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Vladimir Safatle: Governar através do sexo

Artigo publicado no El País Brasil, em 13 de maio de 2021

15 de maio de 2021

O poder no Brasil sugere o fim do mundo através de crianças que “não sabem ler, mas sabem usar camisinha”. Fala de maneira similar àquela que os alemães ouviam, na década de 1930.

No final do século XIX, o Ocidente desenvolveu uma forma de falar de sexo que até então nunca vira a luz. Nós conhecíamos discursos jurídicos sobre comportamentos sexuais, que tipificavam o permitido e o proibido. Conhecíamos discursos morais e teológicos, com suas distinções entre o moral e o imoral. Mas nunca havíamos visto discursos médicos e clínicos sobre o sexual. Ou seja, nunca a definição sobre o que é da ordem do sexual havia passado por distinções como “normal” e “patológico”. Não por acaso, foi exatamente nessa época que o Ocidente viu proliferar, pela primeira vez, tratados sobre perversões, classificações clínicas detalhadas e precisas a respeito de “desvios” em relação a uma sexualidade “normal”. O mundo então descobriu, entre nós, a existência de pessoas descritas como “sádicos”, “fetichistas”, “exibicionistas”, “masoquistas”, “zoofílicos”, “homossexuais”, entre tantos outros. O primeiro texto no qual um comportamento sexual era definido como um transtorno psíquico fora publicado em 1870 pelo médico alemão Carl Friedrich Otto Westphal. Nele, tratava-se de descrever o sentimento homoafetivo como “sentimento sexual contrário”. A partir de então, o Ocidente rapidamente criou uma forma totalmente nova de falar de sexo.

Essa forma, no entanto, não era uma descrição mais acurada de “doenças” que já existiam, mesmo sem serem reconhecidas enquanto tais. Ela era sobretudo uma maneira mais minuciosa de regular os corpos, de normatizar e intervir nos desejos, de organizar as formas da vida social. Como já se sabia a época, sexo não é um problema privado, mas uma questão pública. A ele estão vinculadas instituições como a família e o casamento, regras de aliança e filiação, hierarquias de gênero e sujeição, disciplina, natalidade e reprodução, trabalho. Ao definir as patologias da vida sexual, esse funcionário público que era o médico podia ir às casas para sentenciar a masturbação das crianças, separar pais e filhos do mesmo quarto, exortar que as mulheres reconhecessem seu “lugar natural”, receitar “trabalhar com afinco em sua vocação” como remédio para a dispersividade do desejo.

Mas seria interessante se perguntar por que, em um dado momento histórico, o poder público entendeu que deveria aproximar-se mais dos corpos, classificá-los, perscrutar de forma minuciosa os desejos. Por que, em um dado momento histórico, o poder e suas instituições (como o hospital, a escola, as universidades, os institutos de pesquisa) precisaram falar tanto de sexo, em um tom de quem alerta para um pretenso risco generalizado de degenerescência? Não seria exatamente nos momentos em que a ordem social se sente mais ameaçada, no momento em que os corpos parecem enfim se mover e sair de seus pretensos lugares naturais, que o poder tem que aproximar mais, chegar até os quartos e corpos dos sujeitos?

Se isso for verdade, então não será estranho ver, em vários momentos históricos, tanta preocupação do poder com sexo. Não se trata de uma espécie de manobra diversionista feita para desviar a atenção de questões estruturais da sociedade. Na verdade, essa é uma questão absolutamente estrutural, pois diz respeito não apenas como a sociedade irá se reproduzir, mas também como as hierarquias serão desejadas, como a insubmissão em relação à norma será afastada.

Nesse sentido, há de se sublinhar as razões pelas quais tal discurso médico sobre o sexual apareça exatamente em um momento histórico marcado por inúmeras convulsões sociais e levantes revolucionários. Os anos de 1830, 1848, 1871 são apenas algumas datas que nos lembram como a Europa foi tomada por corpos que ocupavam as ruas, bloqueavam a circulação, exigiam uma nova ordem e saiam, de forma violenta, de seus “lugares naturais”. Corpos em contato e em fusão. Contra essa insubmissão dos corpos nas ruas nada melhor do que ensinar a submissão à norma sexual e a desconfiança perpétua em relação à polimorfia confusa de nossos desejos. Nada melhor do que instaurar um policial no interior de cada sujeito, nem que ele esteja vestido com as roupas do médico. Fazer as pessoas temerem a insubmissão nas ruas através do temor que se instaura contra a insubmissão do seu próprio desejo.

