Se o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas finalmente censurar o aviso de que o capitalismo é insustentável, ou se os governos se recusarem a cumprir este diagnóstico, estaríamos a caminhar para uma guerra de uma minoria contra toda a vida atual e futura.
Manuel Casal Lodeiro, Esquerda.net, 30 de outubro de 2021
As fugas(link is external) de informação(link is external) efetuadas no passado mês de junho sobre o próximo relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), por parte da comunidade científica responsável pela sua preparação, podem conduzir ao acontecimento político mais importante, à escala internacional, pelo menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Caso alguém considerar isto um exagero, deve parar por um momento e considerar o que irá acontecer quando a versão oficial do relatório for publicada. Embora tenha havido vazamentos em relatórios anteriores(link is external), as implicações do que desta vez foi revelado, e a rapidez com que se estão a espalhar as notícias a respeito —o que dificultará muito abafar o caso—, resultam numa incógnita cuja resolução, aquando a AR6(link is external) for tornado público, vai-nos colocar numa encruzilhada histórica.
Basicamente, duas coisas podem acontecer quando as várias partes deste Sexto Relatório de Avaliação vierem à luz, o que será depois do verão de 2022. A primeira seria que as versões finais e, sobretudo, o “Relatório de Síntese” mantenham a mensagem que foi divulgada pelos grupos de trabalho II (impactos das alterações climáticas, dos quais o resumo foi divulgado) e III (mitigação, de momento, pois apenas um capítulo desta parte do relatório viu à luz). A mensagem é que, para evitar um caos climático que levará à extinção da nossa espécie (ou de grande parte dela), é essencial abandonar o atual sistema socioeconómico(link is external) que obriga as economias a crescerem continuamente. Por outras palavras, acabar com o capitalismo. Chamaremos a esta possibilidade o cenário Integridade.
O outro cenário, Censura, ocorreria se os responsáveis do IPCC que têm a última palavra na elaboração das conclusões —as que têm, na prática, relevância política e mediática — optassem por inclinar-se para as visões mais otimistas e enfeitar o resumo para assegurar a necessária aprovação unânime dos governos, ou amputar diretamente as conclusões mais incómodas, de modo a esconder, eliminar ou diluir essa mensagem, absolvendo assim o sistema capitalista e a sua dependência do crescimento. As fugas de informação produzidas procuram, precisamente, impedir este cenário(link is external), que atenue a mensagem radicalmente nova contida nas versões atuais do AR6, e que numerosos meios de comunicação social sublinharam (France Presse(link is external), CTXT(link is external), The Guardian(link is external), TSF(link is external), Veja(link is external), Al Jazeera(link is external), Der Spiegel(link is external), etc.). O que aconteceu com relatórios anteriores é prova suficiente de que existem pressões governamentais sobre os ditos Summaries for Policymakers, que só podem ser impedidas através da divulgação prévia dos documentos originais produzidos pelos cientistas. “Vazamos o relatório porque os governos —pressionados e subornados pela indústria dos combustíveis fósseis e outras, protegendo a sua ideologia falhada e evitando a responsabilização— já têm alterado outras vezes as conclusões antes da divulgação dos relatórios oficiais. Divulgamos para mostrar que cientistas estão prontos a desobedecer e a correr riscos pessoais para informar o público”, explicaram(link is external) as pessoas que anteciparam o conteúdo do relatório.
A segunda vaga de vazamentos, revelados pela Greenpeace UK e difundidos pela BBC,(link is external) demonstra que este temor estava plenamente justificado: nada menos que 32.000 observações enviadas por governos e grandes companhias procuraram diluir as duras conclusões que foram reveladas nos vazamentos feitos no verão.
