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Uma reflexão à esquerda sobre o novo papel do movimento indígena

31 de março de 2023

Do recente “fogo amigo do PT” contra o movimento indígena ao dogmatismo do sujeito revolucionário.

Nas últimas semanas, o movimento indígena assistiu ataques às suas pautas no chamado "Brasil Profundo”, revelando assim as primeiras divergências entre os setores que compõem o Governo Lula. Apesar de ser esperado que a burguesia amparada no agronegócio latifundiário e abrigada em partidos de direita e centro atuassem contra o movimento indígena, foram setores do próprio Partido dos Trabalhadores que realizaram declarações e posicionamento anti-indígenas no Mato Grosso do Sul.

Em sessão da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, no dia 09 de março, o deputado Zeca do PT declarou ser contrário às retomadas dos Guarani e Kaiowá. O deputado manifestou apoio a um fazendeiro, a quem chamou de “companheiro e amigo” (sic!), e criticou o movimento indígena a quem se dirigiu com as seguintes palavras: “quero me manifestar como deputado do PT: não contem comigo, ESSA GENTE, que sem nenhuma razão ocupa e invade propriedades”. Além disso, ele ainda alegou ter dialogado com o Governo Lula e que o Presidente da República também seria contra as ocupações. Ele se referia à retomada no território Laranjeira Nhanderu, iniciada no começo de março, em área onde fica situada uma fazenda de propriedade do atual Presidente Municipal do PT de Rio Brilhante-MS.

O posicionamento do deputado, que inclusive fez campanha em terras indígenas durante as eleições, causou reações entre lideranças e organizações do movimento indígena. A Aty Guasu e o Conselho Terena se posicionaram e evidenciaram o desconhecimento do deputado sobre o Território Laranjeira Nhanderu que, ao contrário do que ele advoga, possui estudo antropológico e é imprescindível à reprodução física, social e cultural dos Guarani e Kaiowá, em conformidade com o Art. 231 da Constituição.

Não bastasse o lamentável posicionamento, novamente no dia 11 de março, Zeca do PT voltou a atacar o movimento indígena, dessa vez, por meio da imprensa local e direcionando críticas a Eloy Terena, filiado ao PSOL em Mato Grosso do Sul, e Secretário Executivo do recém criado Ministério dos Povos Indígenas. Zeca do PT afirmou que:

Esse tal de Eloy, que assinou essa nota, é um irresponsável, que se promoveu fazendo essa política radical. Eu tinha avisado alguns companheiros do Lula que ele iria atrapalhar. A tese que o presidente Lula e eu defendo é que temos que buscar o diálogo. Lula já falou que vai fazer reforma agrária, assentamentos, colocar os índios nas suas terras demarcadas, mediante compra e indenização.

Eloy é uma jovem liderança que tem atuado na área jurídica na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e é reconhecido internacionalmente pela defesa das causas indígenas. Atuante nos últimos anos faz parte de uma geração de lideranças que saíram de suas comunidades para se formar e atuar em espaços transnacionais denunciando e advogando pela causa dos povos indígenas do Brasil. Sua participação na equipe da Ministra Sonia Guajajara é apenas um reflexo deste trabalho e luta que vem sendo realizada de forma íntegra e sim, radical, pois se propõe a enfrentar a raiz dos conflito de terras no Brasil: o genocídio sistemático empreendido ao longo de mais de 500 anos de invasão, exploração e opressão contra os povos indígenas.

O que está em jogo nessa disputa?

Sabemos que, nos últimos anos, o movimento indígena no Brasil tem conseguido bastante notoriedade midiática e política e que a participação desse setor na disputa da conscientização da população brasileira tem aumentado. Em parte pelo enfrentamento à crise climática que assola o mundo, e que põe os povos originários como protagonistas dessa luta, e por em outra parte pela estratégia política de pôr a agenda de luta indígena na plataforma eleitoral a nível nacional. O movimento indígena brasileiro, assim como em outros locais do mundo, tende a defender uma importante autonomia política de qualquer governo que esteja à frente das nações, sobretudo na América Latina. As pautas do movimento indígena têm sido reivindicadas com afinco no Brasil, em todas as gestões, sejam elas da era FHC, do golpista Michel Temer, ao do fascista Bolsonaro e até dos governos petistas de Lula e Dilma. Para nós, o movimento indígena sempre foi um exemplo de luta, coerência e enfrentamento aos retrocessos, fruto de uma luta de centenas de anos contra a colonização, a perseguição e o etnocídio.

