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Silvia Federici: Por que o marxismo precisa ser feminista

24 de junho de 2021

Bruna Della Torre trava um diálogo de fôlego com o livro novo de Silvia Federici: "O patriarcado do salário"

Bruna Della Torre, blog da Boitempo, 29 de abril de 2021

“Até o momento, homens e mulheres da classe trabalhadora tiveram sua jornada definida pelo capital – pela batida de ponto na entrada e na saída. Isso definiu o tempo que pertencemos ao capital e o tempo em que pertencemos a nós. Mas nunca pertencemos a nós. Sempre pertencemos ao capital, a cada instante da vida.”Silvia Federici, O patriarcado do salário

As acusações de que a luta feminista divide a classe trabalhadora e de que, assim como as lutas antirracistas, anticoloniais e LGBTQI+, reivindica exclusivamente a ampliação de direitos e de reconhecimento dentro dos parâmetros capitalistas de relações sociais não são novas, mas são persistentes. O incômodo que essas lutas têm gerado não é marginal e a revolta produzida, por exemplo, pela utilização da linguagem inclusiva mostra como o campo da esquerda ainda é heterogêneo. Não é incomum escutar que essas preocupações levarão à reeleição de Bolsonaro e a um aprofundamento do neoliberalismo. Parte dessa leitura vem de diagnósticos sociológicos importantes como os de Nancy Fraser (2018) e de Boltanski e Chiapello (2009),[1] que defendem que esses movimentos teriam deixado a economia política em segundo plano. De fato, não é possível considerar esses movimentos fora da pluralidade social e histórica que eles apresentam, muitas vezes voluntariamente associados ou politicamente incorporados às dinâmicas liberais. Ao mesmo tempo, fez parte da história da luta da classe trabalhadora a integração de muitos sindicatos ao establishment e não há registro de uma análise que demonstre como as pautas sindicais são facilmente incorporadas pelo capital devido ao seu caráter “cultural”. Parte dessas acusações advém de um certo marxismo que empurrou as questões raciais, de gênero e de sexualidade para a esfera da cultura (produzindo um rebaixamento da mesma), dos costumes e da moral ou as reduziu ao termo guarda-chuva de “questões identitárias”. Tudo se passa como se falar em gênero, sexualidade e raça envolvesse necessariamente abandonar as questões de classe, a economia e as análises do imperialismo, trocar as questões objetivas por questões subjetivas, abandonar a luta coletiva pelo tão vilipendiado “lugar de fala”.

Enquanto isso, no Brasil, um governo fascista foi eleito tendo como uma de suas principais bandeiras a luta contra a “ideologia de gênero” e a defesa conservadora e neoliberal da família monogâmica heterossexual.[2] A expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos por aqui, ocupamos o quinto lugar no índice global de países com maior número de feminicídios, temos a terceira população carcerária do mundo, de maioria negra. Só isso já deveria ser suficiente para que essas questões saíssem do nicho da chamada “pauta dos costumes”. Não se trata apenas de considerar as lutas desses grupos sociais como legítimas, mas de compreender como a racialização, a generificação e sexualização são processos constituintes do capitalismo. Certamente existiram antes dele, assim como outras formas sociais, como o mercado, o dinheiro, o Estado, mas ganham nova forma e função subsumidas ao regime de acumulação capitalista. Como mostrou Engels (2008), a classe trabalhadora possui cisões e hierarquias em seu interior produzidas pelo capital e que reforçam sua dominação sobre a classe ao dividi-la constantemente. A obra de Silvia Federici é uma passagem importante para a compreensão de como o marxismo, ao incorporar uma perspectiva feminista pode avançar na sua interpretação do capitalismo.

