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Wendy Brown: redefinir a liberdade ou perder a batalha

22 de maio de 2021

Se não trabalharmos na resignificação da liberdade, perderemos esta batalha

Veronica Gago conversa com Wendy Brown, Tinta Limón, 21 de novembro de 2020

A filósofa, cientista política e professora Wendy Brown falou com Verónica Gago na série de debates feministas "Conversas Latino-Americanas". A conversa foi no meio da derrota de Trump e na véspera do lançamento de seu livro "Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente" (Tinta Limón, Traficantes de Sueños e Futuro Anterior, em espanhol, Politéia, em português) e foi organizada pelo Grupo de Investigación Intervención Feminista (GIIF), Instituto Eqüit e Red de Género y Comercio.

A derrota do Trump mas não do trumpismo, os desafios da esquerda e dos movimentos sociais, como entender a evolução reacionária dos setores populares e o conceito de liberdade em disputa são algumas das chaves para a conversa entre Wendy Brown e Verónica Gago. Elas vão além da situação norte-americana, para questionar até mesmo a vida cotidiana pelo mundo afora.

Você começou a escrever este livro quando a administração Trump estava começando e estamos traduzindo e editando este texto no final deste ciclo político, embora saibamos que não é fácil dizer que ele chegou ao fim. O que significa esta idéia das ruínas do neoliberalismo?

Temos que pensar que a expressão "as ruínas" se refere a algo que já é antigo, mas que, no entanto, não está terminado. Eu uso o termo "ruínas" porque ainda vivemos no neoliberalismo, o neoliberalismo não acabou, mas está em um processo de decadência. Muitas coisas estão em colapso ou em ruínas. No lado econômico, o neoliberalismo dispersou e deslocou comunidades, as regulamentações estatais desapareceram e muitas empresas locais foram substituídas por empresas globais. Tudo isso fez com que milhões de pessoas em todo o mundo ficassem em pior situação, precárias. Nunca desde a Grande Depressão a classe trabalhadora americana esteve em uma situação tão fraca e com um futuro tão complicado. Estas são as ruínas econômicas do neoliberalismo.

Mas a ruína é mais do que econômica. É a ruína de uma forma de organização e governo que dá valor à moralidade tradicional como única boa forma de organização: os mercados e a moralidade tradicional. Formas espontâneas e livres de associação, a soberania dos povos, projetos de justiça social e igualdade são todas demonizadas pelo neoliberalismo, que não busca a liberdade, mas procura impor um modelo de engenharia social. O neoliberalismo é uma forma de totalitarismo. Assim, após 40 anos destas políticas econômicas e desta forma de pensamento, temos, em muitas sociedades industrializadas, uma classe trabalhadora que foi reconvertida para formas mais baratas de trabalho, com salários reduzidos. A mesma coisa acontece com a educação, ou com a infra-estrutura, que estão em ruínas. Mas o neoliberalismo também é responsável pela perda de confiança na democracia. É um ataque à democracia em termos de justiça social, redistribuição, igualdade. Enquanto isso, os mercados são subsidiados e a moralidade tradicional é promovida. 

Ao mesmo tempo, o neoliberalismo trouxe novas formas de desigualdade social que não existiam antes. Há muitas maneiras de medir este fenômeno, mas uma que melhor o ilustra é o fato de que somente uma pessoa possui mais riqueza do que 5 bilhões de pessoas. Ou, dito de outra forma, 22 homens têm mais dinheiro do que todas as mulheres na África. Isto indica algo diferente do que estava nos planos originais: o assalto plutocrático às instituições. Esta classe plutocrática, que assaltou os poderes institucionais, constitui um poder antagônico à democracia que utiliza este poder político para garantir sua própria posição. Entretanto, ao mesmo tempo em que faz uso dela, o poder plutocrático quer suprimir a democracia, o que à primeira vista é o oposto do que [os fundadores do neoliberalismo] tinham em mente no início. O que a plutocracia está fazendo hoje é criar uma economia que lhes garanta o monopólio do poder, sem a necessidade de recorrer às instituições da democracia. Isto está acontecendo no Brasil e em outros lugares da América Latina, mas também nos Estados Unidos. Os valores da democracia são substituídos por uma vontade agressiva ao poder. Os plutocratas, em coalizão com as igrejas evangélicas, demonizam a democracia e o estado social, em nome de uma idéia muito particular de liberdade, agressiva e anti-social.

