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A relação com o socialismo na trajetória de James Baldwin

O brilhante intelectual afro-americano passou da adesão à política radical na adolescência a descartar o socialismo como doutrinário. No final da vida, inspirado pelos Panteras Negras, estava pronto de novo para se afirmar novamente como socialista

20 de janeiro de 2021

Arvind Dilawar, Esquerda.net, 20 de janeiro de 2021

No início dos anos 1940, James Baldwin estava na sua adolescência e vivia em Nova Iorque quando aderiu à Liga Socialista dos Jovens, um ramo do Partido Socialista da América. A sua primeira incursão na vida política formal seguiu-se a anos de atividade informal, incluindo agitação política. “Aos 13, fui um convicto companheiro de viagem”, escreveu na sua biografia política No Name in the Street. “Desfilei no Dia do Trabalhador, levando faixas, cantando, East Side, West Side, por toda a cidade, Queremos que os senhorios deitem os bairros de lata abaixo!” A atração de Baldwin pela política de esquerda era prática, baseada na sua experiência de crescer nos apartamentos de Harlem. “Não sabia nada acerca do comunismo”, escreveu, “mas sabia muito acerca de bairros de lata.”

A auto-conceção de Baldwin como um socialista em formação estava muito longe da forma como descreveria mais tarde a sua relação com a esquerda. “A minha vida na esquerda não tem interesse nenhum”, escreveu na introdução de The Price of the Ticket, uma compilação de trabalhos de não-ficção. “Não durou muito. Foi útil porque aprendi que talvez seja impossível doutrinar-me.”

O que aconteceu? Ao ler os seus escritos, torna-se claro que era a incapacidade sentida do socialismo que lhe era contemporâneo em lidar com a questão racial que o afastou do movimento, fazendo com que o outrora inspirado agitador passasse a criticar a política da esquerda como mera doutrinação. Baldwin regressaria ao socialismo – mas o regresso a casa demoraria trinta anos e seria preciso o advento de uma nova forma de política de esquerda, incorporada nos Panteras Negras.

As vítimas do mundo”

Nascido em Nova Iorque a dois de agosto de 1924, Baldwin cresceu em Harlem, que se tinha tornado num centro da vida cultural negra. A grande migração de afro-americanos em fuga do Sul, dominado pelas políticas Jim Crow, para as cidades do Norte como Nova Iorque tinha começado na década anterior, preparando o palco para a Renascença do Harlem.

Estas florescentes arte e cultura afro-americana foram cerceadas pela Grande Depressão, que afundou o bairro na pobreza que marcou a infância de Baldwin. Em jovem, passou grande parte do seu tempo a tomar conta dos seus oito irmãos mais novos, enquanto a mãe limpava as casas das mulheres ricas e o padrasto pregava a um rebanho cada vez mais pequeno de fieis batistas.

A introdução de Baldwin ao socialismo foi feita muito provavelmente por uma professora branca, Orilla “Bill” Miller, que também apoiou as suas precoces inclinações literárias. Em The Devil Finds Work, o seu livro biográfico e de crítica de cinema, Baldwin atribui-lhe o mérito de “sugerir-me até que ponto as disposições social e económica são responsáveis pelas (e das) vítimas do mundo.”

Miller não apenas teve um interesse ativo na educação política e literária de Baldwin mas procurou defender todos os seus estudantes contra as depredações de uma sociedade racista, capitalista, incluindo contra senhorios, lojistas e até a polícia – todos os quais, nota Baldwin, odiavam Miller pela sua agitação. Recordava um episódio com prazer, quando Miller levou os seus (presumivelmente negros) alunos à esquadra de polícia para comer gelados (presumivelmente reservados para crianças brancas). Miller recusou voltar atrás ao enfrentar os polícias brancos que acabaram por desistir e entregaram os doces.

