“A utopia sempre foi uma questão política, um destino incomum para uma forma literária – e, do mesmo modo que o valor literário da forma está sempre sujeito à dúvida, seu estatuto político também é estruturalmente ambíguo”.
Essas primeiras linhas de Arqueologias do futuro, de Fredric Jameson já são capazes de enunciar os principais temas do longo ensaio que abre essa obra fundamental: as relações entre a imaginação, seus limites, e a crítica política imbricadas na literatura.
Ana Rüsche, A terra é redonda, 16 de fevereiro de 2022
Arqueologias do futuro é hoje uma obra essencial para a análise sobre obras de ficção-científica (FC) e obras utópicas. A partir da escavação minuciosa sobre questões culturais e políticas de cada período, com fricções próprias a cada tema e autoria analisados, Fredric Jameson foi capaz, com esse livro, de alçar os estudos sobre ficção-científica a um novo patamar de complexidade, oxigenando o campo das utopias e abrindo caminho para outras confabulações possíveis. Como o título sugere no que diz respeito à FC, há que se destrinchar essa grande metáfora central ao gênero, o futuro, a partir de uma mirada rigorosa sobre o passado, colocando-o, em um aparente paradoxo, à frente.
Duas partes dividem o livro, um tomo de 650 páginas, agora publicado com muito zelo em português. Na primeira, O desejo chamado Utopia, um longo ensaio com treze capítulos, discute-se o que seria a Utopia hoje; a obra inaugural, de Thomas Morus, assim como utopias literárias recentes; corpos alienígenas; e a noção de futuro. Na parte dois, Até onde o pensamento alcança, um compilado de ensaios, a respeito de obras de Brian Aldiss, Kim Stanley Robinson, Philip K. Dick, Ursula Le Guin, Van Vogt e Vonda MacIntyre, entre muitas outras autorias.
Crítico de novas e estranhas paisagens
Fredric Jameson, nascido em Cleveland, Estados Unidos, em 1934, produziu uma obra teórica sólida, principalmente ao discutir sobre as formas culturais do pós-modernismo. Doutor em 1961, a partir de uma trajetória de estudos com base filosófica tributária da Escola de Frankfurt, mas também considerando a ótica de estudos culturais de Raymond Williams, publica suas primeiras obras de fôlego, Marxismo e forma, em 1971, e O inconsciente político, em 1981. Nesse último, incorpora análises literárias e leituras psicanalíticas lacanianas, apresentando a hipótese sobre a compreensão de narrativas como um ato social simbólico (JAMESON, 1992).
Em 1991, lança a obra de referência Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (JAMESON, 1996), quando analisa formas emergentes na cultura a partir de uma mudança no sistema econômico e da “estrutura de sentimento cultural”. Com o choque da crise do petróleo de 1973 e o começo do fim do comunismo tradicional, entre outros eventos históricos, revelar-se-ia, então, a existência de uma nova e estranha paisagem (2006, p. 24). Jameson traça uma análise sobre as novas configurações culturais incorporadas à lógica do capitalismo tardio, a partir do acirramento da Guerra Fria, quando empresas transnacionais incluem uma divisão internacional do trabalho, com transações bancárias e dívidas internacionais, até o surgimento de novos sistemas de transportes, conteinerização, computadores e automação, tudo se somando à crise do trabalho tradicional e a instauração de uma aristocratização em escala global (2006, p. 89).
A necessidade de estranhar o mundo
Em paralelo a essa produção crítica, Arqueologias do futuro estava sendo gestada – os artigos que compõem o livro datam de 1973 a 2003, textos originalmente publicados, por exemplo, nas revistas Science Fiction Studies e na New Left Review. Embora haja a distância temporal entre as publicações iniciais dos textos, quando reunidos provocam uma impressionante sensação de solidez. Um dos motivos, além da coerência teórica advinda dos estudos culturais e da influência frankfurtiana, é a adoção do estranhamento como categoria inafastável de análise.