1970, a década que não terminou

Para além das questões levantadas acima, uma explicação possível para as divisões atuais no campo da esquerda é de origem histórica, pois há uma larga produção político-acadêmica que rebate as críticas correntes ao feminismo, mas que não circula de forma ampla. Na década de 1970, a divisão entre o feminismo radical, pós-estruturalista (entre outras vertentes) e o feminismo marxista (JAMESON, 1992; ARRUZZA, 2019), bem como o aprofundamento da versão neoliberal do capitalismo, solaparam parte da força que o movimento havia ganhado na década de 1960. É um mistério que um debate que ocorreu na década de 1970 esteja ganhando terreno teórico e político de maneira expressiva apenas em meados do século XXI. Numa entrevista sobre o tema, Tithi Bhattacharya conta que, nos últimos anos, a conferência Historical Materialism cumpriu um papel de destaque nessa recuperação, mas também condensou o choque desse intervalo que de repente nos liga à década de 1970:

“Lembro que estava numa mesa redonda na qual apresentamos a nova edição do livro de Lise Vogel com Susan Ferguson e outras pessoas e Lise me disse antes da conferência que ela não queria comparecer ao debate porque achava que seria constrangedor, porque ninguém apareceria e ninguém estaria interessado em seu trabalho. Eu tive que literalmente coagi-la a ir: “Você não pode desistir agora!”. Então fiquei muito nervosa, porque pensei: “E se ninguém aparecer?”. No final, nós a convencemos a ir. Cento e cinquenta pessoas apareceram e tinha gente sentada até no chão. Todo mundo já tinha lido o livro de Lise e era simplesmente surpreendente. Lise estava surpresa: ‘Quem são essas pessoas, de onde elas vieram? Onde elas estiveram toda a minha vida?'”“Por um novo casamento entre feminismo e marxismo – Entrevista com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya”, Crítica Marxista n. 51, 2020

Segundo Bhattacharya, o livro de Vogel, Marxism and Women Oppression: Toward a Unitary Theory, referência fundamental do marxismo feminista, havia saído tarde demais, na década de 1980, quando o movimento já estava enfraquecido. Muitos escritos de Federici, como Il Grande Calibano (1984), escrito com Leopoldina Fortunati, também foram publicados nessa época. A discussão a respeito da reprodução social não encontrou eco representativo no marxismo. Com a publicação do manifesto Feminismo para os 99%, escrito por Arruzza, Bhattacharya e Fraser e com a greve de mulheres que ocorreu nos Estados Unidos a partir de 2017, essa tradição passou a ser retomada e ganhou terreno na teoria social contemporânea. Para desenvolver essa discussão, vale fazer uma retomada histórica.

Um dos marcos de surgimento do marxismo feminista, especialmente aquele ligado à teoria da reprodução social, foi a Campanha Internacional por Salários Domésticos. Selma James escreveu um panfleto chamado Women, the Unions and Work or What Is Not to Be Done, apresentado na 3rd National Women’s Liberation Conference, e, junto de outra autora importante desse debate, a italiana Mariarosa Dalla Costa, escreveu o livro The Power of Women and the Subversion of the Community, que de certa forma lançou o debate sobre o trabalho doméstico. Esse movimento internacional envolveu países como os EUA, Canadá, Inglaterra, Itália e outros. Em Pádua, na Itália, Dalla Costa e Federici, junto com a já mencionada Leopoldina Fortunati, faziam parte de uma organização operaísta chamada Lotta Feminista, que adotou a campanha por salários domésticos como uma estratégia de luta política. A campanha contribuiu muito para a construção da greve das mulheres. Dalla Costa (1974), por exemplo, teve um papel fundamental na contestação da prática tradicional da greve, denunciando como a greve nunca teria sido de fato “geral”, pois ao se restringir à classe trabalhadora assalariada, deixava de fora todas as mulheres responsáveis pelo trabalho reprodutivo, que não cessa nem aos domingos e feriados. Em 1975, Federici foi para os Estados Unidos e fundou no Brooklyn um grupo chamado “Wages for Housework Committee” (FEDERICI; AUSTIN, 2017). Foi também nesse ano que escreveu o famoso panfleto “Salários contra o trabalho doméstico”.[3]

O caráter internacionalista do movimento assumia a vocação da luta socialista desde Marx e Engels, mas parte importante da sua produção político-intelectual se deu a partir da escrita de panfletos. Esse debate se deu por meio de uma forma muito cara ao marxismo: a forma do manifesto, dos panfletos, etc. (PUCHNER, 2005). Ainda que essa forma possa ser encontrada nos primórdios do marxismo e do movimento socialista, ela pode ter contribuído para que o conjunto da produção dessas autoras se dissipasse e não recebesse uma sistematização acadêmica que talvez pudesse ter lhe conferido uma longevidade maior.

