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Vitória histórica no plebiscito constitucional do Chile

O povo chileno fez nas urnas o que já havia decidido há um ano de forma maciça e sustentada nas ruas, protestos, praças e barricadas: pôr fim à Constituição de Pinochet

27 de outubro de 2020

O povo do Chile fez nas urnas o que já havia decidido há um ano de forma maciça e sustentada nas ruas, protestos, praças e barricadas: pôr fim à Constituição de Pinochet. Com isso, infligiram uma estrondosa derrota à reação, que hoje está fortemente agrupada nos setores militares, nas grandes empresas e nos partidos governamentais. Dois artigos colocam a situação chilena em perspectiva:

Karina Nohales, Viento Sur, 26 de outubro de 2020

Este triunfo, que sem dúvida contém uma chave anti-direita, excede inteiramente esses termos. É o resultado de uma revolta social que colocou como desafio central enfrentar os últimos trinta anos de transição democrática neoliberal e os partidos que a administraram. Os partidos da Concertación por la Democracia liderados pelo Partido Socialista estão aí. Na verdade, o que aqueles governos não quiseram fazer durante décadas, o povo fez em alguns meses por meio de uma Greve Geral.

Especificamente, neste plebiscito histórico, diante da pergunta "Você quer uma nova constituição", a opção "eu aprovo" ganhou por 78,27% dos votos, enquanto a opção "eu rejeito" obteve 21,73%. Esta última obteve a maioria apenas em cinco comunas do país, três das quais são aquelas onde se concentra o povo mais rico do Chile. Este inegável caráter de classe do referendo foi corroborado pelos quase 90% que a "Aprovação" obteve nos bairros pobres urbanos.

Quanto à segunda votação que perguntou "Que tipo de órgão deveria elaborar a Nova Constituição", a Convenção Constitucional - que será igual em termos de gênero e cujos membros serão cem por cento eleitos pelo voto popular - ganhou com 78,99% dos votos, contra 21,01% obtidos pela Convenção Conjunta - que não seria igual e cujos membros seriam metade eleitos pelo voto popular e metade composta por parlamentares atualmente em exercício.

O triunfo da Aprovação acima de 70% estava dentro das projeções, mas não o alto percentual obtido pela Convenção Constitucional que se esperava ganhar por uma margem menor. Haverá tempo para uma leitura detalhada deste resultado, mas no início ele expressa a retumbante desaprovação do Parlamento e o amplo espírito antipartidário contido na revolta. Este último fenômeno merece atenção especial, pois se relaciona com a narrativa que a extrema-direita neofascista empregou contra os políticos.

Ontem à noite, as ruas de todo o Chile se tornaram o cenário de uma festa popular. Na capital, Santiago, os pobres vieram de diferentes partes para o centro, para a antiga Plaza Italia agora rebatizada Plaza de la Dignidad, um ponto que historicamente tem simbolizado a linha divisória da segregação econômica. Viver da Plaza Italia para cima, ou seja, para o leste, onde a Cordilheira dos Andes se eleva, é sinônimo de ser rico. Ali, na cicatriz de uma cidade que concentra 60% da população do país, estava novamente aquele Chile pobre, feminista e plurinacional que ninguém pode esconder e que hoje se mostra diante do mundo órfão de sua própria liderança política e até mesmo de símbolos que o conectam com a epopeia de outras façanhas populares, mas com uma disposição irredutível para acabar com o neoliberalismo e alcançar aquela vida que vale a pena viver.

Enquanto os grandes empresários e os partidos de direita se esforçam para esconder a extensão de sua derrota, os partidos de centro e centro-esquerda não ousaram reivindicar abertamente a vitória do plebiscito como sua própria vitória. Todos eles, entretanto, já concordaram em assumir a voz do próximo processo constitucional. Através do Acordo para a Paz Social e a Nova Constituição, eles estabeleceram os termos da exclusão popular e seu próprio protagonismo - ficaram de fora apenas os Partidos Comunista e Humanista.

