A crise ecológica reflete os limites do capitalismo, baseado em crescimento infinito num planeta finito. A destruição ambiental e a desigualdade social se agravam, com os mais ricos poluindo mais e sofrendo menos os impactos. No Brasil, o agravamento climático exige uma transição energética justa, proteção dos biomas, reforma agrária e demarcação dos territórios dos povos originários. Enfrentar a crise climática é enfrentar o capitalismo. A saída está em um projeto ecossocialista, com soberania, justiça social e ruptura com o modelo predatório capitalista.
Dante Mariano, Álvaro Neiva, Nadja Carvalho, Well Leal (Insurgência) e Chantal Liegois (Resistência), para a Plataforma PSOL +20
A crise ecológica global emerge no século XXI como consequência direta da incompatibilidade do modo de produção capitalista, que tem em sua gênese o crescimento ilimitado a partir de uma base material finita. Não há possibilidade de crescimento econômico exponencial dentro de um sistema natural limitado, no qual há demandas cada vez maiores por matéria-prima e por energia. O crescimento da demanda por matérias-primas e energia no processo produtivo tem gerado um aumento significativo na quantidade de rejeitos, indicando uma quebra no equilíbrio entre a sociedade e o meio ambiente. A contaminação dos ecossistemas é global. Exemplos disso incluem o plástico nos oceanos, metais pesados no solo e rios, e a poluição química que penetra na cadeia alimentar. A camada de ozônio, que deveria proteger a Terra, está sendo prejudicada por reações químicas originadas de motores e queima de combustíveis fósseis, formando smog e outros poluentes. A composição química da atmosfera também se transforma drasticamente. E, além disso, há o aumento de partículas suspensas, gases de efeito estufa como CO2, metano, dentre outros. Esses gases contribuem para o aquecimento global e a mudança climática. O excesso de CO2, por exemplo, está sendo absorvido pelos oceanos, causando sua acidificação — o pH já aumentou em 0,1 desde o período pré-industrial, o que representa um aumento de quase 30% na acidez, levando a perda da diversidade e impactando diretamente a pesca.
Segundo os dados do IPCC 2023, o aquecimento global já está em +1,1 °C acima do período pré-industrial, onde é possível observar alterações dramáticas no planeta: aumento do nível do mar, eventos climáticos extremos e derretimento de gelo, com cada 0,5 °C adicional intensificando ainda mais esses impactos. Além disso, projeta-se aumento da transmissão de doenças, com possibilidades reais de novas pandemias, escassez hídrica e quedas na produtividade agrícola, especialmente em regiões vulneráveis, com efeitos desproporcionais entre as populações mais vulneráveis. Contudo, a situação se torna ainda mais aguda, dados recentes mostram que o ano de 2024 violou as metas climáticas ao registrar uma média global de 1,55°C acima dos níveis pré-industriais. De acordo com dados do observatório Copernicus, entre 2023 e 2025, houve 20 meses com temperaturas acima de 1,5°C, sendo muitos deles acima de 1,6°C, isso pode indicar o início de um novo patamar climático duradouro.
A extração, o uso e a queima dos combustíveis fósseis, como motores do modo de produção capitalista são os inimigos centrais da atual quadra da luta de classes no planeta. A crise climática é, em sua essência, também uma crise de classe. As desigualdades sociais se refletem diretamente na responsabilidade pelas emissões de gases de efeito estufa. Em 2019, o 1% mais rico da população mundial — cerca de 77 milhões de pessoas — foi responsável por 16% das emissões globais de dióxido de carbono (CO₂), o mesmo volume emitido pelos 66% mais pobres, ou aproximadamente 5 bilhões de pessoas. Esses dados são um dos exemplos que os maiores emissores são justamente os que menos sofrem com os impactos da crise climática.
No Brasil, mais de 6 milhões de brasileiros enfrentaram pelo menos 150 dias de calor extremo em 2024, o ano foi marcado por eventos climáticos extremos e impactos significativos em diversas regiões do país. Vivemos uma das maiores secas da sua história, que afetou todo o território nacional, mas teve consequências mais severas na região Norte, onde rios secaram e populações ficaram isoladas, sem acesso a serviços básicos. No Rio Grande do Sul, as chuvas extremas afetaram mais de 2,3 milhões de pessoas ao atingir 471 municípios, onde cerca de 79 mil pessoas ficaram desabrigadas após terem suas casas levadas ou destruídas pela água. Também em 2024,
mais de 30 milhões de hectares foram consumidos pelo fogo devido às ações humanas, mas a sua propagação em larga escala foi agravada pela falta de umidade no ambiente, decorrente das altas temperaturas. Além disso, o país registrou um recorde de casos de dengue, ultrapassando 6 milhões de infecções, favorecidas pelas condições quentes e úmidas. Pela primeira vez, especialistas identificaram uma região com características de clima árido no Brasil.
Em 2023, o Brasil já emitia 2,3 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa, medida em CO₂ equivalente (GtCO₂e). As mudanças no uso da terra, principalmente o desmatamento, foram novamente as principais responsáveis, respondendo por 46% do total — o equivalente a 1,062 bilhão de toneladas. Em seguida, destacam-se a agropecuária, com 631 milhões de toneladas (28%); o setor de energia, com 420 milhões (18%); resíduos, com 92 milhões (4%); e processos industriais, com 91 milhões de toneladas (4%). A devastação dos biomas brasileiros em 2023 resultou na emissão de 1,04 GtCO₂e brutas, consolidando o Brasil como o quinto maior emissor global de gases de efeito estufa. Isoladamente, o desmatamento brasileiro seria o oitavo maior emissor do planeta, atrás apenas do Japão e à frente do Irã. O setor agropecuário bateu seu quarto recorde consecutivo de emissões, com um aumento de 2,2% em relação ao ano anterior, impulsionado principalmente pela ampliação do rebanho bovino. A maior parte dessas emissões (405 milhões de toneladas) provém do chamado “arroto do boi”, volume superior às emissões totais da Itália no mesmo período. O enfrentamento às mudanças climáticas é uma questão de classe!
