Debora Pradella, Curitiba, 28 de setembro de 2020
O aborto inseguro está entre as maiores causas de mortalidade materna, especialmente em países em desenvolvimento onde a prática é proibida ou restringida. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que em 2008 cerca de 13% das mortes maternas em todo o mundo, equivalente a 47 mil, foram devido a abortos inseguros.
No Brasil, o aborto está entre as cinco principais causas de mortalidade materna, mas pesquisas indicam que este número pode ser até 30% maior do que os contabilizados nos dados oficiais.
O risco de morte também não atinge todas as mulheres da mesma forma. A mortalidade materna é maior entre mulheres negras, de menor renda e menor escolaridade. Afinal, em um contexto em que o aborto é criminalizado, abortos seguros tornam-se privilégio de mulheres ricas.
Apesar de ser um grave problema de saúde pública, o debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil sofreu retrocessos nos últimos anos, em especial no governo Bolsonaro, em que mesmo as hipóteses de aborto legal sofreram duros ataques, como a recente publicação da Portaria nº 2.282 do Ministério da Saúde.
É preciso primeiro contextualizar que a Portaria do Ministério da Saúde foi publicada logo após o tema voltar aos noticiários, através do caso da criança de 10 anos que, após sofrer repetidas violências sexuais, engravidou e teve o direito ao aborto legal negado, sua identidade e privacidade violadas, até finalmente obter o direito à interrupção previsto em lei, o que só foi possível após viajar a outro estado e adentrar o local do procedimento escondida no porta-malas de um carro.
Muitas mulheres e meninas que recorrem ao Sistema de Saúde para ter o direito à interrupção da gravidez garantido encontram diversos empecilhos, não só de ordem burocrática, mas da própria falta de estrutura para atendimento especializado. Muitos estados sequer possuem hospitais que realizem o serviço de abortamento legal, outros locais utilizam da objeção de consciência para negar atendimento.
Com a nova Portaria do Ministério da Saúde, o direito ao aborto legal sofreu mais um ataque gravíssimo. A Portaria nº 2.282 traz referências legais para reforçar e impor, já no artigo 1º, a obrigatoriedade da “notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”.
Nas palavras de Débora Diniz, o hospital deveria ser a porta de entrada em que as mulheres são cuidadas, mas a portaria “transforma a figura do médico em policial”, violando o direito ao sigilo do prontuário médico e à própria intimidade e autonomia da paciente.
Não se pode esquecer ainda que a nova portaria, de n.º 2.561/2020, foi editada às vésperas do julgamento de uma ação de inconstitucionalidade da portaria anterior (a referida portaria n.º 2.282/2020) pelo STF, ou seja, o governo federal utilizou a nova norma como artifício para evitar o julgamento pelo Supremo.
Fato é que o Governo Federal não está preocupado com a notificação dos crimes de estupro ou com o acolhimento das mulheres e meninas que buscam o Sistema de Saúde. O objetivo de Bolsonaro e seus apoiadores religiosos é o controle dos corpos femininos, ainda que isso implique em empurrar para a morte na clandestinidade as milhares de meninas e mulheres que decidem por abortar, seja porque foram vítimas de violência e não querem ou podem denunciar, seja aquelas que não se enquadram nas hipóteses de aborto legal, mas não desejam, por diversos motivos, uma gravidez compulsória.
A existência de serviços de atendimento que possibilitem o exercício ao direito ao aborto nas hipóteses legais não está desvinculada da luta para a descriminalização do aborto em todas as hipóteses; o retrocesso de garantias já conquistadas só demonstra a importância de nos colocarmos sempre atentas e vigilantes, afinal, como diria Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”.
Para o enfrentamento à política de morte do bolsonarismo existe uma única saída: a luta pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito a TODAS as mulheres.
Debora Pradella é advogada e militante feminista. Constrói a Insurgência em Curitiba-PR.