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Silvia Ribeiro: Guerra e alimentação

30 de março de 2022

A principal causa da crise alimentar global em formação não é a guerra na Ucrânia – terrível em si mesma pelas mortes e pela devastação que acarreta –, mas sua convergência com o sistema agroindustrial alimentar e os interesses das transnacionais que o controlam, causando caos climático, obesidade, pandemias e doenças das pessoas e do planeta.

Silvia Ribeiro, La Jornada, 26 de março de 2022. A tradução é do Cepat. 

Os preços dos alimentos estão subindo rapidamente, aparentemente em consequência da guerra na Rússia e na Ucrânia. Isso representa um grave impacto para muitas populações, o que expõe a vulnerabilidade global em que nos coloca o sistema agroalimentar industrial dominado por corporações transnacionais. Segundo fontes das Nações Unidas, estamos à beira de uma nova crise global devido aos altos preços dos alimentos e à fome, como efeito dominó do aumento dos preços dos combustíveis, das restrições à exportação de fertilizantes químicos, dos quais a Rússia é o principal produtor, bem como de trigo, milho e óleo de girassol da Rússia e da Ucrânia. Os dois países representam 28% das exportações mundiais de trigo. Paradoxalmente, o principal importador de trigo do mundo é o Egito, que faz parte do centro de origem do cultivo, assim como a Turquia, outro dos maiores importadores. O Egito importa mais de 60% do trigo que consome, 80% da Rússia e da Ucrânia, importações agora suspensas pela guerra. O México, centro de origem do milho, é o seu principal importador mundial, fundamentalmente devido à demanda das grandes indústrias pecuárias, em sua grande maioria transnacionais. Não se trata de falta de condições para a produção dessas duas culturas para suprir o consumo humano, mas de estratégias corporativas cujo objetivo é o lucro, não a segurança alimentar, no marco de políticas nacionais e internacionais que facilitem e permitam tais atrocidades. Embora os percentuais de importação em alguns países sejam altos – como os mencionados e outros no Oriente Médio e África (norte, países subsaarianos e Chifre da África) e alguns asiáticos, tornando esses países muito vulneráveis –, na realidade as exportações representam uma porcentagem menor da produção global de trigo e milho. Entre 75% e 90% do trigo, milho e arroz, os principais cereais da base alimentar do mundo, são produzidos nos próprios países consumidores. No volume da produção mundial, o que a Ucrânia exporta de trigo é cerca de 3% e menos no caso do milho. No caso das exportações russas, trata-se de 4,5% para o trigo e 0,5% para o milho. No entanto, e apesar de não ser escasso, porque as colheitas da época passada ainda estão sendo comercializadas, no último mês o preço do trigo aumentou 35% devido à especulação por supostas incertezas. Portanto, o volume das exportações não explica por si só o aumento vertiginoso do preço dos alimentos. Mas a convergência de fatores, fundamentalmente a especulação – escudada pelas guerras – das transnacionais do agronegócio, desde os insumos do campo (sementes, agrotóxicos e fertilizantes), até os fatores de distribuição, comércio de grãos, beneficiamento e vendas ao consumidor. Essas empresas aproveitam a situação para aumentar arbitrariamente os preços e avançar com medidas que agregam impactos negativos. Por um lado, eles pressionam para destinar mais terras para grandes extensões de culturas industriais, em detrimento dos ecossistemas naturais, áreas de pastagem camponesa e outros usos não industriais, bem como o uso intensivo de terras em pousio (descanso para regeneração após a colheita). Os Estados Unidos relaxaram as restrições federais a esse respeito e os países europeus estão considerando fazer isso. Para essas terras, as transnacionais do agronegócio alegam que devem ser utilizadas culturas transgênicas, com alto uso de insumos agrotóxicos e, dada a eventual falta de fertilizantes químicos, preveem o uso de micróbios geneticamente modificados. O lobby das empresas forrageiras para a pecuária industrial possibilitou que Espanha e Portugal abrissem, a partir de 24 de março, a importação de transgênicos da Argentina, algo que até então era proibido na Europa. Nesses dois países, assim como no México, as importações de milho e soja não são para a população, mas principalmente para forragem industrial destinada à pecuária em grande escala, que poderia ser feita de forma descentralizada e baseada em outras rações. Agora, com a desculpa de futuros desabastecimentos devido à guerra na Ucrânia, aumenta a pressão para que a Europa também permita a importação de trigo transgênico da Argentina. Todas as medidas propostas pela indústria e consideradas pela União Europeia e pela Europa implicam um sério retrocesso nos limites do uso de pesticidas nas lavouras e de resíduos de agrotóxicos e transgênicos em alimentos. Raj Patel, analista da indústria de alimentos e autor do livro Obesos y famélicos: El impacto de la globalización en el sistema alimentario mundial (Obesos e famélicos. O impacto da globalização no sistema alimentar mundial), afirma que o aumento contínuo dos preços dos alimentos afetará sobretudo as populações do Sul global e aquelas marginalizadas do Norte global, devido aos impactos convergentes dos 4 C: Covid, conflitos, mudanças climáticas (cambio climático, em espanhol) e capitalismo. A principal causa da crise alimentar global em formação não é a guerra na Ucrânia – terrível em si mesma pelas mortes e pela devastação que acarreta –, mas sua convergência com o sistema agroindustrial alimentar e os interesses das transnacionais que o controlam, causando caos climático, obesidade, pandemias e doenças das pessoas e do planeta. Existem alternativas que precisam urgentemente de apoio, e agora mais do que nunca, baseadas na agroecologia camponesa para a soberania alimentar.