Mas, afinal, do que se tratava esse movimento? Após o furor dos protestos da década de 1970, algumas feministas marxistas passaram a investigar mais a fundo, assentadas na obra de Marx, as raízes da opressão das mulheres. Parte do movimento feminista daquele período defendia que as mulheres tinham menos poder social que os homens no capitalismo porque não estavam inseridas nas relações capitalistas de produção. Essas autoras, cada uma à sua maneira, buscaram problematizar essa interpretação. O movimento consistiu num esforço coletivo de repensar o capitalismo e a obra de Marx a partir da questão de gênero, e, como todo esforço coletivo no âmbito do marxismo, chegou a diferenças internas importantes – que não serão tratadas aqui. Mas vale citar abaixo as contribuições de Federici para esse debate.

Reprodução social, patriarcado do salário e a crítica a Marx

Marx era um crítico das relações patriarcais, mas sua relação com o feminismo é complexa. Dizer que ele era apenas “um homem de seu tempo” não dá conta do problema. O movimento cartista discutia contracepção e outras questões ligadas ao feminismo, assim como algumas vertentes do socialismo utópico, conforme demonstra a obra de Flora Tristan. Na década de 1870, segundo Federici, Marx fez campanha para banir a “Seção 12”, uma ala feminista da AIT. A autora sugere que esse rompimento teve consequências políticas tão importantes para o movimento como a briga de Marx com Bakunin, já que desde então as pautas feministas aparecem como opostas às do trabalho e do salário. Mas não se trata apenas de um debate biográfico.

No cerne da teoria da reprodução social de Federici, está a crítica de que Marx não teria reconhecido que o trabalho doméstico era tão importante para a reprodução do capitalismo como o trabalho assalariado.

Segundo Federici, a obra de Marx comporta duas noções de trabalho.[4] A primeira diz respeito ao trabalho como atividade livre e criativa. A segunda remete ao trabalho assalariado e alienado. De acordo com sua interpretação, Marx enxergava, de forma contraditória, o trabalho industrial muito positivamente, devido às possibilidades de cooperação e de redução do tempo de trabalho necessário para reprodução da vida que nos liberaria para realizar outras atividades ligadas ao trabalho livre. A hipótese de Federici é que por não ser livre, criativo e por estar vinculado à sobrevivência, mas também por não ser produtivo, o trabalho doméstico foi negligenciado como se fosse uma forma arcaica de trabalho a ser superada. Essa perspectiva esteve na base de um socialismo favorável à automação e do debate a respeito do trabalho cognitivo, defendido por Mario Tronti, Antonio Negri e André Gorz, autores criticados por Federici por deixarem de lado o problema de que a reprodução em grande medida não é automatizável.

Para demonstrar a centralidade do trabalho reprodutivo no capitalismo, Federici retoma o conceito marxiano de “reprodução simples” processo no qual se renovam as relações de exploração capitalista. Ao mostrar como a reprodução simples faz parte do processo de acumulação capitalista – e é pressuposto da reprodução ampliada – Marx teria fornecido a chave para a compreensão do trabalho doméstico e das mulheres no ciclo de produção capitalista. Se o que interessa, do ponto de vista marxiano, não é o que se produz numa determinada época econômica, mas o “como”, o trabalho reprodutivo sob o capitalismo não é um trabalho útil qualquer, necessário à sobrevivência em qualquer época, mas um trabalho que leva o capital em seu DNA. A forma pela qual esse trabalho se dá, segundo Federici, é a família, “fábrica da classe trabalhadora”, criada pelo e para o capital, bem como por ele é imposto o tempo e o ritmo de realização desse trabalho.

