Voltar ao site

Vivas nos queremos: a pandemia e a violência contra as mulheres

A violência que se normaliza é diretamente proporcional ao impacto que tem a crise na vida das mulheres

16 de março de 2021

Luísa Câmara Rocha

Em 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que estávamos vivendo em uma pandemia do novo coronavírus. Um ano e um dia após a declaração é possível perceber de forma muito concreta os impactos que a pandemia tem causado na vida das mulheres. As trabalhadoras profissionais da saúde que estão na linha de frente e convivem com altas taxas de contágio (e de mortes), a crise do cuidado e o aumento da violência contra às mulheres são alguns desses efeitos.

A pandemia não cria nenhuma dessas situações, mas as potencializa consideravelmente. No Brasil, temos ainda o acúmulo perverso do fator Bolsonaro e sua política negacionsita e a atuação fundamentalista de Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDDH). Precisamos pontuar aqui, no entanto, que as explicações de que esses aumentos são resultantes de uma ineficiência ou inabilidade da ministra nos parece reducionistas, uma vez que não dão conta de caracterizar isso como parte de um projeto político de morte que coloca a violência contra às mulheres (em suas variadas possibilidades) como algo menor e passível de relativizações. Não é ineficiência, é projeto político de morte que rifa a vida das mulheres.

É necessário afirmar também que o aumento da violência contra às mulheres durante a pandemia não impactam todas da mesma forma. O capitalismo, o patriarcado, o racismo e a heteronormatividade compulsória já diferenciavam os efeitos dessas estruturas na vida das mulheres. A pandemia agudiza essas relações assimétricas e coloca algumas de nós em situações de maior vulnerabilidade. Ter isso em vista é importante para não cairmos nas armadilhas do feminismo liberal que por vezes apresenta “soluções” sistêmicas sem ponderar as complexidades das relações sociais e suas imbricações na realidade concreta das mulheres.

Entre silenciamentos e subnotificações: quando ficar em casa não é seguro

Uma das orientações de prevenção ao contágio e propagação do coronavirus é o isolamento social, quando pensamos na atual crise sanitária que é também uma crise social, econômica e política, surge o seguinte questionamento: quem pode ficar em casa? Ou ainda, como ficar em casa quando ela não necessariamente é um ambiente seguro?

Na primeira situação faz-se necessário criar condições materiais que possibilitem as pessoas de permanecerem em casa e cumprirem o isolamento social tendo suas necessidades básicas garantidas, situação que era propiciada minimamente pelo pagamento do auxílio emergencial. Já na segunda situação, a insegurança do ambiente domiciliar pode ser percebido quando as mulheres precisam permanecer mais tempo com seus agressores em casa, o que pode ser usado por abusadores para controlar o comportamento de suas parceiras, impedindo seu acesso à segurança e a redes de apoio.

A Rede de Observatórios da Segurança fez um levantamento em 05 estados brasileiros - Bahia, Ceará, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro – e registrou em média 05 casos de feminicídios e violências contra às mulheres por dia em 2020. O aumento da tensão e estresse provocado pela pandemia, a saúde emocional, a sobrecarga de trabalhos domésticos e fatores econômicos são alguns elementos que ajudam a compreender o crescimento da violência doméstica e familiar contra às mulheres durante a pandemia.

A verificação do aumento de casos de violência tem sido avaliada de diferentes formas, a partir da diminuição das denúncias feitas nas delegacias de polícia, na diminuição do requerimento da medida protetiva de urgência (MPU), ou ainda, no computo de dados em redes sociais que indicou um crescimento de relatos de brigas de casais e violência, como apontado na nota técnica sobre violência doméstica na pandemia de covid-19 elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Esses dados, no entanto, não traduzem a real dimensão do crescimento da violência doméstica e familiar no contexto pandêmico. No geral eles são computados à nível estadual pelas secretárias das mulheres e/ou de segurança pública sem uma parametrização unificada, além de computarem, via de regra, apenas a partir de dois canais de entrada – polícia e judiciário -, desconsiderando os dados das redes de enfrentamento locais, como os do centro de referência das mulheres, por exemplo. Dados sobre a violência doméstica e familiar contra às mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais são praticamente inexistentes, fazendo com que a subnotificação seja mais um fator de apagamento e invisibilização da vida, mortes e existências dessas mulheres.

Com o aumento da demanda de serviços de proteção e prevenção à violência de contra às mulheres, as respostas dos países onde o isolamento foi adotado foram implantadas basicamente em 04 diretrizes: 1) manutenção, expansão e inovação dos serviços públicos de atendimento à mulher, caracterizando-os como essenciais; 2) garantia de renda para mulheres; 3) reforço de campanhas de conscientização sobre violência de gênero; e 4) parcerias com a sociedade civil.

No Brasil, o foco das ações de enfrentamento propostas por Damares Alves se concentram em aplicativos que dependem de celulares com tecnologia avançada e nas mídias sociais deixando de lado as mulheres que não têm acesso a estas tecnologias e à internet. Medidas pouco eficazes, com baixa capacidade de enfrentamento efetivo ao problemas.

Do luto à luta: estratégias de resistências feministas

A violência contra as mulheres em suas múltiplas possibilidades deve ser entendida e enfrentada como uma das mais fortes expressões das desigualdades entre homens e mulheres. É a radicalidade do movimento feminista popular que constrói as bases para definir, explicar as causas e determinantes como também para formular possibilidades de enfrentamentos, tendo por base as experiências diversas das mulheres, das estratégias de resistências e das redes de apoio.

A pandemia visibilizou que vivemos em uma sociedade em que o “normal” é fruto de um sistema que alcançou níveis absurdos de desigualdade, exclusão e violência. A violência que se normaliza, como se fosse um fenômeno natural e não político, é diretamente proporcional ao impacto que tem a crise na vida das mulheres.

O mês de março que historicamente é o mês de lutas das mulheres, marcando uma agenda feminista de denúncias e reinvindicações, é o mês também que (infelizmente) vemos a pandemia da covid-19 alcançar novos e alarmantes patamares no Brasil. Os desafios são gigantes, mas gigante também é a força das mulheres organizadas. Já no ano de 2018 ocupamos as ruas de todo pais no #EleNão nos colocando como uma das forças políticas imprescindíveis para a mobilização nacional de oposição a esse governo genocida.

Seguiremos denunciando à violência contra às mulheres, criando redes de apoio e construindo ações de solidariedade. Seguiremos articulando frentes de resistências unitárias e elaborando estratégias para o enfrentamento da crise que se instaurou no Brasil. Seguiremos na luta pelo retorno do auxílio emergencial no valor de R$600,00 enquanto durar a pandemia, na defesa da vacina para todas/os e no #ForaBolsonaro.

Seguiremos juntas até que todas sejamos livres.

Luisa Câmara é advogada popular feminista, pernambucana e militante da Insurgência/PB.