Em O anti-Édipo, Mil Platôs, e O que é a filosofia?, Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolvem o seu pensamento em diversos planos: no cinema, na literatura, na filosofia de Kant e Bergson, entre outros. Com o tempo, e como se fossem um conjunto de matrioskas, a recursão entre o dispositivo teórico dos franceses e o cinema e o teatro, a música eletrônica, a dança e as letras não parou de se multiplicar.
Do mesmo modo, os conceitos que foram divulgados em seus livros ainda ressoam tanto na psicologia e na crítica cultural, como na análise econômica, na sociologia e nos pós-humanismos críticos. Não há limites para esse pensamento flexível e adaptável às diversas realidades do século XXI.
Em seu último livro, Cómo imponer un límite absoluto al capitalismo? (Tinta Limón, 2021), o japonês Jun Fujita Hirose, professor da Universidade Ryukoku (em Quioto) e crítico, faz o caminho inverso. Retoma a leitura de Deleuze e Guattari com o objetivo de restituir e atualizar sua proposta política, o devir-revolucionário como estratégia para precipitar o fim do capitalismo.
Para isso, mergulha nas três táticas desenvolvidas por Deleuze e Guattari, o devir-fora-classe (anti-Édipo), o devir-minoritário (Mil Platôs) e o devir-animal (O que é a filosofia?). Sobre isso, conversou com a revista Ñ em uma série de mensagens eletrônicas que conectaram dois extremos do planeta.
Facundo Carmona entrevista Jun Fujita Hirose, Clarín-Revista Ñ, 30 de setembro de 2021. A tradução é do Cepat.
Em que medida o pensamento de Deleuze e Guattari é pujante para pensar o capitalismo contemporâneo?
A primeira coisa importante a ser levada em conta é o fato de que, durante seu quarto de século de colaboração, a partir de fins dos anos 1960, Deleuze e Guattari escreveram três livros e não apenas um sobre como derrubar o capitalismo. Voltaram a levantar a mesma pergunta a cada dez anos, atualizando em cada momento sua análise do capitalismo, de acordo com o seu desenvolvimento.
Em sua primeira colaboração, o anti-Édipo (1972), preparada na época em que a linha de conflito estava traçada pelo eixo Oeste-Leste, os filósofos argumentaram que o processo revolucionário começa quando os proletários entram em “devir-fora-classe” para além de sua luta pelo interesse de classe.
Em Mil Platôs (1980), escrito na época em que o eixo principal se deslocava do Oeste-Leste ao Norte-Sul, falaram de um novo protagonismo, a saber, o das minorias que entram em “devir-minoritário” para além de suas lutas pelo reconhecimento como subconjuntos particulares da maioria.
Em sua última obra, O que é a filosofia? (1991), publicada quando o eixo Oeste-Leste se apagou completamente, fazendo do Norte-Sul o único eixo vigente, afirmaram que os que vivem em condições privilegiadas devem “devir-animal” para além de seu humanitarismo, diante das pessoas pobres submergidas em situações assimiláveis às de animais moribundos.
O devir-fora-classe, o devir-minoritário e o devir-animal são as três formas de “devir-revolucionário” que Deleuze e Guattari propuseram, sucessivamente, em função das etapas de desenvolvimento do capitalismo. Ao seguir sua esteira, hoje podemos nos perguntar: como está organizado o capitalismo em sua atual etapa de desenvolvimento? E qual é a forma de devir-revolucionário correspondente?
Qual a sua opinião a respeito das propostas de crescimento zero? Está na hora de parar? Ou significaria uma catástrofe econômica que aprofundaria a pobreza existente?
Primeiro, gostaria de especificar: o crescimento econômico zero ou, mais precisamente, a tendência a ele, é um fenômeno endógeno do capitalismo em sua atual etapa de desenvolvimento. O desmatamento em grande escala da Amazônia em curso, sob a presidência de Jair Bolsonaro, por exemplo, não é um sinal de que o crescimento caminha bem, mas que a economia capitalista hoje precisa de muito mais terra, muito mais soja, muito mais carne do que antes, e organiza o constante consumo excessivo de carne por meio das técnicas de marketing mais agressivas.
O problema fundamental com o qual o capitalismo tropeça, desde o final dos anos 1970, é que a inovação sofre ganhos sempre decrescentes. Os políticos e intelectuais da esquerda, dos marxistas ortodoxos aos promotores da teoria monetária moderna (TMM), passando pelos keynesianos, unanimemente argumentam que seriam as políticas neoliberais que prejudicam o crescimento, destroem empregos e precarizam a vida das pessoas. Mas, na realidade, é o contrário. É a queda do crescimento em sua crise estrutural que leva os capitalistas a reivindicar as políticas neoliberais.
Se a inovação vem condenada por uma baixa eficácia, já não resta ao capital industrial mais do que dois caminhos para continuar se valorizando: jogar com as coisas já existentes e jogar com o dinheiro. Ao seguir o primeiro caminho, o capital industrial recorre, por um lado, à privatização e a todos os tipos de desregulamentação e, por outro, adota a obsolescência programada e o neuromarketing como as principais estratégias mercadotécnicas. Ao passo que, na segunda via, o capital industrial se financeiriza. Primeiro com a flexibilização da taxa de câmbio, a partir de inícios dos anos 1970, e depois com a expansão quantitativa, a partir de finais dos anos 2000.