Em termos do itinerário institucional, o próximo passo são as eleições constituintes de abril de 2021. Até agora, não há vagas reservadas para os povos nativos, há um veto para a candidatura de líderes sindicais, que não podem concorrer a menos que se demitam de seus postos, e há condições onerosas para a criação de candidatos independentes. Como contraponto, a Convenção Constitucional será o primeiro órgão a elaborar uma constituição no mundo completamente paritário entre os sexos.

A concessão da paridade no âmbito de alguns termos gerais exclusivos pode ser interpretada como o resultado de uma leitura que entende que o poder feminista é facilmente integrado em uma chave de paridade da administração formal do que existe. O desafio é provar que estão errados, e que esta expectativa é olhar para uma narrativa feminista que foi construída de cima e não uma que foi construída por milhões de pessoas de baixo. A paridade dá a este feminismo profundamente transformador que se desenvolveu nos últimos anos a enorme possibilidade de levar as aspirações programáticas de toda uma classe, colocando a vida das mulheres e dos dissidentes no centro como um grande problema político. Ela também oferece a possibilidade de que a disputa entre mulheres que fazem parte de classes antagônicas possa ser livre através de suas próprias vozes e não através de intermediários masculinos. Isto será uma grande contribuição para a diferenciação e politização em termos da classe das mulheres trabalhadoras e do campo popular.

A tarefa fundamental é fazer com que o fim da Constituição de Pinochet se torne o fim do modelo instalado pelo tirano. Isso ainda não está assegurado. Para conseguir isso é necessário colocar a voz principal da revolta no espaço constituinte. Para isso, é necessário agir dentro e fora da Convenção Constitucional. Dentro, porque ali estará em jogo, em boa medida, o sentido da politização das massas que começou há um ano no Chile. A Convenção será o espaço mais importante de discussão programática que o país experimentou em meio século - desde a vitória de Salvador Allende em 1970 - e, para articular um projeto radicalmente transformador com um alcance de milhões é importante os termos e as alternativas que são debatidos. Fora, porque o movimento social tem que estar preparado para responder de forma coordenada e com suas próprias perspectivas a cada disputa que surja no órgão constitucional. Finalmente, dentro e fora, porque este processo também envolve a possibilidade da classe trabalhadora continuar no caminho de auto-organização que iniciou sem subordinação às partes da transição neoliberal.

O povo sabe que o que aconteceu ontem é seu triunfo e também sabe bem que seus inimigos os fizeram pagar um custo indescritível para obtê-lo. Mais de 40 pessoas foram assassinadas, mais de 460 vítimas de traumas oculares, mais de 2.000 presos políticos, mais de 5.000 vítimas de violações de direitos humanos por agentes policiais e militares do Estado - dos quais 1.300 são crianças menores de 18 anos e quase 500 são vítimas de violência política sexual contra mulheres e dissidentes baseados no gênero, incluindo estupro. Tudo isso em apenas um ano, tudo isso com impunidade.

O povo no Chile hoje está liderando uma luta colossal pela democracia em meio a uma mudança autoritária global. O plebiscito de ontem confirma essa lição histórica de que as demandas democráticas mais básicas são o resultado da luta e não concessões livres dos poderosos. Aqueles que administraram durante décadas o que o povo tem hoje contestado estão se preparando para colher os benefícios da luta que outros têm sustentado. É uma grande tarefa política superar os desafios de defender a independência de classe, impedir que os inimigos dos trabalhadores reconstruam sua base social e permitir o surgimento de suas próprias expressões políticas que afirmem novos projetos radicais. A vontade e a força para provocar este encontro foi amplamente demonstrada.

