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Silvia Ribeiro: Genes humanos - roubos, negócios e outros

28 de janeiro de 2022

A extração, comércio e uso de dados digitais pessoais – incluindo biológicos e genéticos – vão muito além do uso individual, para gerar, além dos abusos comerciais, novas formas de controle e vigilância, cruzando a informação com uma infinidade de outros dados individuais e coletivos digitalizados.

Silvia Ribeiro, desInformémonos, 19 de janeiro de 2022. A tradução é do Cepat.

Há alguns anos, em alguns casos mais de uma década, o negócio da apropriação e venda de dados genéticos humanos se expandiu. É uma “indústria” com muitas arestas e impactos, sobre a qual geralmente há pouca informação.

É cada vez mais comum que os governos e empresas privadas estabeleçam bancos de dados com nossa informação genética, com ou sem o nosso consentimento, na maioria dos casos sem o pleno conhecimento de como podem ser usados. Na era dos hackeamentos digitais, essas bases não são uma exceção.

O saque da identificação forense

Em dezembro de 2021, um cuidadoso trabalho de investigação jornalística de Paula Mónaco Felipe e Wendy Selene Pérez (Traficantes de DNA) evidenciou que as bases de dados genéticos da Promotoria Geral da República (México) foram utilizadas como fonte de negócios pela empresa privada Central ADN, enganando também parentes em busca de pessoas desaparecidas.

A reportagem apontou que da instituição foram permitidos acessos e cópias irregulares e ilegais das bases de dados genéticos da Promotoria Geral da República e que computadores da empresa privada, durante meses, estiveram conectados a essas bases, sem o conhecimento e o consentimento das pessoas cujos dados estão lá.

A empresa Central ADN também conseguiu novas amostras de familiares das pessoas desaparecidas, prometendo-lhes que assim poderiam estabelecer as verossimilhanças com os dados da Promotoria Geral da República. Como resume Paula Mónaco, em um país com 95.000 pessoas desaparecidas e 52.000 cadáveres não identificados, a identificação forense - para a qual em repetidos casos as autoridades contratam empresas privadas - é um negócio milionário.

Biopirataria humana e indústria farmacêutica

Esse terrível caso pela falta de escrúpulos e a crueldade com as famílias das pessoas desaparecidas não é, no entanto, a única forma de apropriação e uso de informação genética no México. Desde os estudos da “herança genética” até a coleta de amostras em laboratórios privados ou de instituições públicas de saúde, a informação genética da população mexicana é valiosa para muitas indústrias, começando pela grande farmacêutica, a indústria que, junto com a digital, mais lucrou em período de pandemia.

A chamada medicina genética ou genômica se baseia na análise dos genomas e na tentativa de definir como diferentes doenças podem ser influenciadas pelos genes. Embora todos os seres humanos tenham o mesmo genoma como espécie, cada pessoa tem uma composição genômica única (parcialmente coincidente com os seus parentes biológicos) e também pequenas variações que podem indicar tendências a ser mais propensos ou a resistir melhor algumas doenças.

Isso motivou, a partir dos anos 1990, a procura por variações genéticas em nível global, muitas vezes dirigida por universidades dos Estados Unidos com o financiamento do governo e/ou empresas farmacêuticas, sobretudo em populações indígenas. No Grupo ETC, denunciamos esse tipo de projeto que percorria o planeta coletando amostras de sangue e outros tecidos, assim como do comércio de tecidos humanos derivados desses projetos.

O “sedutor” das variações genéticas presentes em comunidades indígenas é que podem se diferenciar de variações em populações que se misturam mais com outras (por exemplo, em grandes cidades) e, portanto, permitem se concentrar na busca de traços particulares de interesse para as indústrias farmacêuticas e relacionadas.

Historicamente, isso levou ao patenteamento da informação genética. Inicialmente, diretamente de linhagens celulares completas, como denunciamos em 1994 o patenteamento em nome do governo dos Estados Unidos da informação genética de uma mulher da população Ngöbe (guaimí), por sua resistência à leucemia. Embora junto ao povo Ngöbe se conseguiu cancelar essa patente, o mecanismo continuou se repetindo, mesmo com mudanças no que e como se patenteia para buscar evitar questionamentos legais.