Três eixos são centrais para a construção programática de uma saída estratégica ecossocialista para o Brasil e enfrentamento das emissões de gases de efeito estufa: transição energética socialmente justa, enfrentamento ao avanço do agronegócio e proteção integral dos biomas brasileiros. A transição energética tem como objetivo substituir os combustíveis fósseis, por fontes renováveis, como solar, eólica e biomassa. Esse processo também envolve a melhoria da eficiência energética, o desenvolvimento de tecnologias de armazenamento de energia e a remoção ou compensação das emissões de carbono. Quando tratamos de um processo de transição energética socialmente justa para o Brasil, não podemos retirar do horizonte estratégico a necessidade de redução do consumo global e nacional de energia, em que pese as diferenças entre o grau de consumo entre os países, para que não percamos de vista a perspectiva de que o enfrentamento ao capital é a saída para a crise ecológica. Contudo, alguns caminhos devem ser tomados para construirmos saídas coletivas. A priori, romper com a exploração de combustíveis fósseis através de uma transição gradativa, mas sem a perfuração de novos poços de exploração de petróleo no Brasil.
Esse caminho de transição envolve a defesa de campanhas como a “Nenhum Poço a mais!”, já impulsionada por fóruns de comunidades tradicionais, que envolve pescadores, quilombolas, marisqueiras, e visa frear a expansão petroleira em áreas tradicionais de pesca e quilombolas, defendendo territórios livres de novos poços, como forma de preservação dos modos de vida e modos de subsistência ameaçados pela contaminação e perda de acesso a recursos naturais, como pesca, agricultura e cultura local. Essa luta representa um movimento de resistência territorial que, além da denúncia, constrói alternativas para uma transição justa e ecológica. Nesse cenário, é preciso defender uma Petrobras 100% estatal, a reestatização da Eletrobras, e fusão das empresas para a criação de um empresa nacional de energia, que seja a ponta de lança na transição brasileira, em que seus trabalhadores sejam absorvidos e realocados nesse novo modelo de produção energética. Essa é uma saída estratégica a alternativa do capitalismo verde e seu green-washing, bancos e as multinacionais, inclusive do petróleo e carvão, que investem o mínimo possível em energias renováveis como uma falsa saída para a crise climática. Rechaçamos esse modelo corporativo, com grandes investimentos em infraestrutura verde, em saídas falaciosas como o mercado de carbono que ao permitem que países comprem o direito de poluir, mantenham inalterado o volume global de emissões ou qualquer outro tipo de marco regulatório de cunho mercadológico. Uma transição justa precisará incluir educação energética, criação de empregos, recolocação profissional para garantir participação e democracia na tomada de decisões. O desafio da transição energética deve respeitar o equilíbrio dos sistemas naturais, a partir do uso dos recursos minerais necessários para sua produção (lítio, terras raras, etc.), os interesses das comunidades tradicionais e a soberania nacional. É fundamental evitar que sejamos fonte de garantia da transição energética de países desenvolvidos, servindo de “zona de sacrifício” pela pressão sobre recursos, produção de hidrogênio verde para a
Europa, em detrimento do direito e uso da terra pelas comunidades tradicionais e de nossa própria transição. Precisamos lutar contra esse neocolonialismo, nossa transição energética deve ser guiada por solidariedade entre povos latino-americanos, para que tenhamos uma América Latina livre do petróleo. A crise climática acarreta numa diminuição da produção de alimentos, para se ter uma ideia da gravidade do problema, a elevação de 1grau na temperatura da Terra significará a redução de 7,4% na produção mundial de milho até o fim do século. Os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO-ONU) mostram que 8,4 milhões de brasileiros passaram fome no triênio 2021-2023, o que representa 3,9% da população nacional, no mundo afeta hoje 811 milhões de pessoas, concentrando-se principalmente nos continentes africano e asiático. A soberania alimentar deve ser um dos pilares de um programa ecossocialista para o Brasil. Para isso é fundamental o enfrentamento ao agronegócio brasileiro – principal agente da emissão de gases de efeito estufa no país, beneficiário de renúncia fiscal em torno de R$158 bilhões -; por isso, mais do que nunca é importante defender a reforma agraria em todo território nacional, associado a um programa nacional de agroecologia como alternativa ao agrocultivo, em que a produção de alimentos seja a prioridade nacional em detrimento da exportação de commodities agrárias para o mercado externo. Aliado a isso, é preciso garantir o direito das comunidades e povos tradicionais aos seus territórios. Nesse sentido, defender a preservação da floresta amazônica como ferramenta de enfrentamento às mudanças climáticas é defender também o direito daquelas e daqueles que foram responsáveis pelo seu cultivo e preservação ao longo dos séculos. A demarcação de todos os territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais, no Brasil, é enfrentar as mudanças climáticas, é construir um programa de transição ecossocialista. A crise ecológica representa uma etapa do desenvolvimento capitalista em que este avança sobre as últimas fronteiras possíveis de expansão no planeta. Esse avanço ocorre às custas da superação dos limites naturais e da exploração desenfreada do ambiente que sustenta a vida humana. Esse sistema que empurra as condições de vida no planeta para o precipício, é o mesmo que depende da exploração da classe trabalhadora para a obtenção de lucros. Pensar na superação do capitalismo é pensar numa alternativa ecossocialista para o Brasil.