A nomeação acertada da nossa companheira de partido, Sônia Guajajara, ao Ministério dos Povos Indígenas se trata de um grande marco para a história do movimento. A primeira ministra dos Povos Indígenas se torna símbolo e síntese das demandas históricas do movimento indígena e uma alteração importante no modus operanti do fazer na política institucional. Afinal, por tempos, as decisões políticas, científicas e de relevância aos povos indígenas do Brasil foram feitas por indigenistas e antropólogos. Sem qualquer intenção de deslegitimar o trabalho dessa classe de intelectuais militantes pela causa indígena, mas a decisão dos indígenas agora é para se auto representarem, e se afastarem cada vez mais da formulação e atuação política baseada na tutela e no apadrinhamento. Aos brancos aliados de luta, o papel no jogo político se tornou mais importante e pesado: sustentar a aceitação dos indígenas na política, principalmente em um meio tão adverso à pluralidade que é o da política institucional.

Portanto, o que está em disputa nesse momento da política nacional é a garantia à aceitação dos indígenas no papel de poder da política institucional. O passo dado no Ministério pela companheira Sônia Guajajara é forte e se sustenta como a pisada do toré! Mas sustentar essa posição e outras que virão se dará por meio de uma base de apoio para além do movimento indígena.

E para a Esquerda?

Nós da Esquerda não somos um só corpo de militantes, estamos nas diversas tradições políticas, e nos pautamos por escolhas de ações políticas muitas vezes distintas. Neste momento, no Brasil, todas as organizações políticas de esquerda, sejam elas revolucionárias ou não, têm sofrido grandes crises internas que, no fim das contas, são reflexos das mudanças sociais recentes da nossa conjuntura e do impacto que o enfrentamento ao fascismo brasileiro tem causado ao país. Dentro de toda essa diversidade que é a esquerda, sabemos com nitidez quem são os sujeitos e grupos que de fato apoiam não apenas a luta do movimento indígena, mas a participação EFETIVA dos indígenas na política partidária, na luta institucional e nas direções das organizações.

Infelizmente, para muitas organizações, existe uma leitura dogmática, ultrapassada e saudosista de quem seriam os sujeitos importantes e chaves para uma transformação radical do sistema em que vivemos, e muitos indígenas não se “encaixam” nas fórmulas desenhadas e fechadas, afinal, não são vistos como grupo potencialmente importante para uma mudança brusca do nosso sistema e superação do capitalismo. Portanto, essas organizações não acreditam que o movimento indígena seja uma chave para uma revolução no Brasil.

Apesar de lamentável a não compreensão de diversos setores, para nós, ecossocialistas, isso não é inédito, afinal, não se trata de um erro de leitura simples da realidade do Brasil, mas uma consequência de uma visão domesticada do sujeito revolucionário, idealizado como um empregado de chão de fábrica da Europa nos anos de 1910. O apego às experiências revolucionárias, de teorias e textos que configuram debates centrados na Europa se tornam, muitas vezes, um empecilho para ver a realidade da nossa própria nação. Essa concepção não se altera simplesmente ignorando toda literatura marxista, pensadores revolucionários, experiências externas ao país e colocando-as no lixo. A proposta não é e nunca foi essa! Mas, sim, com a compreensão que torna essas experiências como dogmas políticos não resulta em nada na realidade social brasileira, além de criar estrelas digitais de youtubers que vivem de polêmicas e views para manter suas organizações políticas de pé.

Lula não apenas acertou ao escolher Sonia Ministra, ele acertou por notar que o movimento indígena precisa ser ouvido sem intermediário ou tutela intelectual. O acerto de Lula não necessariamente é acerto do PT, ou de outros partidos da esquerda. Estar e caminhar com a pauta do movimento indígena nacional é compreender que os indígenas são não apenas CAPAZES de fazer política, seja ela institucional ou não, mas que os indígenas, na América Latina, são sujeitos-chave para a transformação social e a ruptura sistêmica que queremos para este país. Afinal, são os povos indígenas, como no exemplo das Retomadas dos Guarani e Kaiowá, que têm feito significativas lutas anticapitalistas frente à propriedade privada no Brasil: ocupam e tomam de volta os territórios usurpados pelo agronegócio.