Como a esquerda, o progressismo e a social-democracia reagem frente a esses desafios?
Os movimentos que clamam pelo “crescimento zero” ou “decrescimento” nos convidam, na realidade, a viver com o crescimento econômico zero que já existe em latência, há mais de cinquenta anos, e a criar novos agenciamentos coletivos não capitalistas, dado que o crescimento zero, literalmente entendido, não é outra coisa a não ser o fim do capitalismo. Sua luta não é apenas contra as forças neoliberais, mas também contra as de esquerda, assim como contra as da chamada “transição verde e digital”.
São as forças de esquerda que nos ameaçam sem parar ao nos dizer que a queda do crescimento “aprofundaria a pobreza existente”, e nos enganam com a promessa vazia de que poderíamos restituir o “crescimento sadio” baseado na inovação e nas políticas fiscais expansivas, financiadas pela emissão de títulos ou pela criação de dinheiro.
De que maneira é possível compreender a transição verde para energias renováveis?
No sentido de que são as forças de transição verde e digital que impulsionam os megaprojetos neoextrativistas na América Latina e em outras regiões do Sul Global, atuando em conivência com os governos locais, sejam de direita ou de esquerda. De fato, “transição verde e digital” nada mais é do que a denominação metonímia de um projeto de mudança muito mais amplo: dupla transição simultânea, de potência hegemônica e de matéria central, da economia capitalista mundial.
Trata-se de uma “criação destrutiva”, em escala mundial, que consiste em destruir ou depreciar os velhos capitais do regime estadunidense e petroleiro e em criar ou apreciar, ao mesmo tempo, os novos capitais do regime chinês e de metais raros. A crise da Covid-19 não favorece apenas a financeirização do capital industrial mediante uma expansão quantitativa desmedida, mas também essa transição de regime de acumulação do capital.
No livro, há um espaço dedicado à ideia do devir mulher, ao feminismo, como via de acesso ao extrativismo neocolonial. Que consequências enxerga nas lutas dos coletivos de mulheres, raça e gênero?
Quem realizou as greves mais multitudinárias e eficazes na Argentina, desde meados dos anos 2010? Indubitavelmente, as mulheres. O que isso significa? Significa que o feminismo atua hoje como o movimento social mais potente e que o trabalho feminino se torna o paradigma do trabalho contemporâneo. Isto é um ponto absolutamente fundamental para todas as análises marxistas revolucionárias de hoje. Já não é possível ser marxista sem ser feminista.
Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari afirmam que “todo devir começa e passa pelo devir-mulher”. Por quê? Porque a cada luta em que as mulheres se comprometem pedem que se faça “um esforço a mais”, com o qual a luta se converteria em processo de devir-revolucionário. Trata-se de tal “esforço a mais”, por exemplo, quando as mulheres indígenas e afrodescendentes na América Latina dizem: “Não é possível descolonizar sem despatriarcalizar”, em meio às lutas contra o colonialismo interno neoextrativista.
É um convite ao devir-minoritário por meio do devir-mulher, para além de se reterritorializar sobre um subconjunto da maioria. Acontece o mesmo quando as mulheres palestinas dizem: “Não há pátria livre, sem mulheres livres”, em meio à luta pela libertação nacional contra o colonialismo israelense.
Já os homossexuais bonaerenses tinham como lema “Sem libertação sexual, não haverá libertação social”, quando tentaram se envolver na esquerda peronista, em inícios dos anos 1970. É sabido, por certo, que esta ficou totalmente incapacitada de entender os homossexuais e de fazer o “esforço a mais” levantado por eles. Assim, a população argentina deixou escapar uma excelente oportunidade de devir-revolucionário. Acrescento que Néstor Perlongher, uma das principais figuras da Frente de Libertação Homossexual, foi um grande leitor de Deleuze e Guattari.
Que significa ser de esquerda hoje? O que envolve o devir de esquerda?
Em O abecedário de Gilles Deleuze, documentário filmado em finais dos anos 1980, o filósofo explica que não ser de esquerda é perceber a partir de si mesmo, ao passo que ser de esquerda é “perceber primeiro o horizonte” e “perceber no horizonte”. Trata-se de uma revolução copernicana.
Embora seja verdade que a percepção a partir de si mesmo se expressa típica e explicitamente nos lemas como “America First”, de Donald Trump, ou “Brasil acima de tudo”, de Jair Bolsonaro, não é menos verdade que em nada se reduz a tais casos extremos, mas atravessa todos os governos, incluídos os denominados “governos de esquerda”.
A revolução copernicana de percepção inverte a subordinação do desejo ao interesse. Quando alguém se percebe no horizonte, necessariamente deseja para além de seu interesse, inclusive contra ele. Isso é devir-revolucionário.
Em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari dizem: “A sociedade capitalista pode suportar muitas manifestações de interesse, mas nenhuma manifestação de desejo”. Ou seja, é a manifestação do desejo que constitui o limite externo absoluto do capitalismo, ao passo que todas manifestações de interesse, por mais radicais que sejam, não são para ele outra coisa que os seus limites internos relativos.
Talvez não seja correto falar em “ser de esquerda”. Somos seres profundamente interessados. Não somos de esquerda. Não podemos. Mas, justamente essa impossibilidade de ser de esquerda nos força a devir-esquerda, se a colocamos como problema a ser revolvido por nós mesmos.