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"Agro é fogo": governo, grilagem, agronegócio e desmatamento

Dois artigos sobre a nova plataforma de defesa dos povos do campo

16 de abril de 2021

Documento da articulação de movimentos, organizações e pastorais "Agro é fogo" mostra como o avanço de atividades exploratórias vem sendo endossado pelo poder público e destruindo biomas.

Nara Lacerda, Brasil de Fato, 16 de abril de 2021

A cadeia de ações, omissões, práticas e políticas que vêm levando a devastação ambiental no Brasil a recordes históricos é tema de análises e denúncias que compõem o Dossiê Agro é Fogo: grilagem, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal.

Lançado nesta quarta-feira (14), o documento coloca luz sobre as relações entre o poder público, o agronegócio, a grilagem de terras e a destruição de biomas. O projeto é fruto da articulação de mais de 30 movimentos, organizações e pastorais sociais.

A plataforma Agro é fogo traz, inicialmente, seis artigos e seis relatos de conflitos por terra que atingem comunidades tradicionais em diversos pontos do país. Mas a ideia é ampliar o material com atualizações constantes.

Entre as análises, o texto Presidência e parlamento a serviço dos grileiros: legislar para grilar, traça uma linha do tempo e demonstra que a questão da terra no Brasil sempre esteve ligada à exclusão de territórios tradicionais originários e à apropriação privada.

A lógica é aplicada desde a primeira legislação fundiária do país, a Lei de Terras de 1850, até as sucessivas decisões do governo de Jair Bolsonaro, que abrem caminho para exploração do agronegócio e tiram direitos dos povos originários

“Não é à toa que o regime jurídico da propriedade de terras no Brasil acompanha – e legitima – a progressiva exclusão de todos os outros (não proprietários) do acesso à terra e dos meios de produção da vida, em diversos momentos da história brasileira”, ressalta o artigo.

Essa relação é tema também do texto O Agronegócio e o Estado brasileiro: quem lucra quando a boiada passa? – que lembra: “Não podemos falar do agronegócio sem mencionar o Estado e as políticas públicas que viabilizaram a sua origem e expansão.”

A dissonância entre a imagem do agronegócio como grande motor tecnológico e de desenvolvimento no Brasil e os elevados indíces de devastação causados pelo setor é assunto de análise no artigo.

“O avanço do agronegócio no território brasileiro tem sido acompanhado do aumento do desmatamento (…) O desmatamento e o avanço das atividades agropecuárias no Cerrado e na Amazônia coincidem”, alerta.

Outros aspectos do avanço das grandes propriedades de exploração da terra são tratados no dossiê. Em todos os textos fica explícita a conclusão de que o crescimento dessa prática está intimimamente ligado à exploração de trabalhadores e da natureza.

Relatos de lutas

Como resultado direto do aumento de políticas que incentivam a exploração, estão os conflitos por terra que ocorrem em todo o Brasil. O dossiê traz seis casos marcantes no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado.

Em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul estão os territórios Guató e Kadiwéu, onde vivem também povos Kinikinau, Terena e Chamacoco. O enfrentamento das ameaças aos territórios é histórico, mas com o aumento das queimadas ganhou novos e cruéis componentes.

Frente à falta de apoio do poder público, os indígenas criaram brigadas de incêndio próprias, na tentativa de minimizar os danos recorde ao Pantanal. Hoje, convivem com a falta de água, a escassez de peixes e a destruição do bioma.

As ameaças constantes a indígenas e quilombolas aparecem em todos os relatos. Elas são apenas uma amostra de que incêndios, invasões, avanços irregulares e crimes são cotidiano para os povos originários.

Esses grupos populacionais são também responsáveis pela preservação do que ainda resta desses biomas, reafirma o dossiê. Ao contrário da expansão do agronegócio, as práticas dessas comunidades na defesa dos territórios têm grande peso na conservação.

Plataforma mostra uso do fogo como arma de guerra contra povos do campo

Dossiê lançado por trinta organizações retrata devastação ambiental e conflitos por terra gerados pelo agronegócio no Cerrado, na Amazônia e no Pantanal; pelo menos seis comunidades tiveram casas e plantações incendiadas por grileiros e latifundiários.

 

Mariana Franco Ramos, De Olho Nos Ruralistas, 14-04-2021

 

Com a chegada da estação mais seca, uma nova temporada de incêndios no Brasil pode ser ainda mais devastadora. É o que prevê o dossiê “Agro é Fogo: grilagem, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal”, lançado nesta quarta-feira (14) por representantes de cerca de trinta movimentos, organizações e pastorais sociais que compõem a Articulação “Agro é Fogo”.

O coletivo surgiu como uma reação aos incêndios florestais que assolaram o país nos últimos dois anos, destruindo largas extensões dos três biomas. A plataforma agrega análises e denúncias sobre as múltiplas dimensões da devastação ambiental e dos conflitos por terra que se dão no rastro do uso criminoso do fogo pela cadeia do agronegócio, evidenciando a relação intrínseca entre a questão ambiental, agrária e fundiária.

 

As análises abordam temas como grilagem, agronegócio e o Estado brasileiro, ligações com os fundos de pensão internacionais, trabalho escravo, expropriação, degradação ambiental e ainda os usos tradicionais do fogo nos biomas.