O neoliberalismo também é responsável pela perda de confiança na democracia. É um ataque à democracia em termos de justiça social, redistribuição, igualdade.

A promessa de restaurar um mundo que não existe mais é uma base extraordinária para o autoritarismo. Um mundo estável, seguro, homogêneo, organizado por valores cristãos e patriarcais. Meu argumento é que o neoliberalismo é uma das fontes do surgimento de formas fascistas e autoritárias.

Como funciona esta articulação entre o neoliberalismo e o conservadorismo? Como você estava dizendo, não era algo que estava nos planos originais dos pais fundadores do neoliberalismo. Como é essa combinação que vemos se desenvolver em escala global e que tem na era Trump seu momento de laboratório político? Qual é a particularidade conjuntural dessa convergência entre neoliberalismo e conservadorismo? É algo que você começou a pensar particularmente a partir da era Trump?

O conservadorismo faz parte da arquitetura original do neoliberalismo. Os neoliberais argumentam que a moralidade tradicional deve ser a base da legislação social; que ela deve ser fundada em valores como família, propriedade privada e autoridade. Se existe a primazia do indivíduo, ela está sempre em uma estrutura hierárquica, não em um modelo de igualitarismo. O que chamamos de conservadorismo estava presente desde o início, o que não estava previsto era que passaria de uma forma de organizar a ordem das coisas, para uma abordagem tão agressiva e demagógica, até se tornar uma verdadeira formação neofascista. E acho que isto tem que ser explicado pela falha original do neoliberalismo em compreender que as populações não poderiam ser pacificadas pelos mercados e pela moralidade, mas poderiam ser ativadas de forma agressiva, de uma forma que eu chamo de "dessublimada", que alude a uma certa perda de inibições, à aparência de um caráter anti-social e agressivo que se mostra publicamente em ataques abertos aos outros. Isto é o que não estava presente no início do neoliberalismo. Mercados e moralidade deveriam organizar a sociedade, mas de forma tranqüila e calma e não operar em um plano tão decididamente político.

Quanto à aliança entre a moral de mercado e o conservadorismo cristão no trumpismo, os evangélicos em meu país estão bem cientes de que Trump não é um cristão, não é uma pessoa virtuosa, não é alguém que defende os mesmos valores que eles. Mas eles estão convencidos de que ele lhes foi dado por Deus como agente de sua missão na terra, que é cristianizar a nação, reintroduzir o ensino religioso nas escolas, eliminar o aborto, ou extirpar o feminismo. Eles acreditam em tudo isso e que Trump é o agente do projeto, mas ele não é um deles. E ele trabalhou nisto com muito cuidado. Ele finge rezar, por exemplo, mas todos sabem que Trump não é uma pessoa piedosa. Acho que Bolsonaro também tem muito disso, assim como outras figuras na Europa, como Le Pen, na França, e outras figuras na extrema direita alemã. Mesmo na Hungria, onde o cristianismo é parte do conservadorismo, os líderes da extrema-direita não são necessariamente líderes cristãos.

Dada esta caracterização do conservadorismo como ativismo político, como se pode pensar na expansão deste conservadorismo em escala de massa, mesmo em setores populares de nossas sociedades? Como se combina este conservadorismo com uma afetividade popular de classe trabalhadora que assume este ativismo político em termos conservadores?