Às mulheres cabe a reprodução dos portadores da mercadoria mais valiosa no capitalismo: a força de trabalho da classe trabalhadora. Desde a gestação, criação, alimentação, vestimenta até o trabalho emocional, sexual, doméstico e de cuidado com os idosos, são as mulheres as responsáveis por produzir e reproduzir a substância da qual o capital se alimenta. Isso significa que a família não é uma instância capitalista apenas no sentido “moral” do termo – embora ela tenha historicamente servido a fins morais. Esse tipo de análise coloca uma pá de cal na sociologia tradicional que até os dias atuais trabalha com os conceitos de “esfera pública” e “esfera privada”, pressupondo que a última pode consistir num refúgio das relações capitalistas ou estaria fora do mercado.

Federici argumenta que há, em O capital, uma identificação entre trabalho e trabalho assalariado, cuja consequência é a de que o trabalho não assalariado não é considerado trabalho. Em sua análise sobre a mais-valia, Marx demonstra, em linhas bem gerais, que o trabalhador recebe e não recebe o equivalente ao que produz. A exploração do trabalho é um processo contraditório, dialético e complexo. Marx fez um esforço enorme para apreender o capitalismo de forma científica e objetiva – sem recorrer à ideia de que o capitalismo é um sistema assentado no puro roubo. Isso está na base da sua concepção de mais-valia. Mas há elementos em sua obra – como a discussão sobre a acumulação originária – que buscam dar conta do elemento de despossessão e de expropriação permanentes do capitalismo. E quando pensamos nas mulheres, mostra Federici, a quantidade de trabalho não pago que o capitalismo extrai torna o cálculo de exploração da mais-valia um cálculo parcial. A ideia de que a acumulação primitiva e a expropriação são elementos tão centrais no capitalismo quanto a exploração é uma mudança radical em relação ao Marx e ao marxismo clássico. Se de um lado, com o trabalho assalariado, há uma troca de equivalentes que beneficia o capitalista, de outro, há um trabalho não pago e invisibilizado do qual o capital também se beneficia e que é condição de sua existência.

Além disso, Federici argumenta que a dominação das mulheres se deu historicamente também por meio da relação de assalariamento, mediada pela relação conjugal. A formação da família no capitalismo – especialmente no Norte global – fez com que o salário masculino, o salário pago aos homens, incluísse na sua conta também o trabalho de reprodução das mulheres. Ou seja, foi um salário concebido para sustentar toda a família, implicando o trabalho doméstico realizado pelas mulheres. Historicamente, isso foi produzido por uma série de reformas, como aquelas que limitavam a jornada de trabalho de mulheres e crianças e pela defesa do “salário familiar”. Esse modelo garantiu, durante muito tempo, que a mulher fosse sujeitada a realizar esse trabalho.

Por que patriarcado do salário – um termo normalmente associado ao feminismo radical? Porque a organização social do trabalho se dá a partir desse eixo patriarcal. As mulheres fazem parte da classe trabalhadora, sem serem formalmente empregadas. Ou, as que exercem atividade remunerada, acabam possuindo uma dupla jornada. A família é a instância que ao mesmo tempo se apropria do trabalho das mulheres e o oculta. O patriarcado do salário, de acordo com Federici, (junto com o arranjo matrimonial) conferiu historicamente aos homens o acesso ilimitado ao corpo das mulheres, transformou o sexo num trabalho, conferiu também a eles o poder de supervisionar seu trabalho, de puni-las com violência econômica, física ou psicológica, etc. [5]

Essa teoria teve implicações políticas fundamentais, ainda que seja possível defender outras leituras de Marx. Em primeiro lugar, ela deu visibilidade a esse trabalho invisível no capitalismo e destacou a importância do reconhecimento do lugar das mulheres no ciclo de produção – o que não se reduz ao debate a respeito do trabalho de reprodução ser ou não produtivo. A teoria da reprodução social abriu o flanco para a ampliação da compreensão do capitalismo e da própria luta da classe trabalhadora. Ela desafiou a tese de que basta as mulheres entrarem no mercado de trabalho para que a dominação masculina seja combatida. Ou que basta integrar as populações não assalariadas para que elas deixem de ser populações dominadas. A teoria da reprodução social permite demonstrar que o capitalismo não pode resolver as questões de gênero e de raça e sobreviver “só” com a exploração do trabalho, pois a reprodução é parte inerente desse sistema. Federici reconhece a tese de Marx de que o capital se configura como forma dominante e se expande por meio do salário, mas mostra também que a dominação das trabalhadoras não assalariadas se estabeleceu por meio do salário e essa exploração foi ainda mais eficaz porque a falta de salário das mulheres pela realização do trabalho de reprodução a escondeu sob a forma do amor ou da assistência pessoal.

