Amjad Iraquí, Esquerda.net, 19 de maio de 2021
O caos que se vive no terreno na Palestina/Israel é real, brutal e aterrorizador. Aviões de combate, rockets, polícias e linchadores invadiram o céu e as ruas durante estes últimos quatro dias. O exército israelita e os militantes do Hamas continuam a trocar tiros cegamente, matando dezenas de pessoas e ferindo um número incalculável, principalmente na faixa de Gaza que está cercada. Por todo Israel, bandos de grupos armados, muitos dos quais bandidos judeus acompanhados pela polícia, percorrem as cidades e os bairros destruindo carros, invadindo casas e lojas, procurando fazer correr sangue naquilo que muitos já descreveram justamente como pogroms.
Esta queda na violência incontrolada do Estado e da multidão abafa tragicamente um dos momentos mais incríveis da história recente da Palestina. Há várias semanas, comunidades palestinianas, com Jerusalém como epicentro, organizam manifestações de massa que se alastraram como pólvora dos dois lados da linha verde. Desencadeadas pelos acontecimentos do Portão de Damasco e no bairro adjacente de Sheikh Jarrah, as manifestações estenderam-se do campo de refugiados de Jabaliya a Gaza, à cidade de Nazaré em Israel, passando pelo centro de Ramallah na Cisjordânia. E até ao presente dão poucos sinais de apaziguamento.
Ainda que os acontecimentos atuais sejam uma reviravolta horrível, as mobilizações destas últimas semanas não podem ser negligenciadas. Ainda que os palestinianos de todos os lados estejam profundamente conscientes da sua identidade comum, muitos temiam desde há muito que a fragmentação violenta do seu povo por Israel – encorajada pelos dirigentes nacionais que impõem estas divisões – tivesse enfraquecido irremediavelmente a sua unidade. O facto dos palestinianos terem saído à rua em uníssono lembra de forma corajosa que, apesar do número incomensurável de vítimas, a política colonial de Israel ainda não se conseguiu impor. Esta preserverança é mais do que uma simples fonte de conforto para os palestinianos; galvanizou-os para que aproveitem o momento de forma a forjar uma mudança radical e decisiva.
Não é a primeira vez que tais manifestações acontecem: apenas no decurso da última década, o plano Prawer de 2013, que visava deslocar os cidadãos beduínos de Naqab/Negev, a guerra de 2014 contra Gaza e a Grande Marcha do Regresso de 2018 geraram ações comuns semelhantes. Contudo, qualquer palestiniano que tenha assistido às manifestações atuais ou tenha seguido as notícias a partir do estrangeiro não pode deixar de sentir que esta vaga não é como as outras. Alguma coisa parece diferente. Ninguém sabe exatamente do que se trata nem quanto tempo isto vai durar – e depois da loucura da noite passada [de 12 para 13 de maio], talvez já não tenha mais importância. Mas é angustiante ver e eletrizante contemplar.
Não é apenas um slogan
A centralidade de Jerusalém neste renascimento nacional é um elemento essencial da história. Já há anos que a capital histórica não estava tão presente no espírito de tantos palestinianos – e mesmo de milhões de pessoas no mundo – quanto tem estado nestas últimas semanas. A última vez que isto aconteceu foi em julho de 2017, quando no seguimento de um ataque de militantes palestinianos contra a polícia de fronteiras junto à mesquita Al-Aqsa, as autoridades israelitas instalaram detetores de metais à volta do complexo [a esplanada das Mesquitas] e recusaram deixar entrar os fiéis muçulmanos sem os controlar.
Recusando esta subordinação da sua potência ocupante, os palestinianos fizeram um boicote massivo aos detetores e protestaram contra todas as tentativas de modificar o status quo do Haram al-Sharif [o Nosso Santuário]. A sua desobediência civil obrigou os atores regionais a intervir e obrigou finalmente Israel a retirar estas instalações. Ainda que limitada, esta vitória é ainda uma fonte de inspiração e deu um vislumbre do potencial de organização dos palestinianos na cidade, que muitos temiam ter sido dizimada pela repressão israelita durante e depois a segunda Intifada [entre setembro de 2000 e 2004-2005].
Desta feita, a mobilização em Jerusalém é muito mais importante. Ao contrário de 2017, os manifestantes palestinianos não se contentam com o levantamento das restrições arbitrárias impostas pela polícia às festividades do Ramadão no Portão de Damasco. Com um timing que se revelou fatal, as autoridades israelitas e os grupos de colonos intensificaram a sua pressão para expulsar famílias palestinianas das suas casas em Sheikh Jarrah, expulsões que deveriam ser ratificadas pelo Tribunal Supremo este mês, no próprio momento em que a polícia intensificava a sua violência repressiva na cidade velha. O destino de Sheikh Jarrah, tal como o de outras zonas ameaçadas como Silwan [bairro de Jerusalém Leste], ficou intimamente ligado ao coração da Jerusalém palestiniana – não como um simples slogan cansado mas através de um movimento que assume ações de massa para as defender.