Aqui podemos começar a ver algumas diferenças entre as culturas de nossos diferentes países. Um dos fatos da globalização neoliberal nos Estados Unidos é a profunda divisão cultural entre, por um lado, aqueles que se sentem ligados ao mundo, à cultura global, ao cosmopolitismo, à vida urbana - pessoas que se reconhecem como americanas, mas também parte de um mundo, musical, linguístico, artístico, de trabalho, econômico, que está além das fronteiras do país - e, por outro lado, aqueles que eu chamaria de "o meio do país", que podem ser chamados de "suburbanos", "ex-urbanos", mas também "rurais". Este grupo se sente profundamente alienado de todo este aspecto da cultura contemporânea, mas também deste aspecto do que o neoliberalismo tem feito, que é derrubar barreiras nacionais, provocar o movimento de pessoas ao redor do mundo através da migração, e nos tornar um país muito mais misto - em poucos anos, os brancos serão uma minoria neste país, a América será o que chamamos de país minoritário. Isto é muito ameaçador para aqueles que se sentem terrivelmente negligenciados em todos os aspectos que já falamos. Eles estão despencando economicamente, sentem-se social e culturalmente desprezados ou ridicularizados por seus estilos de vida, por seus hobbies, por seus interesses ou por sua falta de educação. E, é claro, Trumpism cultivou este sentimento. Dirigiu-se a eles como se sua ignorância e sua rejeição do cosmopolitismo, da inteligência, do intelectualismo, das idéias, da cultura, fossem algo bom, algo valioso. O próprio Trump personificava estes valores. 

Ao fazer isso, ele reforçou aquele conservadorismo refratário de um mundo mais aberto, mais diversificado, mais mutável; ele reforçou a idéia de que é possível confinar-se àquelas vidas fechadas de subúrbios brancos. Mesmo que deixemos o cristianismo de lado, por enquanto, podemos nos limitar apenas a essas vidas suburbanas brancas fechadas e chamar isso de "América", e rejeitar tudo o mais. Este sentimento foi muito intensificado, por um lado, pelo conservadorismo, mas também pelos efeitos da desvalorização da educação por parte do neoliberalismo. Para o neoliberalismo, a educação é um treinamento para o trabalho; não a aborda como um treinamento que deve esclarecer sobre a humanidade, o mundo, a natureza ou a cultura. Ela simplesmente trata a educação como uma forma de desenvolver o capital humano, e esta perspectiva foi posta em prática através do desinvestimento no ensino público, especialmente no ensino superior, mas as escolas também foram afetadas, e sua qualidade diminuiu muito. Isto agrava o problema da classe trabalhadora e da população de classe média que não vive nos centros urbanos, que não conhece o mundo, não quer conhecer o mundo e se sente ameaçada pelo mundo. E isto, por sua vez, exacerba o conservadorismo, o anti-intelectualismo, a xenofobia e tudo mais.

Trump reforçou a idéia de que é possível limitar-se àquelas vidas suburbanas brancas fechadas.

Há uma discussão sobre as expressões "fascismo", "novos fascismos", "tendências neofascistas". Você acha correto, em termos de usos sistemáticos e políticos, caracterizar a situação atual, em relação a esta evolução que você acaba de fazer da relação entre conservadorismo e neoliberalismo?

Estou em desacordo comigo mesmo em relação a isto. Em parte porque o termo "fascismo" é tão carregado de significado em relação à Segunda Guerra Mundial. Penso que estamos em uma formação neofascista, se com isso queremos dizer a mobilização do poder do Estado para definir a nação e o povo de forma homogênea e para lançá-los atrás de um projeto específico que é discriminatório, violento, militarizado. Tudo isso está lá. Mas, ao mesmo tempo, a razão pela qual eu uso outro termo, "liberalismo autoritário", é porque as liberdades civis nos Estados Unidos estão no centro do projeto neofascista neste momento. É muito importante que vejamos como a idéia de liberdade é mobilizada pela direita contra a esquerda, como uma forma de construir apoio para este - e agora eu o chamo assim - movimento neofascista. É complicado porque, se falamos de fascismo, imaginamos um estado muito forte e falta de liberdade individual; no entanto, aqui temos algo diferente. Por um lado, sim, temos no trumpismo um regime de propaganda; temos também a mobilização do etnonacionalismo branco para a construção de um projeto nacional muito específico. Mas, por outro lado, a liberdade é o cartão de visita deste projeto e é usada para envergonhar a esquerda. Acho que se não prestarmos atenção a isto, não vamos entender o que há de distinto neste regime e por que ele é tão bem sucedido. Especialmente nos Estados Unidos, onde a liberdade individual está há tanto tempo na raiz de seu credo, mesmo que não tenha sido estendida às minorias subjugadas do país, mulheres ou pessoas LGBTQ. Mesmo que não tenha sido universalizada, ela está no coração de nosso credo. Portanto, prefiro o termo "liberalismo autoritário" porque acho que ele descreve mais precisamente o que temos hoje e pelo que temos que lutar. Mas não estou dizendo que não há uma dimensão fascista em tudo isso. Há e, de fato, estamos vendo isso na recusa de Trump em deixar o poder, em seus esforços de desinformação e propaganda, em seu esforço de incitamento à violência e não descartando a possibilidade de usar a força militar para permanecer no poder por um pouco mais de tempo. Mas eu acho que o fascismo é apenas uma dimensão, não é tudo.

