EUA enxergam fim da vida dos hidrocarbonetos e começam a preparar retirada do país dessa economia
Claudio Ângelo, Folha de S.Paulo, 18 de agosto de 2021
Quando Joe Biden disse na última segunda-feira (16) que era um erro “lutar indefinidamente num conflito que não é do interesse nacional dos Estados Unidos”, ele fez mais do que dar uma desculpa torta para a retirada que deixou milhões de afegãos para se virar nas mãos dos selvagens do Taleban. Nas entrelinhas, o que Biden disse foi que o tal “interesse nacional dos Estados Unidos” não reside mais no mundo árabe.
Até bem pouco tempo atrás, nenhum presidente americano sonharia com um argumento desses. Desde o encontro de Franklin Delano Roosevelt com o rei Ibn Saud em Suez em fevereiro de 1945 (Roosevelt com seus assessores, Saud com seus escravos), o Oriente Médio e seu petróleo estiveram no centro da política externa americana.
Para manter o óleo escoando e sustentar sua hegemonia na segunda metade do século 20, os EUA apoiaram a monarquia homicida saudita, fizeram vista grossa para as ocupações israelenses na Palestina, afagaram Saddam Hussein, cevaram a Al Qaeda, hóspede do Taleban, e transformaram o centro e o oeste da Ásia em palco quente da Guerra Fria. Esse tempo acabou.
Uma das razões foi tecnológica. No final dos anos 1990, os americanos descobriram como extrair óleo e gás de folhelhos, um tipo de rocha sedimentar muito comum, usando o chamado fraturamento hidráulico.
Nas últimas duas décadas, o “fracking” jogou no chão o preço do gás natural, aposentando gradualmente as usinas termelétricas a carvão, e depois transformou a América no maior produtor de petróleo do mundo e exportador líquido do produto. Assim, a geologia especial da Península Arábica tem cada vez menos importância.
Em 2001, quando George W. Bush invadiu o Afeganistão atrás de Osama Bin Laden, os EUA consumiam 20 mbd (milhões de barris por dia), importavam 12 mdb (3 mdb do Golfo Pérsico) e exportavam 1 mdb, segundo dados da Agência de Informações sobre Energia. Em 2020, o país consumia 18 mdb, importava 7,9 mdb e exportava 8,5 mdb. A participação do Golfo nas importações hoje (0,8 mdb) é menor do que as exportações totais americanas em 2001, ano em que o mulá Omar, fundador e primeiro líder do Taleban, picou a mula de Cabul.
Com a independência energética crescente, os EUA perderam a trava geopolítica de fundo que os mantinha na sua guerra mais longa e impopular e que matou duas vezes mais americanos que o evento que lhe deu causa, o 11 de Setembro, e, juntamente com o conflito no Iraque, consumiu US$ 2 trilhões.
A pista ficou livre para o isolacionismo de Donald Trump, que tomou a decisão, ratificada por Biden, de parar de brincar de “construir nações” e retirar as tropas do Afeganistão.
A mudança no panorama energético também permitiu aos EUA ensaiar, sob Barack Obama, uma política que redundaria no eixo central da diplomacia de Biden: o combate à crise do clima. O discurso de posse do democrata inovou ao tirar da lista de inimigos do país o terrorismo internacional e focar o racismo, a pandemia e a questão das emissões de carbono.
Estas vêm caindo em razão da competição do gás natural, menos sujo, com o carvão e do crescimento das fontes renováveis. Despencaram na pandemia, o maior tombo no consumo de petróleo americano em um ano desde 1950, e podem cair ainda mais se Biden estiver levando a sério suas promessas de liderar o mundo na mitigação da catástrofe climática anunciada no último dia 9 pelo IPCC, o painel do clima da ONU.
O pacote econômico focado no Green New Deal e a reunião de líderes do clima em abril deste ano dão o tom do “interesse nacional dos EUA” doravante: em vez de disputar acesso a hidrocarbonetos em países de gente bronzeada, os americanos querem brigar com a China e a Europa pelo mercado de placas solares, carros elétricos e baterias.
O governo Biden vê um fim para a vida dos hidrocarbonetos e começa a preparar a retirada do país dessa economia. A notícia é auspiciosa para o clima, decerto. Mas, como ocorre com qualquer espirro da maior potência econômica e bélica do mundo, deixará cadáveres pelo caminho.
O abandono de Cabul, dramaticamente simbolizado pelas imagens do aeroporto nesta semana, pode ser o começo de um movimento de lavagem de mãos que atingirá outros aliados dos EUA no Oriente Médio (alô, príncipe saudita Bin Salman). Quem sobreviver ao menos poderá comprar painéis solares made in USA.
Claudio Angelo é coordenador de comunicação do Observatório do Clima e autor de 'A Espiral da Morte – Como a Humanidade Alterou a Máquina do Clima' (Companhia das Letras)