trabalho, o que não acontece hoje; gestão justa, isto é, analisamos como se dão as relações, sobretudo de comunicação, com os trabalhadores, se eles têm a possibilidade de contestar algo, porque em muitos casos a comunicação é informatizada e os trabalhadores não recebem um retorno imediato; e a representação coletiva, ou seja, a possibilidade de reconhecimento de que os trabalhadores têm direitos à representação coletiva. Esses cinco princípios são pontuados em dois níveis: um nível básico, que recebe um ponto, e um nível avançado, que recebe mais um ponto. Cada princípio formula dois pontos, sendo que a nota máxima de todos os princípios é dez. IHU – Em uma perspectiva mais teórica, buscando tocar as questões de fundo, por que as plataformas de trabalho concebem atividades fora de padrões decentes? Regredimos à lógica das fábricas dos séculos XIX e início do XX, apenas agora com o verniz da tecnologia e comunicação? Roseli Figaro – Você aponta bem; se trata de uma questão de fundo. Por que isso está acontecendo no século XXI, em que temos tanta tecnologia, conhecimento e dinheiro circulando? Porque isso faz parte de uma lógica disruptiva da exploração que o capitalismo implementa usando avanços tecnológicos. A tecnologia, ao invés de trazer qualidade de vida para a maioria das pessoas, traz melhoria para 20% da população. Assim, as tecnologias são apropriadas para trazerem mais lucro para as empresas, ou seja, para os mesmos de sempre, penalizando o trabalho porque sem este nada acontece. Nomeamos a relação entre tecnologia e conhecimento de tecnociência. Ela está comprometida com o resultado para o capital e causa profundo dano para os trabalhadores de forma geral. Pensamos que a tecnologia está mudando e modernizando o mundo do trabalho e quem não quer se modernizar está atrasado. Este é o discurso hegemônico: as pessoas não se qualificam. Mas, para usar um aplicativo, não é preciso de qualificação. Se a tecnologia é tão avançada, por que se estabelece um trabalho tão retrógrado? Veja que o conhecimento tecnológico não favorece uma massa de pessoas que estão à margem, que são usadas para serem trituradas dentro da lógica capitalista. Claro que os algoritmos estão avançando e aperfeiçoando outras formas de uso, mas essa forma básica traz muitos dividendos não só em termos de capital, mas em termos de mercadorias, de dados. Então, retroagimos a uma situação vivida nas fábricas do século XX, mas não estamos mais naquelas fábricas pesadas, analógicas, quando ainda não tínhamos uma rede elétrica extensiva, não tínhamos muitos conhecimentos que temos hoje. Regredimos muito porque temos condições de oferecer qualidade de trabalho para toda a população. IHU – Segundo o relatório do projeto Fairwork no Brasil, quais são as maiores infrações cometidas pelas plataformas/empresas que tornam o trabalho não decente? Roseli Figaro – O Brasil é o segundo país mais mal pontuado nos relatórios Fairwork; só estamos acima de Bangladesh. Por que isso acontece no país? Porque temos uma tradição de trabalho informal, de relações de trabalho que são ainda pré-capitalistas e que permitem que essas empresas, ao chegarem no país, sejam vistas como benfeitoras, permitindo que elas tomem atitudes absolutamente em desacordo com a legislação. Logo, elas não atendem aos princípios mínimos do Fairwork e não atendem à legislação da Constituição Federal, que está sendo rasgada todos os dias pelo governo federal. Vivemos um momento muito difícil em termos de reconhecimento dos direitos, das condições de vida e trabalho e de aumento da pobreza. Essas empresas entram nesse cenário e conseguem explorar a força de trabalho, passando por benfeitoras. Em muitas das entrevistas que realizamos, os entrevistados dizem que elas estão “dando o trabalho” aos trabalhadores. Mas não é isso; elas precisam do trabalho porque, sem ele, elas não existem. Ou seja, a empresa não “dá trabalho” para ninguém. Ela cria uma relação de trabalho através de um contrato de trabalho porque ela precisa do trabalho. Do contrário, o seu produto não é desenvolvido. Então, as empresas encontram no Brasil um território muito propício para descumprir a Constituição e os direitos mínimos dos trabalhadores. IHU – O que mais tem surpreendido vocês nas entrevistas com trabalhadores? E nas reuniões com os gestores de plataformas? Roseli Figaro – Fiz entrevistas pessoalmente com alguns trabalhadores no período da pandemia e é muito dolorido e difícil conversar com eles. Eles relatam que trabalham dez, 12 horas por dia e não conseguem se alimentar nem ter dinheiro para comer durante a jornada. Se não recebem uma gorjeta a mais, se alguém não se solidariza ou se o dono de um restaurante não tem um coração que tenha a intenção de ajudar, muitas dessas pessoas não conseguem fazer uma refeição ao longo do dia de trabalho. Quer situação mais triste do que isso? Situação que mais revela precariedade dessas pessoas? IHU – Quais são as piores plataformas no ranking e o que justifica essas posições? E o que contribui para algumas plataformas/empresas estarem em colocações melhores? Roseli Figaro – Duas das plataformas estão menos mal pontuadas porque receberam dois pontos, que são o iFood e a 99. O iFood pontuou nos itens básicos “contrato de trabalho” e “representação coletiva” e a 99 pontuou em “salário” e “condições de segurança”. Não pontuaram em mais nenhum item. O Uber teve um ponto no item básico “condições de trabalho”. A Rappi, o GetNinjas e o Uber Eats não obtiveram pontos. Foram avaliados como zero em todos os itens. Em nossos levantamentos, não conseguimos identificar provas de que eles cumpram quaisquer desses cinco princípios, mesmo no item básico. As plataformas no Brasil estão “nadando de braçada” porque não tem legislação sobre o trabalho. São raras as meritórias decisões que estão dando conta de regulamentar a atividade comercial dessas empresas. Trata-se do que se chamava, no século XVIII, de acumulação do capitalismo selvagem; é uma terra de ninguém. Isso é triste porque a Constituição é muito clara em relação a isso e os três poderes do Estado não estão preocupados, de modo geral, com algumas exceções, com a situação. IHU – Muitas pesquisas também têm apontado o custo para os trabalhadores exercerem suas atividades via plataformas, além dos riscos e desgastes do trabalho por demandas e longas jornadas. A partir da pesquisa desenvolvida por vocês, é possível vislumbrar saídas e busca de soluções para esses problemas? Roseli Figaro – Sim. O próprio Fairwork como pesquisa-ação propõe a regulamentação. Isso seria um primeiro passo civilizatório: regulações muito claras da relação entre capital e trabalho. Ou seja, o empregador reconhece que o trabalhador trabalha e tem direito ao trabalho e ao mínimo necessário para a sua sobrevivência. Esse é um aspecto do Fairwork. Portanto, estamos trabalhando em relação ao mínimo. Outra questão é em relação às alternativas de trabalho. Por que temos que trabalhar para as plataformas globais que não têm nada a ver com o nosso país, que são dependentes de tecnologias estrangeiras, que são dependentes de outra legislação e são de outros países, mas comandam a lógica do trabalho em nosso território? Por que não criarmos plataformas alternativas, públicas, cooperativas, privadas? Seria muito importante para o Brasil ter um parque tecnológico para ampliar a circulação do capital entre os diversos entes empresariais e de conseguir melhores condições de trabalho para a sua população. Esse é o ponto que mais gostaríamos de ver avançar.