 Grilagem e desmatamento deixam camponeses ‘ilhados’

Além dos artigos, a plataforma apresenta seis denúncias de conflitos territoriais. São casos como o da Gleba Tauá, território tradicional no Tocantins ocupado há mais de cem anos por famílias camponesas que migraram para a região a partir dos estados do Maranhão e do Piauí. Há quase trinta anos o território vem sendo devastado para abrir espaço aos monocultivos de soja, milho e eucalipto.

 

Muitas famílias não tiveram suas terras tituladas, ficando expostas ao ambicioso plano de grilagem iniciado em 1992 pelo catarinense Emilio Binotto e seu filho, Edilson Binotto. Mesmo no caso das famílias que tiveram suas áreas regularizadas, a titulação — que poderia ser uma forma de garantia da permanência na terra — não só não garantiu como, ao contrário, facilitou ao grileiro pressionar individualmente cada proprietário a vender os seus lotes. Desde a sua chegada nesses sertões, os Binotto já teriam desmatado em torno de 11 mil hectares:

— Antes eu andava por essas terras e sabia exatamente onde ficava cada grota d’água, cada caminho para as casas das famílias amigas. Hoje em dia, com esse desmatamento, eu não reconheço mais nada, não sei mais caminhar por aí.

 

O relato é de dona Raimunda, uma das lideranças do território. De acordo com o dossiê, os camponeses estão ficando ilhados e encurralados diante do crescente desmatamento e da violência exercida pelos funcionários (pistoleiros) do sojeiro-grileiro. A intenção deles é abrir novas áreas para comprovar a posse da terra e para implementar novos plantios de soja e milho.

“As famílias camponesas seguem resistindo e lutando pela terra, produzindo alimentos diversificados, apesar de estarem cercadas por lavouras de soja e confinadas em pequenas áreas de terra, inferiores a 5 hectares”, diz o artigo.

 ‘O fogo devastou também dentro de mim’, relata pajé

O documento conta também a história da Terra Indígena (TI) Baía dos Guató, localizada no Pantanal mato-grossense, no encontro das bacias dos Rios Cuiabá e São Lourenço. No território de 19 mil hectares, a maior parte dos quais no município de Barão do Melgaço e uma pequena parte no município vizinho de Poconé, vivem atualmente 202 indígenas Guató.

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A invasão bandeirante do século 18 e o alastramento da varíola a partir do contato com os soldados na Guerra do Paraguai, no século 19, atingiu duramente essa população, mas foi no século 19 e, mais intensamente no século 20, com a entrada do gado no Pantanal, que a perda do território se acelerou pela invasão dos fazendeiros. Além de tomar as terras, eles utilizaram aterros indígenas para construir as sedes de fazendas e currais de gado.

 

A TI foi devastada pelo fogo nos incêndios sem precedentes no Pantanal em 2020. Em outubro, a pajé Dona Sandra dos Santos lamentou a devastação, contando que nem as folhas verdes que buscava para fazer chá e auxiliar os parentes conseguia encontrar mais. “As pessoas bebem água do rio cheio de agrotóxico e ficam com diarreia, vomitação, dor de barriga”, descreve. E lamenta:

— O fogo devastou também dentro de mim.

 

A plataforma traz outros quatro relatos de impacto: “A luta da comunidade quilombola Barra da Aroeira na defesa de seu território”; “Fogo ameaça povo indígena isolado na Ilha do Bananal”; “Território Kadiwéu e as queimadas” e “Tragédia anunciada na BR-319”.

 

Diante de um governo que apoia os grileiros, ao mesmo tempo em que desmonta os órgãos ambientais no Brasil, os movimentos dizem ser fundamental a mobilização social em defesa dos direitos de povos e comunidades. “Se ainda há Pantanal, Cerrado e Amazônia em pé, é porque esses povos estão com os pés em seus territórios, defendendo as matas, as águas, os bichos e a biodiversidade”, afirmam.

 Transição Cerrado-Amazônia tem maior intensidade de conflitos

À medida que a fronteira das principais commodities agrícolas brasileiras — carne de gado e soja — avança historicamente do Centro-Sul rumo ao Brasil Central e daí para o Matopiba e a Amazônia, avança também o desmatamento. O dossiê “O Agro é Fogo” mostra que, entre 1985 e 2019, período que coincide com a emergência e consolidação da economia do agronegócio, 90% do desmatamento no Brasil ocorreu para a abertura de área de pastagens e monocultivos e apenas 10% para outros usos.

 

De 2000 a 2014, mais de 80% da expansão da soja no Cerrado do Centro-Oeste se deu sobre áreas de pastagem e outras culturas, impulsionando o avanço de áreas de pastagens sobre a Floresta Amazônica (em especial no norte do Mato Grosso e Sul do Pará).

 

As rodovias que conectam o Brasil Central à Amazônia, Belém-Brasília (BR-153) e Cuiabá-Porto Velho (BR-364), acabam sendo eixos centrais desse movimento. As obras são consideradas marcos da constituição, a partir da década de 1960, do chamado Arco do Desmatamento, região composta por 256 municípios na qual a destruição da floresta historicamente se concentra. É onde se costumavam focar as políticas públicas de combate ao desmatamento do Ministério do Meio Ambiente — quando estas ainda, de fato, existiam.

 

O mesmo ocorre no Cerrado, onde começa a se consolidar outro arco, começando no oeste da Bahia, seguindo pela BR-020 na divisa com o Tocantins e se irradiando pelo sul do Piauí e do Maranhão, zona de expansão da fronteira do Matopiba. A articulação destaca que, como o desmatamento e a grilagem caminham juntos, a transição Cerrado-Amazônia é também a região de maior intensidade de conflitos no campo no país.