A palavra "derrota" se encaixa em Trump e ao mesmo tempo parece grande demais se se referir ao trumpismo, é verdade?

O trumpismo não foi derrotado. Trump foi derrotado e temos que celebrar este momento. E nós o celebramos. As danças nas ruas eram extraordinárias. Nós americanos não saímos para dançar assim, mas desta vez o fizemos, fizemos algo que para você é mais comum, dançamos nas ruas. Celebramos e dançamos porque esta figura específica do neofascismo, do liberalismo autoritário, foi expulsa do cargo. Ele vai reivindicar e tentar tudo, mas terá que deixar seu gabinete presidencial. No entanto, o trumpismo não foi derrotado, 70 milhões de pessoas, ou mais, votaram em Trump e muitas delas estão zangadas por ele não ter vencido. Eles têm medo, estavam convencidos de que o novo regime vai destruir suas vidas, seus valores, suas igrejas, e se agarram ao pouco que têm. Toda a formação antidemocrática, racista e patriarcal que Trump ungiu e mobilizou ainda está muito viva. Ela ainda está viva não só por causa de sua base, mas também porque Trump tem, agora, um enorme controle sobre o partido da direita. E não posso mais chamá-lo simplesmente de "conservador", é um partido de direita. O partido em si é antidemocrático. É literalmente, eles estão tentando derrubar os votos, eles estão tentando remanejar os distritos eleitorais para que possam manter o controle do país, mesmo com uma minoria dos votos. E eles estão em uma posição muito boa para fazer tudo isso. Portanto, temos um partido trumpista e uma base trumpista que não foi derrotada. E temos o Trump, que estamos emocionados por ter deixado a presidência. No entanto, não há muito que o regime Biden possa fazer, com um Senado Republicano e uma Suprema Corte nas mãos da direita dura, então este não será o ensaio para uma alternativa. Além disso, há o problema de que o que Biden representa é um retorno ao centro, não uma saída para o caos do neoliberalismo.

O trumpismo não foi derrotado. Trump foi derrotado e temos que celebrar este momento. E nós o celebramos. As danças nas ruas eram extraordinárias. Nós, americanos, não saímos para dançar assim, mas desta vez saímos.

Que forma de articulação ou organização política você imagina que este trumpismo social assumirá, agora sem a liderança presidencial do Trump?