Aqui se faz visível a influência de Darko Suvin, acadêmico nascido na Iugoslávia, inclusive editor de 1973 a 1980 da revista Science Fiction Studies, onde Fredric Jameson publicou. Em uma época na qual os estudos de ficção científica ainda não eram especializados, Suvin foi capaz de articular ideias brechtianas sobre o conceito de estranhamento em torno de uma literatura eminentemente popular, a FC, ao publicar o clássico Metamorphoses of Science Fiction (1979). Na obra, concede bases teóricas para definir a utopia como texto literário – uma construção textual engendrada sobre uma comunidade específica, cuja forma literária constitui um espaço físico radicalmente diferente do conhecido, com organizações sociopolíticas, jurídicas e relações individuais organizadas de uma maneira mais aprimorada do que atual, cuja construção é erguida no estranhamento calcado em uma história alternativa (SUVIN, 1979, p. 49).
A partir das ideias de Ernst Bloch, também uma referência para Jameson, Darko Suvin articula a noção de que a ficção científica se distingue por apresentar, de forma dominante, um novum, uma novidade, uma inovação, validada por meio de lógica cognitiva (1979, p. 63). Suvin define essas literaturas como uma proposta de examinar alteridades, distanciadas pela criação de mundos secundários ou alternativos ao nosso, tendo a cognição por meio do estranhamento, o cognitive estrangement, como recurso obrigatório. Essa base de Suvin será central na teorização subsequente sobre o conceito de FC, não somente para a exposição em Arqueologias do futuro (JAMESON, 2021, p. 19), mas também para a crítica contemporânea, em trabalhos tão díspares quanto as propostas de Adam Roberts (2018) e de Mark Bould e Sherryl Vint (2011).
Quimeras utópicas
Ao propor a análise de utopias literárias, Jameson parte da “grande máxima empirista”: não existe nada que possamos imaginar que não tenha passado antes por nossos sentidos (2021, p. 16). Faz uma citação muito pertinente do filósofo e escritor britânico Olaf Stapledon, quando revisita a ideia da Quimera homérica, mostrando que nada mais é do que um monstro criado a partir de partes de animais conhecidos – a cabeça de um leão, o corpo de um bode e o rabo de uma serpente. Assim, em última análise, “nossas imaginações são reféns do nosso modo de produção – e, talvez, de quaisquer resquícios de modos de produção passados que foram preservados” (p. 16).
Há uma frase anônima, que se tornou um clichê de palestra (inclusive, atribuída a Jameson), que comprova esse ponto com facilidade: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, um slogan, nas palavras de Mark Fisher, sobre uma sensação generalizada de que o capitalismo não seria somente o único sistema político e econômico viável, mas que também não se poderia elaborar imaginariamente uma alternativa coerente para esse estado de coisas (FISHER, 2009, p. 2).
O único antídoto imaginário a esse estado de coisas é justamente imaginar outros mundos possíveis, mesmo que a tentativa fracasse redondamente. Como afirma Maria Elisa Cevasco, “os romances de imaginação política muitas vezes se desenrolam em contextos regidos por sistema alternativos, evidenciando o caráter histórico do que sempre tomamos como natural” (CEVASCO, 2018, p. 11).
Dessa maneira, é possível compreender que o texto utópico é ambíguo e ambivalente, pois na medida em que afirma uma diferença radical com o que vivenciamos, mostra-se igualmente irrealizável, quando não, inimaginável (p. 20). Entretanto, de uma maneira curiosa, é justamente esse exercício de imaginar o que não é capaz de existir que nos devolve, uma vez mais, nosso próprio mundo. Em última análise, a invenção de Utopias nos deixa mais conscientes de nossa limitação mental e ideológica de imaginar uma alteridade, reforçando, ao final, que só a alteração histórica e a ação da prática cotidiana podem engendrar a mudança.
Ícones da ficção científica à contrapelo: o caso da espaçonave
Nesse longo ensaio inicial e nos ensaios que o sucedem, o crítico segue um caminho de análise bastante conhecido quando se examina a ficção científica: traça uma iconografia do gênero ao comentar obras escolhidas, não escondendo as preferências de leitura, destacando-se Kim Stanley Robinson, Philip K. Dick e Ursula Le Guin, entre outras autorias.
A ideia de ler a ficção científica a partir de ícones é um método de análise conhecido, sendo um dos marcos a obra de Gary K. Wolf, The Known and the Unknown, de 1979, usado de referência por outras autorias, como Elizabeth Ginway ao analisar a ficção científica brasileira (2005). O método centra-se em ícones recorrentes que, citando-se Gary K. Wolf, seriam a espaçonave, a cidade, a terra devastada, o robô e alienígenas. Em artigo anterior, Wolf demonstra as origens desses ícones em narrativas que mesclam mitos antigos à tecnologia moderna (1988, p. 51). Até hoje, livros didáticos de ficção científica usam o expediente como espinha dorsal de análise.