Maioria esmagadora dos chilenos vota por enterrar a Constituição de Pinochet

Com quase 90% das urnas apuradas, 78% dos chilenos votaram por uma assembleia constitucional que ponha fim à última grande herança da ditadura

Rocío Montes, El País Brasil, 25 de outubro de 2020

O Chile escolheu este domingo superar a herança mais pesada de Augusto Pinochet, a Constituição vigente. Os cidadãos aceitaram a oferta das instituições políticas de iniciar um caminho constituinte para canalizar o descontentamento, que explodiu em forma de protesto e violência há exatamente um ano, em outubro de 2019. Os primeiros resultados oficiais, com 90% das urnas apuradas, confirmam uma vitória esmagadora daqueles que querem mudar a carta fundamental: 78%, contra 22% que rejeitaram a ideia de substituí-la.

Também foi contundente a escolha do organismo que a redigirá a convenção constitucional, composta por 155 pessoas que serão especialmente eleitas no próximo mês de abril, que terá um caráter paritário entre homens e mulheres. Essa alternativa alcança 79% das preferências, contra 21% que optaram pela convenção mista, que seria composta por 172 membros, entre cidadãos e parlamentares. “Hoje os cidadãos, a democracia e a paz venceram a violência”, disse o presidente Sebastián Piñera na noite de domingo no palácio de La Moneda, acompanhado por todo o seu gabinete.


Em golpe a Piñera, Chile aprova saque de 10% das aposentadorias contra a crise do coronavírus
Foi uma jornada em que o Chile mostrou sua cultura cívica e, à noite, centenas de pessoas se reuniram na região da Praça Itália, no epicentro das concentrações em Santiago. Embora nos últimos anos o país sul-americano tenha alcançado recordes regionais de abstenção junto com a Colômbia, uma alta participação era esperada neste domingo. A tendência das últimas eleições de baixa participação –que chegou a um mínimo de 36% nas municipais de 2016– foi parcialmente revertida neste dia, apesar da crise sanitária, que nesta semana ultrapassou 500.000 casos no Chile e matou 13.944 pessoas desde março. Com 9.748 pacientes com covid-19 em fase ativa, os protocolos sanitários implantados pelas autoridades para evitar a propagação do vírus conseguiram convencer a população a ir às urnas sem medo.

O movimento chileno não é liderado pelas instituições clássicas, como partidos e sindicatos. Portanto, nenhuma força política poderia reivindicar uma vitória que, acima de tudo, foi protagonizada pelos cidadãos.

A diferença entre os que aprovaram e rejeitaram a ideia de substituir a Constituição vigente não constitui, portanto, um espelho da correlação de forças entre o situacionismo do Governo de direita de Sebastián Piñera e a oposição. Entre os que votaram por um novo texto também fazem parte os eleitores de direita, não apenas de esquerda e de centro-esquerda, embora aqueles que se opuseram à mudança sejam principalmente da direita doutrinária. Na segunda-feira, portanto, começa a verdadeira batalha na política chilena com vistas à eleição dos 155 convencionais no próximo dia 11 de abril, em menos de seis meses.

O situacionismo parece em melhores condições do que a oposição para esta nova etapa. Embora até hoje tenham coexistido duas almas neste setor –as que aprovavam e rejeitavam uma nova Constituição–, existem os acordos necessários para chegarem unidos até abril, quando serão eleitos paralelamente prefeitos, vereadores e, pela primeira vez, governadores regionais. O mesmo não acontece com a oposição, onde algumas das forças de esquerda –tanto o Partido Comunista quanto a Frente Ampla– têm dificuldades para negociar com os setores moderados, que conformaram a Concertação (1990-2010). Portanto, dificilmente conseguirão uma lista única, o que aumenta as possibilidades de conseguirem os 2/3 necessários para aprovar os conteúdos da nova Constituição.


Embora seja fictício pensar que todos os que aprovaram a mudança na Constituição pertençam à oposição –a direita no Chile tem muitos eleitores–, no Governo não deixaram de preocupar nem os discursos políticos dos líderes oposicionistas nem a reação das ruas. No palácio de La Moneda não se desvaneceu o temor de possíveis revoltas por parte daqueles que não entendem o referendo e o interpretam como um plebiscito de revogação contra Piñera, como se insinuou em alguns setores.