A experiência pessoal de Baldwin com a pobreza foi inflamada por Miller, inspirando-o a tornar-se ativo politicamente. Apesar de não haver registo da participação de Baldwin na Liga Socialista dos Jovens, os seus escritos contêm referências às suas atividades políticas da altura. Somando-se ao já citado desfile do Dia do Trabalhador, em que denunciou os senhorios, Baldwin ajudou a organizar greves às rendas junto com o seu melhor amigo, outro jovem negro socialista chamado Eugene Worth. Baldwin descreve-o como um crente muito mais ardente do que ele. Apaixonado por uma camarada socialista que era branca, mas, rejeitado pela família dela, saltou da ponte George Washington para a morte em 1946.

Oportunidades escondidas”

Se foi o apelo aos pobres que atraiu Baldwin para o socialismo, foi a marginalização da luta contra o racismo americano que o afastou – mais evidente na estratégia da Internacional Comunista de Frente Popular.

Na sequência do falhanço em estancar o fascismo na Europa, o Comintern começou a advogar uma coligação anti-fascista entre esquerda e liberais em 1935. Como parte desta estratégia, as organizações apoiadas pelos comunistas nos Estados Unidos receberam diretivas no sentido de abandonar os seus esforços anti-racistas em nome de apoiar a guerra a todo o custo – uma decisão que deixou os setores radicais negros justificadamente amargurados. Subitamente, a alegação de que os comunistas tinham segundas intenções quando faziam agitação junto dos trabalhadores negros ou quando apoiavam negros injustamente acusados, como os Scottsboro Boys, parecia ter razão.

Foi assim que Baldwin descreveria o assunto décadas mais tarde, num discurso de 1960 intitulado “O papel do Escritor na América” (republicado como “Notes for a Hypothetical Novel” em Nobody Knows My Name), onde insistiu que o caso Scottsboro deu ao “Partido Comunista oportunidades escondidas”. Apesar da Frente Popular ser principalmente um esforço comunista, muitos outros socialistas apoiavam igualmente a estratégia, provocando a ira de Baldwin.

Apesar de se descrever ocasionalmente como anti-comunista, Baldwin nunca apoiou o McCarthyismo ou qualquer outro episódio americano da histeria da Guerra Fria. Em No Name in the Street, conta o seu regresso a Nova Iorque em 1952, depois de quatro anos em Paris, e como descobriu uma cidade “em que quase toda a gente estava sem graciosidade a procurar abrigo, na qual amigos estavam a lançar amigos aos lobos e a justificar a sua traição com discursos aprendidos (e tomos tremendos) sobre a traição do Comintern.”

Em vez de o lançar para os braços dos anti-comunistas, o McCarthyismo apenas deu a Baldwin uma antevisão da hipocrisia liberal com a qual se familiarizaria durante o auge do Movimento dos Direitos Civis:

“O pretexto para tudo isto, claro, era a necessidade de “conter” o comunismo, que, diziam-me sem corar, era uma ameaça ao mundo “livre”. Não lhes disse em que medida este mundo livre me ameaçava, a mim e a milhões como eu. Mas questionei-me como é que a justificação da tirania descarada e sem sentido, a qualquer nível, poderia operar no interesse da liberdade e questionei que urgências interiores, não reveladas por estas pessoas, tornaram necessário um delírio tão pouco atraente.”

Depois da crise dos mísseis cubanos em 1962, quando a precipitação dos EUA quase levou a uma guerra nuclear, Baldwin criticou os Estados Unidos pela sua incessante perseguição de opositores como comunistas e defendeu o direito dos povos à auto-determinação. No ano seguinte, Baldwin fez um discurso intitulado “The Negro Child – His Self-Image” (republicado como “A Talk to Teachers”), no qual defende que os Estados Unidos “são ameaçados desesperadamente não por Khrushchev, mas a partir de dentro”, referindo-se ao falhanço do país em cumprir as exigência do Movimento dos Direitos Civis. Baldwin comparou as alucinações do supremacismo branco com as do anti-comunismo:

“Foi o homem branco americano que perdeu há muito a sua ligação à realidade... tendo criado este mito acerca dos negros e acerca da sua própria história, criou mitos acerca do mundo de forma a, por exemplo, ficar espantado que algumas pessoas preferiram Castro, espantado que haja pessoas no mundo que não se escondem quando ouvem a palavra “comunismo”, espantado que o comunismo seja uma das realidades do século que não vai ser ultrapassada fingindo que não existe.”