Ao fazê-lo, os palestinianos alcançaram uma etapa importante na luta contra as tentativas de Israel de separar os bairros de Jerusalém uns dos outros e de os afastar dos seus irmãos no exterior da cidade. Encorajados pelo despertar da capital, os palestinianos de outras cidades organizaram as suas próprias manifestações de apoio a Sheikh Jarrah e a Al-Aqsa, sem se deixar impressionar pelas ameaças e pelos atos de repressão israelitas. Sábado passado [8 de maio], milhares de cidadãos palestinianos de Israel enfrentaram os bloqueios da polícia e dirigiram-se de autocarro ou a pé ao seu lugar santo, rezando por Sheikh Jarrah ao mesmo tempo. Até que os pogroms desta semana se espalharam pelo país, todos os olhos estavam voltados para Jerusalém com uma energia fervorosa que os palestinianos não sentiam há muito.
Uma característica extraordinária das manifestações é que elas são organizadas principalmente não por partidos ou por personalidades políticas, mas por jovens ativistas palestinianos das comissões de bairro e dos coletivos de base. De facto, alguns destes militantes rejeitam explicitamente o envolvimento das elites políticas nos seus protestos, considerando as suas ideias e as suas instituições – da Autoridade Palestiniana à Lista Comum – domesticadas e obsoletas. Afirmam-se na rua e sobretudo nas redes sociais, encorajando outros jovens que não tinham nunca participado em manifestações políticas a juntar-se-lhes pela primeira vez. Em muitos aspetos, esta geração desafia os seus dirigentes palestinianos tradicionais tanto quanto combate o Estado israelita.
A resiliência no meio do caos
Não é espantoso que o Hamas tenha decidido entrar em cena, atirando milhares de rockets para o sul e o centro de Israel em nome da defesa de Jerusalém. Para alguns palestinianos, trata-se de uma intervenção militar justificada para apoiar o movimento no terreno; para outras, trata-se de uma tentativa flagrante de canalizar as manifestações em seu benefício, como o tinham feito com a Grande Marcha de regresso a Gaza. Contudo, com o presidente Mahmoud Abbas a adiar indefinidamente as eleições palestinianas deste verão, os dirigentes políticos dos dois lados dos territórios ocupados mostraram que não têm grande coisa a oferecer, a não ser as velhas estratégias e um poder cada vez mais autoritário.
A cooptação não é a única ameaça com que o movimento está confrontado. Nas “cidades mistas” como Lod, Jaffa e Haïfa – cidades historicamente palestinianas que foram transformadas à força em localidades maioriamente judias através da expulsão e do emburguesamento – multidões de judeus de extrema-direita, muitas vezes protegidos e ajudados pela polícia, lincham palestinianos e aterrorizam os seus bairros. Bandos de judeus armados provenientes dos colonatos da Cisjordânia, onde as agressões violentas contra os palestinianos são moeda corrente, convergem para estas cidades para entrar na briga. Alguns palestinianos agrediam igualmente israelitas judeus e incendeiam os seus veiculos e bens, nomeadamente incendiando sinagogas. Contudo, apenas um destes grupos não tem razões para temer as autoridades – e pode mesmo contar com a polícia para sua proteção.
Estes acontecimentos pungentes vão provavelmente agravar-se nos próximos dias com Israel e Hamas a intensificar a sua guerra assimétrica e com os palestinianos da faixa de Gaza a pagar um preço pesado. O governo israelita pondera agora enviar o exército para ajudar a polícia a estabelecer “a ordem” no país, uma medida que imporá uma tirania suplementar aos cidadãos palestinianos do Estado. Durante este tempo, numerosos palestinianos que apoiam as manifestações temiam sair à rua por medo de serem feridos, presos ou pior. Outros resignaram-se a acreditar que depois de décadas de levantamentos, de inação internacional e de impunidade israelita, há pouca esperança que este episódio traga uma mudança significativa.
E, contudo, mesmo que a violência pareça escapar a todo o controlo, esta não deve apagar as correntes de orgulho, de solidariedade e de alegria que dinamizaram a vaga de resistência palestiniana deste mês. Domingo, 9 de maio, numa imagem simbólica, um palestiniano de Lod escalou a um poste de iluminação para substituir uma bandeira israelita por uma palestiniana – uma cena de desafio cerca de 73 anos depois da limpeza étnica da cidade pelas forças sionistas na altura da Nakba. Quando a polícia impediu os autocarros de entrar em Jerusalém na noite santa do Laylat al-Qadr, motoristas de passagem propuseram-se ajudar os palestinianos que estavam prontos a marchar quilómetros para atingir Al-Aqsa. Esta semana, no bairro de Wadi Nisnas em Haïfa, os habitantes palestinianos reagruparam-se para rechaçar as multidões judias, sabendo que era mais provável que a polícia ajudasse os agressores que os prendesse.