Para nós, ecossocialistas, não existe possibilidade de viver numa sociedade pós-capitalista sem compreender e executar os saberes ancestrais e de coexistência que os povos indígenas cultivam e guardam há milhares de anos. Afinal, quem melhor que os indígenas para ensinar e construir lutas sociais? Resistem e lutam por mais de 500 anos no Brasil. Para os não indígenas, são um exemplo; para os revolucionários, são uma das chaves para o futuro ecossocialista.

Estar no governo mata nossos sonhos? Não!

Muitos setores da esquerda têm se preocupado com frequência sobre uma possível cooptação do movimento mais aguerrido do Brasil estar compondo um governo após a gestão fascista de Bolsonaro. O receio é válido, vivemos momentos complicados de esvaziamento dos movimentos sociais nas últimas experiências do PT no governo. Entretanto, vivemos uma conjuntura diferente neste momento, de reconstrução nacional e volta da relevância dos povos indígenas no Estado, após um período assustador de perseguição e genocídio praticado por Bolsonaro e seus aliados. Se, enquanto esquerda, viermos a cometer erros, que sejam erros diferentes do passado, que tenhamos novas posturas e façamos diferentes apostas.

Outro ponto para essa discussão é justamente questionar: por que todos os movimentos sociais brasileiros PODEM atuar, ter presença, e ter experiência na gestão do Estado, mas com o movimento indígena isso não deveria ser possível? Por que outros movimentos puderam se arriscar, e, muitas vezes, erraram por focar APENAS na gestão do Estado e por abandonar as bases sociais e da periferia, dando espaço, muitas vezes, para movimentos reacionários fantasiados de religiosidade? Não estamos nesse ponto repetindo a lógica da tutela? Todos os movimentos tentaram, não deu muito certo, então o movimento indígena não deveria tentar? Será que o movimento indígena pode aprender com os erros do passado e fazer novas apostas?

A decisão do movimento indígena de estar na gestão do Estado, nesse caso de compor o governo Lula, cabe aos indígenas. A esquerda não indígena não deve ter qualquer pretensão de vetar a escolha do movimento sob a alegação de que no Estado irão se institucionalizar. Talvez as suposições e alegações não levem em conta o cerne do movimento, seus objetivos e seus sonhos. Para a esquerda não indígena, é preciso, primeiro, compreender os indígenas como sujeitos revolucionários centrais para o futuro que almejamos. O que almejamos não é apenas ter ministério, não se trata disso. Ter presença na gestão é garantir a necessidade de estar vivos, o que muitas comunidades indígenas não têm conseguido garantir! Nossas necessidades e as respostas que queremos são imediatas, mas isso não acaba com nosso anseio por continuar lutando por um mundo melhor e por um sistema que não coloque o lucro acima das nossas vidas.

Uma reflexão pertinente que Amanda Palha, ex-dirigente do PCB, fez em suas redes sociais, durante a pandemia, ajudou a elucidar bem como a esquerda, em geral, hierarquiza o debate. Amanda Palha nos leva a refletir sobre a seguinte situação: Quando nós, LGBTQIA+, lutamos e reivindicamos ter direito a vida, não sermos assassinados e colocamos nossas pautas, muitos dogmáticos e conservadores da esquerda falam que nossa luta não é revolucionária no fim das contas. Porque, afinal, se conseguirmos não sermos assassinadas ou ter uma vida minimamente plena, não teríamos necessidade de lutar para uma revolução social, uma ruptura de sistema. Ora, quando trabalhadores se unem em greve para garantir aumento, que é algo real e para sobrevivência, isso também é visto como não revolucionário? Devemos então deixar de lutar por nossas pautas imediatas que garantem NOSSAS vidas para apenas focar no futuro revolucionário? O exemplo que Amanda Palha nos dá sobre a pauta LGBTQIA+ pode ser perfeitamente aplicado para vários setores sociais vistos como “não revolucionários” por grupos mais dogmáticos e conservadores da esquerda. Sendo assim, vamos abandonar nossas pautas urgentes? O mesmo se aplica para o movimento indígena quando consegue uma demarcação de terra? A luta se encerra ali? A luta das mulheres se encerrou com direito ao voto ou com a Lei Maria da Penha?

