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Vacinação: o que importam os pobres?

5 de outubro de 2021

1,5 bilhão de pessoas, um quinto da população total do planeta, estão em situação de pobreza severa e privados dos meios mais básicos para viver. Estão entre os mais prejudicados pela pandemia e por outras doenças associadas à pobreza, como, por exemplo, o HIV/AIDS, a tuberculose e a malária

Fernando Luengo, Público, 5 de outubro de 2021. A tradução é do Cepat.

A covid-19 irrompeu com força em todos os países do mundo, sem nenhuma exceção. Não conhece, nem respeita fronteiras. Assistimos a uma pandemia global que, por esse mesmo motivo, requereria uma resposta global, especialmente no que diz respeito ao processo de vacinação.

Mas nada mais longe da realidade.

O gráfico abaixo oferece informação atualizada, elaborado com dados de 3 de outubro desse ano. Podemos notar como a vacinação evoluiu nos países de renda alta, média-alta, média-baixa e baixa.

A desigualdade é sangrenta. No primeiro grupo de países, que reúne os que possuem uma renda por habitante mais alta, a porcentagem da população que recebeu ao menos uma dose é de 68,4%. A curta distância está o que reúne os de renda média-alta, onde a parte da população que já foi vacinada também é bastante alta (63,4%).

O grupo seguinte, integrado pelos países de renda média-baixa já fica muito distante dos dois anteriores. Apenas 31,5% da população recebeu uma dose. E a distância já é enorme, caso nos detenhamos naqueles com uma renda mais baixa, os países mais pobres, onde apenas 2,3% da população foi vacinada com uma dose.

Concentrando-nos nesses dois últimos grupos, onde a vacina só chegou para uma minoria ou teve uma trajetória claramente insuficiente, constatamos que mais de 3 bilhões de pessoas estão claramente expostas ao vírus ou, mais ainda, ficaram doentes.

É preciso levar em conta, além disso, que nesses dois grupos a pobreza está mais disseminada do que em outras regiões. Tomando como referência dois dos indicadores utilizados pelo Banco Mundial (BM) – população que vive com menos de 1,9 ou 3,9 dólares por dia em paridade de poder de compra 2011 – para medir a pobreza monetária extrema, avaliar a pobreza absoluta, aplicarei o primeiro deles para os países de baixa renda e o segundo para os do grupo de renda média-baixa.

Lamentavelmente, o BM não oferece informação estatística atualizada, mas a que está disponível ilustra muito bem a gravidade da situação. O grupo de renda baixa é formado por 27 países, entre os quais, certamente, está o Afeganistão. A pobreza absoluta no último ano do qual se tem dados disponíveis, 2017, atingia 46,8% da população, o que significava mais de 280 milhões de pessoas. No grupo de países de renda média-baixa – 55 no total –, aplicando o indicador de 3,2 dólares, a pobreza atingia, em 2018, mais de 1,2 bilhão de pessoas, o que significava 33,7% da população.

Em suma, 1,5 bilhão de pessoas, um quinto da população total do planeta, estão em situação de pobreza severa e privados dos meios mais básicos para viver. Estão entre os mais prejudicados pela pandemia e por outras doenças associadas à pobreza, como, por exemplo, o HIV/AIDS, a tuberculose e a malária.

Encontramos o contraponto a esta catástrofe humanitária na satisfação com a qual nossos governos, meios de comunicação, instituições... se parabenizam pelos notáveis avanços alcançados na vacinação. Sem reparar em que será impossível consolidar essas conquistas e continuar progredindo, caso a vacina não seja estendida para os milhares de milhões de pessoas que estão ficando na sarjeta, expostas à doença.

Não se trata de generosidade – não peço para tirar leite de pedra –, mas de justiça e de ter consciência que em um mundo que apesar de tudo continua sendo global, os circuitos de transmissão da doença às pessoas e à economia são múltiplos.

Conforme eu destacava no início do texto, urge uma iniciativa global – sobre a qual muito se fala, mas pouco ou nada se faz – que permita o acesso de toda a população, em condições aceitáveis, às vacinas.

O principal obstáculo para essa ação global está nas grandes companhias farmacêuticas, que estão fazendo o negócio de sua vida com a doença.

Recebem somas milionárias de dinheiro público que foram essenciais no processo de pesquisa e obtenção das vacinas, desfrutam do privilégio conferido por serem titulares das patentes, estão negociando os fornecimentos a governos e instituições em condições certamente obscuras, operam com margens de lucro extraordinário e os grandes acionistas e diretores lucram com o forte aumento nos preços das ações dessas empresas.

Lutar contra a doença e considerar a saúde como um bem público global exige acabar com o oligopólio farmacêutico. Há iniciativas que apontam nessa direção – suspensão temporária ou definitiva das patentes, transferência de tecnologia e apoio a centros de produção que garantam o acesso em massa às vacinas ... –, mas assim como em outros assuntos igualmente decisivos, onde as grandes empresas e os lobbies que as representam impõem seus interesses, resta saber se há vontade política necessária para colocar o conjunto da população à frente.

Até o momento, boas palavras, declarações solenes e promessas vazias... e as farmacêuticas na sua, enriquecendo, enquanto que se abre um novo fosso entre o norte e o sul.