Há diferentes dimensões para isto. O trumpismo não é uma formação unitária, de tamanho único. Há o Alt-Right, que eu acho que vai continuar a agir como tem feito. Eles são neonazistas, fascistas, racistas extremos que, sempre que puderem, tentarão provocar rupturas e ataques. Eles têm estado surpreendentemente calmos nas últimas semanas, e tenho certeza de que estão se reagrupando e repensando sua estratégia, mas eles não vão embora. Então temos aqueles que Trump mobilizou para acreditar que a eleição foi roubada, que não estão necessariamente na direita dura. Fico feliz em ver que este número está caindo. Provavelmente apenas metade do Partido Republicano hoje acredita que a eleição foi manipulada, mas, mesmo assim, isso ainda é um monte de eleitores. E aqui eu congelo um pouco, porque, sem dúvida, Trump vai mobilizá-los para retomar a Casa Branca; sem dúvida, eles já têm vitórias no Senado e nas legislaturas locais - a extensão das vitórias republicanas nas eleições locais é assustadora - por isso, eles já têm uma boa base a partir da qual podem operar. Penso que a grande questão é se a ala esquerda e o centro dos democratas podem se unir para construir uma alternativa mais poderosa e convincente. Esta é a pedra angular de toda a situação neste momento. A esquerda não pode romper, mas o centro também não pode jogar a esquerda para fora do trem. Porque é lá que estão a juventude, o Vidas Negrar Importam, é lá que está o ativismo LGBTQ, o MeToo... É lá que está todo o ativismo. E se eles não receberem nada desta administração, se forem escondidos, ou negados, como uma empresa vergonhosa, não vão apoiar um candidato democrata novamente, e não vão participar da política eleitoral novamente. Esta é a primeira vez em décadas que a esquerda participa de forma tão ativa na política eleitoral. Muitas pessoas da esquerda já votaram antes, mas esta é provavelmente a primeira vez desde os anos 30 que a esquerda se engaja na política eleitoral como se ela tivesse um futuro para um projeto de esquerda, social-democrata ou socialista. Se isto for subtraído do Partido Democrata - que é o que eu acho que alguns centristas querem fazer - o Partido Democrata está acabado. Se este acordo for quebrado, o Partido Democrata estará liquidado.

A esquerda não pode se separar, mas o centro também não pode se dar ao luxo de jogar a esquerda para fora do trem. Porque é onde estão os milênios, é onde está a Matéria Vive Negra, é onde está o ativismo LGBTQ, Eu Também... É onde está todo o ativismo.

Como você avalia o impacto da mais recente mobilização da Black Lives Matter, mas também dos movimentos feministas e LGBTQI+, sua capacidade de instalar um termo como "racismo estrutural" na campanha, que conseqüências isso teve? Como eles jogam sua força de agora em diante?

Esta é a questão, no momento. Temos, por um lado, a Black Lives Matter, as feministas, os movimentos de direitos dos migrantes, também a Justiça Climática, Extiction Rebelion e todos esses tipos de movimentos. Há uma grande variedade de ativismo que se mobilizou para a eleição, mas imediatamente compreendeu que eles têm que voltar ao seu trabalho de movimento social. Não vamos conseguir nada de dentro [do governo], a menos que os movimentos continuem construindo. Os movimentos sociais de esquerda, os populismos de esquerda não podem permitir que toda a energia dos movimentos sociais seja desviada para a política legislativa e eleitoral, onde ela seria neutralizada e diluída. Ao invés disso, os movimentos têm que voltar às ruas, têm que voltar à organização e à organização das pessoas que ainda não estão participando. Por exemplo, a população latina ao longo da fronteira do Texas, que apoiou fortemente Trump - em parte, porque são famílias de segunda e terceira geração que, em muitos casos, trabalham para o ICE, nossa agência de deportação, ou são empresários, ou têm negócios próprios - foram organizadas e mobilizadas pelo Partido Republicano, apelando para a idéia de liberdade, valores sociais conservadores e medo do que os democratas iriam fazer com eles. Enquanto isso, os movimentos sociais e o Partido Democrata não chegaram nem perto. Os movimentos sociais precisam crescer, eles precisam sair de suas bolhas e se organizar. Estou falando de organização convencional, o tipo de organização que sai do Facebook e das redes sociais e sai para encontrar seres humanos em seus bairros, em suas casas, em suas comunidades, onde essas pessoas vivem e, mobilizando-as para mundos melhores, torna-se parte dessas comunidades. Se isso não acontecer, os movimentos sociais continuarão a ser um estímulo eficaz para a política eleitoral, mas eles não terão realmente o poder de afirmar suas demandas, nem crescerão além da população urbana que atingem hoje.

Você diria que o fantasma do socialismo que foi levantado na campanha contra a idéia de liberdade foi realmente eficaz, que tem a capacidade de realmente desafiar, ou é mais uma coisa da mídia?