Entretanto, ao “jamesonizar” tais iconografias clássicas da ficção científica, nosso crítico faz uma operação engenhosa. Em diferentes capítulos, sugere que, ao usar desses ícones, determinadas obras da ficção científica fazem ainda uma alteração, na própria apresentação da narrativa, com um desdobramento entre forma e conteúdo que modifica o ato de recepção e percepção estética, potencializado a partir da categoria do estranhamento. Ou seja, Jameson usa um ícone somente como porta de entrada para uma aplicação crítica política e cultural.
Exemplificando, ao trabalhar com o ícone da “nave-perdida-enquanto-universo” na obra Starship, de Brian Aldiss, 1958 (p. 395), Jameson aproveita-se para apresentar uma teoria fundamental a quem trabalha com o tema: a recorrência de descontinuidades genéricas como constitutiva das narrativas da ficção científica. Muitas vezes, dentro de uma mesma obra de ficção científica, é possível encontrar diferentes gêneros literários, os quais são apresentados em uma sequência um tanto artificial de modo a romper com certas expectativas. Reúne-se, assim, uma heterogeneidade de materiais por meio da colagem, com elementos narrativos que derivam de diferentes modelos literários – podemos encontrar um “manual de circuitos elétricos da nave estelar” ao lado de uma “história de aventura”, seguida de uma “fábula política”, alternância que não seria esperada em uma organização realista ou mimética de narrativas.
O procedimento não é novo, vide a formatação textual de Ulysses, de James Joyce (1920), mas sua recorrência tendo como base uma narrativa que trata justamente de tecnologia proporciona um efeito mais profundo. Isso termina por reforçar a força do efeito de estranhamento inerente desse e outros ícones da FC. No caso, a nave espacial, ambiente no qual se substitui a natureza pela cultura, envolve dois impulsos aparentemente contraditórios em sua formulação imaginária: nos faz duvidar de nossas próprias instituições, se seriam tão naturais quanto supomos; e introduz a ideia sobre nosso ambiente exterior “real” ser tão confinante e restritivo como uma nave (efeito de leitura piorado em tempos de isolamento social durante uma pandemia). Dois impulsos que nos levam ainda à incerteza sobre “natural” como uma categoria conceitual (p. 397-398).
Desdobramentos arqueológicos
Com o peso teórico que a obra de Fredric Jameson apresenta, principalmente sobre pós-modernismo, a publicação de Arqueologias do futuro terminou por impulsionar certos trabalhos de crítica de ficção científica, encorajando novas reflexões de cunho materialista no século XXI, a exemplos das obras Red Planets, coletânea de artigos organizada por Mark Bould e China Miéville (2009), e Green Planets, no mesmo formato, organizada por Kim Stanley Robinson e Gerry Canavan (2014), ambos com influência de Arqueologias em suas análises.
O livro de Jameson foi lançado em 2005 pela editora Verso, fundada em 1970, com equipe proveniente da New Left Review, com sede em Londres e Nova York. Chega agora ao português pela editora Autêntica, dentro da Coleção Ensaios, coordenada por Ricardo Musse, seleção com abrangência multidisciplinar e análises críticas da cultura, da política, da economia e outros temas.
Assina a tradução Carlos Pissardo, diplomata e doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo, tradutor de Adorno e Horkheimer, profissional digno do desafio de trazer esse tomo de crítica e imaginação ao Brasil, em um momento histórico em que necessitamos tanto de aguçar a crítica e afiar o imaginário. Parafraseando a epígrafe wittgensteiniana de O inconsciente político, se “imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida”, imaginar uma Utopia significa imaginar um outro mundo inteiro. Quem sabe, por alguns raros instantes, bem além do capitalismo.
Ana Rüsche é doutora em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade de São Paulo, com tese sobre ficção científica e utopia. Autora, entre outros livros, de A telepatia são os outros (Monomito).
Referência
Fredric Jameson. Arqueologias do futuro: o desejo chamado Utopia e outras ficções científicas. Tradução: Carlos Pissardo. Belo Horizonte, Autêntica, 2021, 656 págs.