Nas redes sociais, um vídeo viral mostrava cidadãos palestinianos rindo e aplaudindo quando uma viatura da polícia israelita passava sem estes saberem que uma bandeira palestiniana tinha sido pendurada na porta traseira.
Outro vídeo popular mostrava um jovem palestiniano empurrado para fora de Al-Aqsa por uma multidão de polícias, lançando astutamente o seu sapato na direção da cabeça de um oficial de capacete. Outro vídeo mostrava um palestiniano que sorri quando a sua filha, sem ter consciência que o pai está preso pela polícia na sua própria casa, lhe pede impacientemente notícias da sua boneca. Mesmo no meio do caos, estes momentos de beleza e de resiliência não devem ser esquecidos.
Um motim nacional
Não há nenhuma dúvida que o período atual é perigoso para todos os que vivem em Palestina-Israel. A instabilidade nas ruas é aterrorizadora e os perigos que ela carrega são quase sem precedentes. Esta loucura deveria ter sido evitada, mas os poderes instalados tornaram-na quase inevitável. A comunidade internacional, incluindo os países árabes, abandonaram efetivamente a causa palestiniana; a direita israelita consolidou o seu regime de apartheid entre o rio e o mar; e os dirigentes palestinianos recusaram dar ao seu povo o direito de decidir o seu futuro político.
É precisamente este ambiente de isolamento e esmagador que o movimento palestiniano nascente tenta quebrar. Muitos jovens militantes que deram o corpo à luta nestas últimas semanas passaram a sua vida a tentar obter as suas liberdades. Mais afirmativos e melhor equipados que as gerações precedentes, utilizam as redes sociais, as petições públicas, os programas de “coexistência”, a prática jurídica e até a sua amizade com colegas judeus – para constatar que continuam presos com as mesmas correntes que os seus pais e avós antes deles.
Privados de opções, a desobediência pública é doravante uma das raras estratégias de que dispõem os palestinianos para resistir à opressão implacável de Israel, nomeadamente lutando contra as expulsões das de Sheikh Jarrah às de Jaffa e para além destas…
Esta ação massiva de mobilização não pode simplesmente ser classificada na falsa categoria da resistência “violenta” ou “não violenta”. Trata-se, para falar francamente, de um motim nacional. Ainda que se trate de uma palavra profundamente estigmatizada, utilizada mais para diabolizar e justificar a brutalidade contra os manifestantes, os motins são uma característica familiar da resistência popular contra a injustiça; as manifestações do Black Lives Matter depois do assassinato de George Floyd o ano passado foram exemplos marcantes disto. E para muitos palestinianos na rua, a violência que emana destas manifestações – por odiosa e condenável que seja – permanece incomparável face à brutalidade quotidiana, direta e estrutural exercida pelo Estado que os governa.
Com efeito, com as guerras sísmicas de 1948 e 1967, o sucesso do sionismo enquanto projeto colonial deriva em grande parte da sua abordagem crescente de despossessão. Rouba os territórios bocado por bocado, expulsa as famílias casa por casa, reduz ao silêncio a oposição pessoa a pessoa. O “silêncio” é essencial para sabotar a resistência coletiva, dando aos críticos a ilusão que terão tempo para dar a volta às coisas. E como os acontecimentos de Jerusalém mostraram este mês, quanto mais Israel avança descaradamente com as suas políticas, mais a resistência se intensifica.
Os palestinianos que saíram à rua nas últimas semanas sabem-no muito bem – e é por isso que não querem deixar Israel voltar ao “normal”. A normalidade significa permite que o colonialismo dos colonatos e que o apartheid continuem a funcionar suavemente sem serem perturbados por uma vigilância local ou internacional. Esta condição violenta e desumana constitui a experiência comum de milhões de palestinianos quer vivam sob o bloqueio, o regime militar, a discriminação racial ou o exílio. Todos compreendem que enfrentam uma força única que tenta suprimi-los, pacificá-los e apagá-los, simplesmente devido à sua identidade “original”.
Mesmo à beira de uma fase apavorante de guerra, muitos palestinianos não podem permitir-se esperar pela próxima crise para se libertarem desta força opressiva. Há um motim neste momento – e mesmo que ele não liberte os palestinianos das suas correntes, pode pelo menos soltar as suas consciências do domínio de Israel.
Amjad Iraquí é editor da revista +972 e analista político no think tank Al-Shabaka. Anteriormente foi coordenador do centro legal Adalah. É um cidadão palestiniano que vive em Haifa no Estado de Israel. Artigo publicado originalmente no site da revista +972 em 3 de maio de 2021. Traduzido para francês pelo A l’Encontre. E retraduzido desta versão para o Esquerda.net por Carlos Carujo.