Penso que o discurso contra o socialismo foi utilizado de forma muito eficaz pela direita. Um dos dons do neoliberalismo [ao conservadorismo] foi continuar a demonizar o socialismo e a social democracia, muito além do "espectro" do comunismo representado pela União Soviética e até mesmo pela China. A própria idéia, por exemplo, de uma política estatal responsável em torno do Covid-19 que teria imposto o distanciamento social, o uso de máscaras e os fechamentos necessários para conter o vírus foi acusada de ser socialista, de ser totalitária. Reações semelhantes haviam sido suscitadas pelos esforços para estabelecer um Programa Nacional de Saúde que garantisse o acesso a serviços para toda a população do país, que também foi rotulado de socialista e totalitário. E estas reações não vêm do velho discurso da Guerra Fria, elas vêm da demonização neoliberal do Estado social. Estou pensando em comunidades onde a sensação de precariedade já era muito grande, onde a idéia de que o Estado obrigaria você a fechar seu negócio por um mês, ou fechar a escola por três meses para conter o vírus, pode parecer catastrófica. A ala direita chama essas ações do Estado de "socialismo" e responde a elas dizendo "precisamos de liberdade", "precisamos abrir nossos negócios", "todos temos o direito de trabalhar".  Acho que tudo isso teve muito poder de ressonância e mobilizou muitos eleitores do Trump.

No livro você fala de alimentar perspectivas de esquerda. Como se poderia repensar uma noção de liberdade que não se conjuga em termos de uma liberdade ingênua ou rapidamente capturada em termos liberais e que não é absorvida pela idéia de liberdade que o neoliberalismo conseguiu unir com a idéia de segurança?

Qual seria, então, a forma de liberdade capaz de escapar de ambos? O mais importante para os norte-americanos - e eu não acho que seja necessariamente o mesmo desafio que os brasileiros, argentinos ou chilenos enfrentam, porque você tem uma tradição mais robusta de socialismo e social-democracia, tanto intelectualmente quanto em um nível mais popular - é que a esquerda pode explicar e circular, em termos muito simples, uma noção de liberdade que se conecta com o coração do socialismo. Uma noção de liberdade que inclui estar livre da carência, estar livre do desespero e da precariedade, estar livre do desamparo dos sem-teto. "Liberdade de", mas também "liberdade para": liberdade para realizar nossos sonhos, não apenas para sobreviver; liberdade para escolher, não simplesmente para fazer um aborto ou com quem dormir - o que é importante - mas também liberdade para construir vidas, para construir comunidades e mundos nos quais todos nós queremos viver. Se não trabalharmos imediatamente na re-significação da liberdade, para torná-la um conceito que afirma as visões da esquerda, para afastá-la desse tipo de iteração libertária, agressiva, anti-social e anti-estatal, perderemos essa batalha. Porque muitas dessas pessoas de quem tenho falado, que vivem na precariedade, sentem que a liberdade é a única coisa que lhes resta, é a única coisa que pensam que têm. Elas se sentem abandonadas e descartadas; com tanta coisa acontecendo no mundo, elas se sentem bombardeadas por poderes que não compreendem; elas sentem que são objeto de desprezo por um mundo mais sofisticado; e se agarram ao que chamam de liberdade, mas temos que re-significar essa liberdade. A liberdade tem que codificar não apenas a solidariedade social e o bem-estar social, mas também a capacidade de viver vidas em um ambiente sustentável e protegido, o que hoje está em tremendo perigo. É assim que a liberdade nos preocupa. E não é bom dizer que recuperar a liberdade é tirar a bota das costas, ou falar de liberdade apenas como abolicionismo, ou liberdade como sinônimo de se livrar da polícia. Pode ser assim, mas isso não vai seduzir ninguém. O que seduz é a liberdade como algo com o qual se constrói a própria vida.

Tradução para o espanhol e transcrição: Carla Maglio. Edição: Tinta Limón. Para ver a apresentação completa: https://www.facebook.com/watch/?v=2758749757717843