Ademais, a visada dialética de Federici permite compreender não só como a reprodução social é momento fundamental da dinâmica de exploração capitalista, mas elucida também – a partir do entrelaçamento entre as esferas da produção e da reprodução que, no limite, desfaz suas fronteiras – como o preço do trabalho de reprodução no mercado de trabalho é rebaixado pela desvalorização e invisibilização do trabalho de reprodução não pago.

O marxismo feminista como teoria crítica

A publicação tardia das obras de autoras como Vogel, Ferguson e Federici, bem como a circulação do debate a respeito da reprodução social por meio de panfletos e manifestos explica apenas em parte porque os anos 1970 demoraram tanto para alcançar o presente. Há uma razão conjuntural que explica a presente retomada dessa tradição. A radicalização do capitalismo em sua forma neoliberal – marcada pela flexibilização produtiva, por múltiplos processos de precarização do trabalho, pela retirada de direitos básicos, pelo aumento da violência estatal, policial e do encarceramento que acompanhou o aumento do desemprego e busca conter os efeitos sociais da crise econômica e política que estamos atravessando – deixa cada vez mais explícito como as mulheres, as populações racializadas, LGBTQI+ e os países periféricos são os setores mais fragilizados da classe trabalhadora atualmente (GAGO; CAVALERO, 2020). O surgimento de movimentos de contestação como aqueles vistos recentemente no Chile, na Argentina, nos Estados Unidos e na Polônia, por exemplo, também comprova – pela prova dos nove – que esses setores se encontram sob ataque direto do capital. E, para compreender esse contexto, é necessário retomar as análises que buscaram compreender a relação entre capitalismo, gênero, raça, sexualidade e colonização.

No entanto, há também uma razão política que explica esse intervalo entre a década de 1970 e a nossa. Ao longo da história do marxismo, a obra de Marx foi revirada de cabeça para baixo, colocada sob escrutínio, expandida e criticada por inúmeras vias e tradições. Lênin desenvolveu uma teoria do imperialismo a partir de Marx, assim como Rosa Luxemburgo, a despeito de suas discordâncias; Lukács ampliou o conceito marxiano de “fetichismo da mercadoria” desenvolvendo uma teoria da reificação; Althusser desdobrou a questão da ideologia; Poulantzas ampliou uma teoria do Estado; Adorno demonstrou que a forma do trabalho se estende para o tempo livre e a lógica do capital configura a cultura sob o capitalismo. Mais recentemente, autores da Neue Marx Lektüre, como Backhaus, Reichelt, Heinrich, entre outros, buscam repensar a teoria do valor de Marx. A obra de Marx também foi repensada à ocasião das revoluções ocorridas na periferia do capitalismo à luz de uma série de desafios impostos pela geopolítica, como é o caso da teoria de Trótski e de Mao Tsé Tung, por exemplo. No Brasil, a teoria marxista da dependência, entre outras vertentes, também buscou reler Marx à luz da relação de exploração não só entre as classes, mas entre as nações. Cada uma dessas reflexões a respeito da obra de Marx se debruçou criticamente sobre sua obra, abriu novos caminhos para pensarmos o capitalismo e ampliou os horizontes da luta contra o capital, além de terem se tornado linhagens importantes do marxismo até hoje. E ainda que existam muitas disputas entre essas diversas linhas, o próprio debate teórico e político entre elas testemunha seu reconhecimento mútuo.

Mas na historiografia marxista, o marxismo feminista, assim como as teorias marxistas negras e LGBTQI+ continuam a ser notas de rodapé, quando sequer o são. Se esse fosse apenas um problema historiográfico, poderíamos resolvê-lo escrevendo uma nova história do marxismo. Entretanto, a questão é muito mais ampla e diz respeito à teoria e à política. Como busquei mostrar brevemente aqui, a teoria de Federici amplia, a partir de Marx e de uma crítica à sua obra, o horizonte de compreensão do funcionamento do capitalismo, ganhando importante terreno para a crítica.