Se o IPCC ceder a estas pressões e publicar no próximo ano(link is external) algo nitidamente diferente do que os próprios autores têm agora divulgado, eliminando as menções de parar o crescimento e abandonar o capitalismo, as consequências políticas a curto prazo podem parecer pequenas, uma vez que dará aos governos do mundo o alívio de uma certa espécie de carta branca para continuarem a fazer o que vêm fazendo, ou seja, para todos os efeitos práticos… nada. Pelos menos, nada do que seria necessário para parar a nossa doentia viagem para o abismo climático. Contudo, se isto acontecesse, causar-se-ia uma ruptura irreparável: o escândalo destruiria definitivamente a credibilidade do IPCC enquanto organismo encarregado de traçar o rumo para salvar a nossa espécie do caos climático provocado por ela mesma. Se os membros do grupo encarregado de redigir o relatório de síntese final(link is external), dirigido à sociedade e aos governos, ou os economistas do grupo de trabalho III —a grande maioria dos quais pertence à escola neoclássica hegemónica, e como tais, não cientistas— optarem por abafar esta incómoda mensagem científica, elaborada pelos e pelas melhores especialistas no clima, terão declarado de facto uma guerra total contra a humanidade, da qual também eles fazem parte, e tê-lo-ão feito com a aprovação e a responsabilidade última dos governos que os encarregaram destes relatórios e que se descobriu agora terem pressionado o IPCC.
Se, por outro lado, as e os responsáveis pela elaboração da versão pública do Sexto Relatório decidirem cumprir fielmente a sua missão, salvarem a sua credibilidade (e de passagem a humanidade) e, sem temerem as consequências políticas, mantiverem com contundência e clareza a sentença de morte do capitalismo e o seu funcionamento canceroso biocida, então enfrentaremos uma segunda bifurcação decisiva no nosso futuro imediato. Nessa altura, poderia ser que os vários governos aceitassem o veredicto e demonstrassem que se preocupam mais com a sobrevivência dos seus cidadãos do que com a sobrevivência do capitalismo (cenário Integridade→Responsabilidade); ou se recusassem a cumpri-lo, com qualquer uma das habituais desculpas (“Temos de estudar o assunto mais a fundo… São necessários mais dados… Não há um consenso absoluto…”) ou alguma de nova cunhagem concebida para manterem a sua procrastinação assassina. Caso este último acontecer (Integridade→Traição), posicionar-se-iam como cúmplices da nossa destruição e contra o nosso futuro.
Os responsáveis pelos vazamentos resumiram a mensagem crucial cuja transmissão oficial à sociedade estará em jogo no próximo ano: “Devemos abandonar o crescimento económico, que está na base do capitalismo”. Explicam também que o facto de “milhares de cientistas”, um grupo demográfico na sua maior parte privilegiado, de uma certa idade e moderado, “concordarem em algo tão aparentemente radical demonstra a gravidade do momento atual”. Além disso, acusam os que estão no poder de serem os verdadeiros extremistas, guiados pelo “culto da morte” da economia neoliberal. “Devastarão a Terra até não ser mais do que fogo e cinzas, se não os detivermos”.
Assim, tanto no cenário Censura como no cenário Integridade→Traição, estaríamos perante uma guerra não declarada, mas global, do capitalismo contra a vida (toda a vida, não apenas a humana). Uma situação que, em realidade, tem vindo a decorrer há décadas. Se, por outro lado, os acontecimentos seguirem o rumo Integridade→Responsabilidade, estaremos perante outro acontecimento histórico, embora completamente oposto, algo mais semelhante a um armistício entre a civilização humana e a biosfera. Seria a confirmação do fim do capitalismo — em realidade condenado, pelo menos desde a década de 70, mesmo que os seus paladinos não o quisessem reconhecer — e, consequentemente, marcaria o início entusiasmante de uma fase de transição para outra pluralidade de modelos socioeconómicos integrados nos limites planetários; idealmente, muito mais justos e igualitários. Sem dúvida, o mais importante e belo desafio que poderia ser concebido nas nossas sociedades.
O fim deste momento crucial aberto pelas IPCC-leaks deveria, portanto, envolver a implementação imediata de um novo tipo de economia, que poderia designar-se transitória ou de emergência (economia de guerra(link is external) seria impróprio, atendendo ao significado pacífico que acabo de descrever), uma desescalada económica(link is external) liderada pelos Estados, com um elevado grau de controlo e intervenção pública —ao nível do que vimos ser perfeitamente possível não só em tempos de guerra, mas também perante uma eventual ameaça como a covid-19 (e, claramente, o caos climático é uma ameaça à nossa sobrevivência a muito mais alto nível)— que possibilite a redução das economias de uma forma controlada sem as quebrar(link is external).