A “vantagem” da diversidade genética dos povos indígenas do México para as empresas farmacêuticas foi justamente um dos argumentos cruciais usados por Gerardo Jiménez Sánchez para a criação do INMEGEN [Instituto Nacional de Medicina Genômica], do qual foi seu primeiro diretor e permaneceu até 2009.

O principal projeto desse instituto foi o “Mapa do genoma das populações mexicanas”, que não representa nenhum benefício para as comunidades e povos indígenas estudados. Mas, sim, coloca em acesso público a informação de variações genômicas obtidas da amostragem de populações em Sonora, Zacatecas, Guanajuato, Veracruz, Guerrero, Yucatán e “zapotecas de Oaxaca”, onde especificam o povo indígena, pois em outros estados, embora tenham coletado majoritariamente amostras de povos indígenas, também incluíram a população que consideraram mestiça.

Esse projeto se concentrou especialmente em populações indígenas, mas a transferência de dados genéticos da população mexicana para empresas e instituições públicas e privadas dos Estados Unidos e outros países ocorre todo o tempo, seja por meio de projetos de “pesquisa”, seja porque a maioria dos laboratórios (públicos e privados) forçam a assinar um termo de consentimento – complicado, longo, difícil de entender – quando temos que realizar alguma análise de tecidos biológicos, segundo a qual podem ter nossas amostras biológicas para pesquisa, que pode ser no país ou internacional. A maioria das pessoas assina esse “consentimento” sem o ler, nem entender suas implicações, assim como geralmente ocorre quando aceitamos as condições dos programas digitais, de comunicação, etc.

Hackeamento de biodados

O valor dos bancos de dados genômicos, de forma parecida com o que acontece com outras bases de dados de nossa informação digital, baseia-se muito na quantidade e diversidade de dados que podem acumular e na capacidade de programas – geralmente de inteligência artificial – em lidar com esses enormes volumes de dados.

Isso é sustentado por projetos como os descritos antes, assim como pela coleta de amostras por diversas razões de instituições públicas, policiais, médicas e muitas privadas. No México, um importante motivo pelo qual as pessoas dão voluntariamente sua informação genética é a busca por familiares desaparecidos.

Nos Estados Unidos e em outros países, diversas empresas privadas se oferecem para pesquisar árvores genealógicas, rastrear antepassados distantes, fazer testes de paternidade, etc. Em vários países, a coleta de amostras genéticas e sua conservação nas mãos de instituições ocorrem desde o nascimento e/ou pode ser uma política pública gerida e/ou imposta pelo Estado, como acontece, por exemplo, na China, Suécia e Islândia.

Assim como acontece com todos os bancos de dados digitais, os bancos de biodados – sejam provenientes de projetos de pesquisa, médicos, policiais, comerciais – também podem e têm sido hackeados em grande escala.

Existem muitos exemplos recentes de invasões ilegais e roubo de informações em bancos de biodados de empresas privadas ou públicas, que disponibilizaram milhões – até dezenas de milhões – de dados pessoais. Em 2020, o FBI adentrou, aproveitando-se de uma brecha que alegam não ter sido de sua responsabilidade, nos dados de um milhão de pessoas, nos bancos genéticas da empresa GEDmatch, para realizar buscas não autorizadas. Várias outras empresas que guardam biodados entregues e pagos por consumidores foram hackeadas com roubo de informações.

As finalidades de tais invasões podem ser comerciais, para golpes, fraude de identidade, chantagens, etc. O que mais preocupa os governos da China e dos Estados Unidos é o seu possível uso para desenvolver potenciais armas biológicas adaptadas a grupos populacionais. Razão pela qual, certamente, eles próprios estejam buscando desenvolvê-las, mas, claro, não há dados públicos a esse respeito.

A coleta de amostras individuais de integrantes de um povo indígena fornece dados sobre todo esse povo. A extração, comércio e uso de dados digitais pessoais – incluindo biológicos e genéticos – vão muito além do uso individual, para gerar, além dos abusos comerciais, novas formas de controle e vigilância, cruzando a informação com uma infinidade de outros dados individuais e coletivos digitalizados.

Tudo isso coloca sobre a mesa, novamente e por outros ângulos, o impacto da digitalização em muitas áreas de nossas vidas, que é muito mais do que a soma de impactos e efeitos individuais. Precisamos enfrentar essa realidade a partir da informação, do debate e das ações coletivas.

Silvia Ribeiro é jornalista e ativista uruguaia, diretora para a América Latina do Grupo ETC.