Os nossos sonhos não apenas DEVEM ser maiores do que nossas pautas imediatas, mas são VERDADEIRAMENTE maiores do que as pautas necessárias para a nossa vida. É justamente nesta luta cotidiana que nós revolucionários politizam as pessoas para lutar por um mundo cada vez melhor e mais justo. Essa luta não irá cessar enquanto não estivermos construindo uma nova sociedade que almejamos, e que os povos indígenas estão bem à frente nesse debate do que grande parte da esquerda brasileira. Portanto, como a esquerda acharia que estar em uma gestão de Estado seria suficiente para a luta dos povos indígenas? O saber ancestral é revolucionário e ele não se apagará enquanto se luta pela necessidade dos povos indígenas permanecerem vivos!

O papel do PSOL

Nas fileiras do PSOL temos construído uma posição de compreensão do papel que um partido socialista e revolucionário deve ter. Os últimos anos foram significativos para o PSOL, alianças importantes foram firmadas com movimentos sociais da cidade, floresta, matas e do campo e isso tem tido impactos na construção de nossa identidade enquanto um partido movimento, enquanto uma ferramenta que pode e deve ser utilizada pelas lutas sociais travadas fora da institucionalidade para se ocupar de espaços institucionais e ali ecoar as pautas emergentes e urgentes do nosso povo. Estamos alinhados com o respeito à autonomia do Movimento Indígena em tomar suas decisões e definir suas prioridades para atuação em diferentes frentes. 

O PSOL tem compreendido também que seu papel na retomada democrática pós-Bolsonaro é de oferecer base ao Governo Lula no Congresso Nacional para pressionar pelos programas e reformas à esquerda, para que se efetivem os compromissos feitos com o povo durante a campanha eleitoral de 2022 e que nós fizemos parte. No entanto, é latente em nosso partido a reafirmação de que temos outras tarefas históricas enquanto esquerda radical: estar com um pé fora da institucionalidade, ao lado dos movimentos sociais, nas ruas e nas frentes de mobilização. E isso por duas razões principais, a primeira tem haver com a própria disputa do governo, onde os setores conservadores e neoliberais já estão resistindo às pautas progressistas e precisaram ser pressionados pela mobilização popular, a segunda, porque sabemos que as nossas aspirações revolucionárias não cabem no parlamento ou neste governo e precisaram ser gestadas nas experiências não institucionais.

Reafirmamos que nosso lugar é ao lado da classe trabalhadora e dos povos que lutam e resistem contra as ofensivas reacionárias do sistema. Nos posicionamos contrários a qualquer tentativa de criminalização e utilização do aparato repressivo do Estado contra aqueles e aquelas que, como os Guarani e Kaiowá de Laranjeira Nhanderu, apenas lutam pela concretização dos seus direitos. E repudiamos qualquer postura, sobretudo de outros setores da esquerda como do Partido dos Trabalhadores, que tentam deslegitimar ou apequenar a luta dos povos originários. Afinal, a causa indígena não precisa de mais inimigos.

Demarcação já!

O Brasil é Terra Indígena!

Assinam esse texto:

Adizon Macuxi - Presidente do PSOL Pacaraima/RR

Alzemiro Wapichana - Presidente do PSOL Boa Vista/RR

Barto Macuxi - Ex- candidato ao Senado do PSOL por Roraima

Cristiano Mbya Guarani - PSOL Camaquã/RS

Emily Macuxi - PSOL Pacaraima/RR

Gabriel Macuxi - PSOL Pacaraima/RR

Kennya Macuxi - Presidente Provisória PSOL Amajari/RR

Liliam Macuxi - PSOL Boa Vista/RR

Marcinha Xukuru - Secretaria de Direitos Humanos do PSOL Pesquera/PE

Meirinha Macuxi - Secretaria de Mulheres do PSOL Boa Vista/RR

Micheline Xukuru - Secretaria Geral do PSOL Pesqueira/PE

Pinho Macuxi - PSOL Pacaraima/RR

Tallon Macuxi - Setorial LGBT PSOL Roraima

Thayná Wapichana - Secretaria de Comunicação do PSOL Roraima

Val Eloy Terena - PSOL MS

Well Leal Tabajara - Presidente do PSOL Roraima