Federici empurra a compreensão do capitalismo para além de suas determinações imediatas. Ao pensar a reprodução social como algo subjacente à produção capitalista a partir da questão de gênero, demonstra que não é só a maneira como trabalhamos que é ditada pelo capital, mas a maneira como nos organizamos como família, a maneira como cuidamos, a maneira como nos divertimos, a maneira como amamos, a maneira como fazemos política. Assim, ganha terreno para pensarmos a linguagem, a psique, a sexualidade, a estética e a indústria cultural igualmente como “laboratórios secretos” da produção e, portanto, ligados à dinâmica capitalista (GAGO, 2020, p. 146; BROWN, 2019). Com isso, o marxismo feminista se alia à teoria crítica ao alargar não só as categorias e interpretações marxianas e marxistas, como a própria luta de classes e as esferas nas quais ela ocorre. Também a compreensão do sofrimento social se torna mais abrangente com essa análise: se a exploração é generificada, sexualizada e racializada, o sofrimento social por ela produzida também o é.

Por que lutar contra a alienação do trabalhador do produto de seu trabalho é mais importante do que lutar contra a alienação das mulheres e das pessoas trans de seu próprio corpo, uma vez que ambos são produtos da dinâmica social capitalista? Por que os conceitos de “opressão”, “espoliação”, “despossessão” são preteridos em relação ao de “exploração”? Por que uma parte da esquerda insiste em emular divisões criadas pelo capital e que servem a esse ao invés de incorporar agendas de luta que há muito tempo reivindicam sua importância para a própria construção do socialismo?

Essas são as perguntas que o marxismo feminista fez na década de 1970. A construção da luta contra o fascismo no século XXI depende da maneira como vamos respondê-las.

[O patriarcado do salário, da filósofa italiana Silvia Federici, traz ao leitor uma série de artigos que abordam a relação entre marxismo e feminismo do ponto de vista da reprodução social. Retomando diversas discussões presentes nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels, a autora aponta como a exploração de trabalhos como o doméstico e o de cuidados, exercido pelas mulheres sem remuneração, teve e tem papel central na consolidação e na sustentação do sistema capitalista.

Revisitando a crítica feminista ao marxismo e trazendo para o debate perspectivas contemporâneas sobre gênero, ecologia, política dos comuns, tecnologia e inovação, Federici reafirma a importância da linguagem, dos conceitos e do caráter emancipador do marxismo. Ao mesmo tempo, esclarece por que é preciso ir além de Marx e repensar práticas, perspectivas e ativismo a fim de superar a lógica social baseada na propriedade privada e desenvolver novas práticas de cooperação social.]

Notas

[1] Fraser é uma das maiores críticas da cooptação e apropriação das pautas desses movimentos pelo capitalismo. No entanto, seu argumento de que parte deles abandonou a “economia política” em nome de questões culturais e subjetivas, praticamente o mesmo de Boltanski e Chiapello, ainda corrobora leituras dualistas sobre o tema. Segundo Fraser, a ascensão da extrema-direita tem a ver com a reunião de um sistema neoliberal extremamente regressivo do ponto de vista econômico e com a absorção de “pautas identitárias” no âmbito da superfície. Essa combinação teria gerado um ressentimento especialmente poderoso na classe trabalhadora, branca, heterossexual, masculina ocupada no setor industrial em desmonte. No entanto, conforme ressalta Jaeggi (FRASER; JAEGGI, 2020), esse ressentimento não pode ser unicamente explicado por razões materiais imediatas, mas é herdeiro de uma estrutura hierárquica generificada e racializada do próprio capitalismo contra a qual grande parte desses movimentos se coloca. Ademais, seria necessário acrescentar que seu diagnóstico insere-se num contexto muito específico: o norte-americano. Nos Estados Unidos, a crítica negra e feminista, por exemplo, esteve presente no marxismo desde o início do século XIX, o que difere bastante de outros lugares, como o Brasil. Nos Estados Unidos, no qual há uma classe média negra muito maior do que a brasileira e no qual a luta feminista e LGBTQI+ sempre foi mais forte do que aqui, os chamados temas “identitários” têm sido utilizados, de acordo com Fraser, para contornar as questões de classe. Esse não é o caso do marxismo feminista e muito menos do Brasil, país no qual a esquerda não absorveu ainda completamente as pautas antirracistas, feministas e queer.