Socialismo do tipo “Yankee Doodle Type”

Apesar de Baldwin não ter sido apanhado pela histeria do McCarthyismo, demorou vários anos a voltar a aderir à política socialista. Foi preciso que os Panteras Negras, que fundiram anti-capitalismo com uma forma distinta de anti-racismo, o puxassem de volta.

O apoio de James Baldwin aos Panteras Negras, na sequência do seu envolvimento mais destacado no Movimento dos Direitos Civis, fez-lhe merecer ter um impressionante dossier de 1.884 páginas no FBI.

Fundados por Huey Newton e Bobby Seale e, 1966, o Partido das Panteras Negras, impulsionava a auto-defesa dos afro-americanos, particularmente contra a polícia, assim como programas imediatos de apoio mútuo, reformas radicais e auto-determinação negra. Comentando os Panteras em No Name in the Street, Baldwin foca-se nas patrulhas armadas para vigilância da polícia e na impiedosa resposta do Estado. Mas também descreve – e identifica-se com – os objetivos socialistas do partido:

“Huey acredita, tal como eu, na necessidade de implementar uma forma de socialismo neste país, aquilo a que Bobby Seale chamaria provavelmente um socialismo “tipo Yankee Doodle”. Isto significa um socialismo indígena, formado por e respondendo às necessidades reais do povo americano. Esta não é uma posição doutrinária, não importando o quão os Panteras possam parecer glorificar Mao, ou Che, ou Fanon... A necessidade de uma forma de socialismo é baseada na observação de que os atuais poderes económicos condenam a maior parte do mundo à miséria; que a forma de vida ditada por esses poderes é estéril e imoral; e finalmente que não há esperança de paz no mundo enquanto estes se mantiverem.”

Em 1970, Baldwin já se tinha instalado no sul de França, onde iria sucumbir a um cancro no estômago em 1987, deixando-o a meio mundo de distância e com relativamente pouco tempo para fazer o que podia ter feito com este recém-descoberto socialismo.

Já tinha vivido as dificuldades do Movimento dos Direitos Civis, encontrando-se, apoiando e louvando Martin Luther King Jr, Malcolm X e Medgar Evers. Baldwin agora assumiu uma postura semelhante ao defender os Panteras Negras quando foram sistematicamente presos (Newton em 1967, Seale em 68, Eldridge Cleaver em 68, Angela Davis em 70) ou mortos (Bobby Hutton em 68, Fred Hampton em 69) pelo Estado. Em 1968, foi o anfitrião de uma festa de aniversário, organizada pelos Panteras Negras para o então preso Newton, que atraiu centenas de apoiantes. Em 1970, também escreveu uma carta aberta, publicada na New York Review of Books, à então encarcerada Davis, onde se lia: “Temos lutar pela tua vida como se fosse a nossa própria vida.”

Em 1972, foi questionado sobre se os Estados Unidos alguma vez seriam socialistas. A sua resposta tornava claro o profundo impacto que os Panteras Negras tinham tido em si, assim como na forma particular de política socialista que agora defendia:

“Tem de se ser muito cuidadoso com o que se quer dizer por socialismo. Quando eu uso a palavra, não estou a pensar em Lenine por exemplo. Não tenho quaisquer modelos europeus na cabeça. Bobby Seale fala de um socialismo tipo Yankee Doodle. Sei o que ele quer dizer que diz isso. É um socialismo criado a partir da necessidade indígena das pessoas que aqui vivem. Assim, um socialismo implementado na América, se e quando o fizermos – penso que temos de dizer quando o fizermos – será um socialismo muito diferente do chinês e do cubano... O preço de qual socialismo verdadeiro é a erradicação daquilo a que chamamos o problema racial.”

Arvind Dilawar é escritor e editor. Publica em revistas e jornais como a Newsweek, o Guardian e a Al Jazeera. Texto publicado na revista Jacobin. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.