Se isto não acontecer, o contrato social que liga governantes e governados terá sido irremediavelmente quebrado. A partir desse momento, a cidadania ciente destes factos muito graves —e aqui os meios de comunicação social desempenharão um papel crucial— teria o legítimo direito(link is external) de autodefesa, rebelião e desobediência para se recusar a colaborar, no seu próprio extermínio, com um governo que se teria declarado o seu inimigo, que teria lançado um golpe de Estado contra o futuro para se tornar o braço armado das elites suicidas(link is external) dispostas a agarrarem-se ao seu poder a fim de flutuarem sobre a merda(link is external) em chamas de uma biosfera devastada.
É claro que não podemos ser tão ingénuos a ponto de esperar que estas elites aceitem de boa vontade o único cenário que seria positivo para a espécie, Integridade→Responsabilidade, dado que nos orientaria para um novo modelo social em que necessariamente perderiam poder, em maior ou menor grau, e onde teriam pouco mais a ganhar do que a sobrevivência e a absolvição da história. No entanto, também não podem esperar que a sociedade civil permaneça impassível quando ouvirmos (sublinho novamente: se os meios de comunicação social cumprirem a sua função vital de transmitir factos) a declaração de guerra que qualquer outro cenário implicaria. Conduzir-nos-ia, inevitavelmente, a algo que só poderia ser descrito como uma guerra civil planetária; uma louca guerra de agressão por uma minoria humana do presente contra toda a biosfera atual e, acima de tudo, contra o nosso futuro. Os nossos governantes, apanhados no meio, mas com alavancas suficientes nas suas mãos para poderem declarar uma verdadeira emergência climática, com todas as consequências, levando a um emagrecimento metabólico de emergência que mantenha a população segura e, simultaneamente, garanta as suas necessidades básicas atuais e futuras —isto só será possível através de algum tipo de economia planificada, ecosocialista ou o que quer que seja—; deparar-se-ão subitamente com o momento mais decisivo das suas vidas, graças aos documentos heréticos vazados(link is external) por um punhado de cientistas.
Nessa altura, todo e qualquer membro dum governo de qualquer país será forçado a demonstrar inequivocamente a sua lealdade primordial: à vida e à dura realidade demonstrada pela ciência, ou à negação capitalista, ecocida e genocida. Nos meses que nos esperam até esse momento decisivo, teremos a oportunidade de dar todos os passos necessários para evitar esta guerra ou, se for finalmente inevitável, de trazer para o nosso lado governos, partidos políticos, meios de comunicação, sindicatos, confissões religiosas e todo o tipo de atores sociais, bem como de coordenar a resistência à escala internacional.
A COP26, convocada para novembro próximo em Glasgow, promete revelar qual dos cenários políticos acima descritos será o mais provável, e quais as posturas assumidas pelos distintos atores no decorrer das preparações de este dia D, quando o Sexto Relatório definitivo e o seu decisivo Resumo para os decisores políticos forem publicados. A segunda metade de 2022 vai, sem dúvida, marcar o período mais crucial da nossa geração, e possivelmente o mais importante de toda a história da nossa espécie. Agosto de 2021 marcou o início da contagem decrescente e colocou em palco todos os atores deste drama planetário. A primeira cena foi protagonizada por um punhado de corajosos cientistas de Scientist Rebellion. É tempo de começarem a atuar todos os outros: as elites capitalistas e os seus meios de comunicação, os governos, os meios de comunicação públicos, toda a sociedade assim como os outros membros do IPCC. De como decorra a trama desta peça, depende o desfecho: a nossa sobrevivência in extremis ou a nossa trágica autodestruição.
Manuel Casal Lodeiro é autor de A esquerda ante o colapso da civilización industrial(link is external) e Nós, os detritívoros(link is external). Texto publicado originalmente em Ctxt.es(link is external). Traduzido por Ramom Flores d'as Seixas e revisto por Vítor Lima em versão atualizada pelo autor.