De fato, essa percepção não estava errada. Afinal, quando uma revolução enfim tomar o poder e durar, como foi o caso da revolução soviética, o mundo assistirá a um questionamento sistemático e um desejo profundo de reconstrução institucional de tudo relativo a sexo. Ao menos entre 1917 e 1924, a revolução soviética irá questionar os sistema de trabalhos e exploração no interior da família burguesa, fazendo de tarefas privadas tarefas que deveriam ser de responsabilidade do poder público. A União Soviética irá proliferar creches, restaurantes e lavanderias públicas para liberar as mulheres do trabalho doméstico, modificar a estrutura das relações de gênero, compreendendo que a igualdade social exige fortalecimento do reconhecimento da plasticidade libidinal dos sujeitos.

Ela irá facilitar os divórcios, legalizar o aborto (a URSS será o primeiro país no mundo a adotar o direito de aborto em estruturas públicas e gratuitas), descriminalizar relações homoafetivas, criar pensões mesmo para os ditos filhos ilegítimos, discutir invenções jurídicas para formas não monogânicas de relações afetivas como a “paternidade coletiva”, ou seja, paternidade reconhecida por mais de um homem. Alexandra Kollontai, por exemplo, era uma daquelas que lutavam para que, no comunismo, “o ato sexual seja algo tão simples quanto beber um copo d’água”.

Vale a pena lembrar disso nesse exato momento histórico que é o nosso, no Brasil de 2021. Pois assim, não será surpresa para ninguém que, neste exato momento, o poder fale tanto de sexo. Fale todos os dias, de forma jocosa, sarcástica, ameaçadora, apocalíptica. Fale através de piadas preconceituosas ou de pregações sobre o fim do mundo que estaria a galope através de crianças que “não sabem ler, mas sabem usar camisinha”, como disse o senhor que atualmente ocupa o cargo de ministro da Educação. Ou seja, talvez não seja estranho que ele fale de uma maneira muito similar àquela que os alemães ouviam, na década de trinta do século passado, quando eram exortados a desenvolver aversões contra o que se chamava à época de “bolchevismo sexual” e suas perversões.

Aversões produzidas através de textos que afirmavam, por exemplo: “Nossa mais alta tarefa consistirá em facilitar a formação de uma família aos dois companheiros ligados pela vida. Sua destruição definitiva equivalerá à supressão de toda humanidade superior. Mesmo concedendo à mulher um vasto campo de atividade, nunca deveremos perder de vista que o objetivo último de uma evolução verdadeiramente orgânica e lógica é a formação da família. Ela é a menor unidade mas também a mais importante de toda estrutura do Estado (...) Como o bolchevismo quer aniquilar toda individualidade, ele destrói a família, que imprime ao homem sempre uma marca individual. É por isto que ele detesta todas as aspirações nacionais. Ele quer uniformizar os povos tornando-os dóceis... Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal serão reduzidas a nada enquanto restar no coração do homem uma centelha de religião, pois é na religião que sempre se manifesta a liberdade pessoal em relação ao mundo ambiente”.

Esse era um texto do Partido Nazista alemão que concorria à eleição de 1932. Religião, família, liberdade individual, luta contra a homogeneização: tudo isso em nome de uma sexualidade que assuma “lugares naturais”, que não perverta as formas sociais orgânicas da evolução, a lógica do existente, em suma, toda “humanidade superior”. Essa era, como dizia o panfleto, “nossa mais alta tarefa”. No que se via como a luta contra o comunismo era não apenas luta contra uma nova ordem econômica, mas luta contra femina potencialidade de uma nova circulação do desejo, que de fato ocorrera nos anos iniciais do período revolucionário. Eram corpos insubmissos que procuravam não apenas circular no espaço social, mas mudar a ordem legal e institucional. A lembrança dessa potencialidade era diuturnamente levantada. Era contra ela que o discurso da luta contra o comunismo era vociferado. Ontem e hoje.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.