Após a eleição dos convencionais em 11 de abril, no mais tardar em meados de maio de 2021, o presidente Piñera deve convocar a sessão de instalação da convenção, cujo lugar de funcionamento ainda não foi definido. A instalação deve ocorrer dentro dos 15 dias posteriores, ou seja, entre maio e o início de junho de 2021. Depois, em sua primeira sessão, a convenção deve eleger a presidência e a vice-presidência. A partir desse momento terá início um prazo de nove meses para redigir e aprovar o texto constitucional que deverá ser ratificado em novo plebiscito, desta vez de caráter obrigatório. Esse prazo de nove meses pode ser prorrogado, apenas uma vez, por três meses. Portanto, o novo texto constitucional deve estar finalizado, no máximo, até o início de junho de 2022. Nessa data, um novo presidente estará governando o Chile.

As imagens que foram vistas hoje nas ruas, nas redes sociais e na imprensa –longas filas espera para entrar nas seções eleitorais no Chile e no exterior– antecipavam uma alta participação. O referendo foi realizado com uma primeira onda da covid-19 ainda ativa e com um detalhado protocolo sanitário, razão pela qual os eleitores compareceram aos 2.715 locais disponíveis seguindo as recomendações. Nem a pandemia nem a violência de uma semana atrás detiveram a participação.

Aumento da participação
A participação eleitoral no Chile tinha diminuído continuamente desde as primeiras eleições presidenciais e parlamentares no marco do retorno à democracia, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A tendência cresceu em 2012, quando o voto passou a ser facultativo. A participação caiu de 87% em 1989 para 50% no segundo turno presidencial de 2017, com um mínimo recorde de 36% nas eleições municipais de 2016. De acordo com o PNUD, o Chile também se destacava por sua baixa participação eleitoral em comparação com outros países da região e da OCDE e inclusive se fosse comparado com a média de participação em países com voto facultativo (59%).

Neste domingo observou-se o desejo de participar de um processo eleitoral histórico que busca canalizar o mal-estar social. As pessoas respeitaram o distanciamento social nas longas filas que se formaram fora dos locais de votação e todo mundo usava máscara e álcool em gel. Foi um processo rápido e organizado, onde se observou a mobilização de uma boa logística em função da crise sanitária. O que acontecer neste domingo em relação à pandemia será fundamental para a marcha eleitoral que o Chile enfrentará entre 2021 e 2022.

As mesas começaram a tomar forma cedo –às oito da manhã no Chile– e quatro horas depois estavam totalmente constituídas, segundo o SERVEL. Devido à crise sanitária, o horário foi ampliado e funcionaram durante 12 horas, até as oito da noite. Entre duas e cinco da tarde os locais receberam exclusivamente idosos, população de risco em relação à covid-19. De manhã, porém, esse grupo da população compareceu em massa às urnas, como é habitual. Na televisão local foi mostrada uma chilena de 76 anos, Rosa, que saiu de casa pela primeira vez desde março, quando explodiu a pandemia. Como tem hipertensão e diabetes, vestia um traje plástico para evitar o contágio.

Muitos jovens –as gerações que protagonizaram os protestos– também votaram cedo. São os que compõem majoritariamente o padrão eleitoral: 57,9% não tinham idade para votar no referendo de 1988, sobre a continuidade de Augusto Pinochet, ou nem sequer tinham nascido naquela época. Nas últimas eleições presidenciais e parlamentares de 2017, o grupo que menos participou foi o dos que tinham entre 18 e 24 anos (35%), seguido dos que tinham entre 25 e 34 anos (36%). Os dados ainda não se conhecem em detalhes, mas muito provavelmente foi a participação desta geração que definiu o referendo.