[2] Conforme demonstra Melinda Cooper (2017), há na extrema direita contemporânea uma convergência/aliança entre conservadorismo e neoliberalismo no âmbito da família. A defesa “moral” e “religiosa” da família por parte dos setores conservadores é reforçada pela política neoliberal de responsabilização econômica individual e familiar. Como disse certa vez Margaret Thatcher sobre a sociedade, “não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias (…)”. Bolsonaro, durante a pandemia de COVID-19 que já matou quase 400 mil pessoas no Brasil, disse que as famílias é que eram responsáveis por cuidar de seus idosos. Nesse sentido, moral e economia são inseparáveis para pensar o fenômeno da extrema-direita atual. Cf. Fernandes, Augusto. “Famílias que cuidem de seus idosos”, diz Bolsonaro sobre abrir comércios.

[3] A campanha internacional por salários domésticos foi criticada por uma série de autoras, dentre elas, Angela Davis (2016). A teoria da reprodução social, em geral, levanta um problema que diz respeito ao modo como o movimento feminista se relaciona com o trabalho doméstico, de cuidado, etc. Algumas autoras como Cooper (2017) e Nancy Fraser (2020) chamam a atenção para o risco de supervalorizar as atividades de reprodução e de produzir uma essencialização que conecte ainda mais as mulheres a esse tipo de trabalho. E há uma tradição importante do feminismo que contempla autoras muito diferentes entre si, como Simone de Beauvoir, Betty Friedman e Manon Garcia que refletiram e refletem sobre as consequências sociais e também subjetivas que advém do fato de as mulheres ficarem restritas a essa esfera de trabalho, à esfera doméstica, etc. No entanto, vale ressaltar que o panfleto de Federici de 1975 se chama “Salários contra o trabalho doméstico” [grifos meus]. Ela escolhe a preposição “contra” e não “por”, o que faz toda a diferença. No panfleto, ela escreve: “quando lutamos por um salário, não lutamos para entrar na lógica das relações capitalistas, porque nunca estivemos fora delas. Nós lutamos para destruir o papel que o capitalismo outorgou às mulheres” (FEDERICI, 2019, p. 47). E mais: “queremos chamar de trabalho aquilo que é trabalho” (FEDERICI, 2019, p. 49). Ou seja, a luta por salários para o trabalho doméstico é uma luta contra o trabalho doméstico.

[4] Aqui há um aspecto que poderia ter sido mais explorado na obra de Federici. Ao defender que Marx possui uma noção estreita de trabalho, Federici recorre aos Manuscritos econômico-filosóficos, ao Manifesto Comunista e em parte ao Capital, mas sem considerar a variação do conceito nessas e em outras obras.

[5] Atualmente, o “patriarcado do salário” se transformou, já que o próprio salário deixou de ser garantia de reprodução com a precarização do trabalho e com os ganhos incessantes do capital sobre a classe trabalhadora. Para uma análise de sua permanência pela via neoliberal e de sua importância para compreender a ascensão da extrema-direita na América Latina, ver Gago, 2020.

Referências Bibliográficas

ARRUZZA, Cinzia. Ligações Perigosas: casamentos e divórcios entre marxismo e feminismo. São Paulo: Usina Editorial, 2019.

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

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MARCELINO, Giovanna Henrique; DELLA TORRE, Bruna. Por um novo casamento entre feminismo e marxismo – Entrevista com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya. Crítica Marxista, n. 51, 2020.

PUCHNER, Martin. Poetry of the Revolution: Marx, Manifestos, and the Avant-Gardes. New York: Princeton University Press, 2005.

Bruna Della Torre é professora substituta no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra fundadora da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia (bolsista Capes) e mestrado em Ciência Social (bolsista Fapesp), todos na Universidade de São Paulo.

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