Em junho de 2020, coletivo de artistas independentes associados à Cooperativa Paulista de Teatro (CPT) reuniu personalidades da arte e da cultura, a partir de suas casas e celulares, para compor o curta-metragem Viver é urgente!. Um chamado à consciência crítica sobre as desigualdades sociais e a lógica do capitalismo que torna os efeitos da pandemia ainda mais perversos entre os brasileiros, somados à imoralidade do bolsonarismo e seu culto à morte.
Oito meses depois, uma segunda criação, Viver é mais que urgente!, nascida sob o mesmo espírito colaborativo, incorpora médicos infectologistas, pneumologistas e sanitaristas para reafirmar, sem vaticínio, o papel da vacina neste momento da história mundial. No primeiro videoclipe, ela sequer era mencionada e o país ultrapassava 51 mil mortos em consequência do novo coronavírus. Ontem, eram 273 mil óbitos por Covid-19, e apenas 2,3% da população havia tomado a segunda dose. Especialistas estimam um teto de 60% a 70% para começar a controlar o microrganismo SARS-CoV-2 e cortar a transmissão.
O trabalho disponibilizado nesta sexta-feira (12), às 20h, no YouTube da CPT, converge arte e ciência para abrir uma janela diante da realidade asfixiante do descontrole da pandemia. Estatísticas internacionais mostram que o Brasil virou epicentro do vírus, suas variantes. Gravidade aprofundada pelo negacionismo do governo que sabota medidas elementares como o uso de máscaras e o distanciamento.
Áudios e imagens documentais remontam às técnicas centenárias da imunização ou ao noticiário atual. A primeira vacina de que se tem notícia foi descoberta pelo médico britânico-francês Edward Jenner, em 1749, contra a varíola. Na linha de tempo brasileira, os institutos Butantan e Fiocruz foram criados em 1901. Da peste bubônica à Covid-19, lá se foram 120 anos. Uma tradição de vitórias sobre doenças virais como rubéola, sarampo, varíola, poliomielite, febre amarela e caxumba. Esses registros são intercalados a saberes, versos, cantos, prosas e gestualidades de mais de 60 pessoas, numa edição ágil, que faz uso de planos aéreos capturados por drone.
A jornada de 15 minutos abre com a poetisa, jornalista, escritora, cantora e atriz Elisa Lucinda enunciando versos de seu O poema do semelhante, em que fala sobre “alguns por dentro/ alguns por fora/ alguém sempre chega/ alguém sempre demora”. Para depois comparar números do vídeo anterior, do qual também participou.
O ator e sambista Ailton Graça faz às vezes de hierofante. Perpassa o curta com palavras como a do poeta mato-grossense Manoel de Barros: “Me explica: por que um olhar de piedade, baseado na condição humana, não brilha mais do que um anúncio luminoso?”, retrato de dimensão lúdica da linguagem presente em Cabeludinho, do livro Memórias inventadas: a infância.
Mais adiante, vem a perplexidade. Graça indaga se a pessoa do outro lado da tela “já entendeu o tamanho dessa dor?”. Constata que o mundo “ficou sem ar”. Atalha para Mario Quintana: “Eu não faço força para ser entendido. Quem faz sentido é soldado. Se não tivermos vacinas pra todos, a guerra vai ser dobrada”, pondera. Cobra do Estado vacina para todos. Ao final, evolui em figurino e adereços que lembram o de um orixá, como a encorajar a quem o assiste nessa travessia.
“Eu não sou de desistir, eu sou de re-existir”, fala o ator e diretor José Celso Martinez Corrêa, do Oficina Uzyna Uzona, abrindo os caminhos para outros mestres como ele. “Gente é para brilhar, nós nascemos para o amor.” Seu colega César Vieira, do Teatro União e Olho Vivo, traz a voz de João Abade, um dos discípulos do Conselheiro na peça de sua autoria Evangelho segundo Zebedeu (1971): “Sou como soca de cana, me cortem que eu nasço sempre”. Lema do grupo. “Mestre não é quem ensina, é quem, de repente, aprende”, proseia o cantor, compositor, ator e apresentador Rolando Boldrin, saudando o escritor João Guimarães Rosa.
O tom do drama contemporâneo vem pelo pensamento do líder indígena, filósofo e ambientalista Ailton Krenak: “Não temos mais tempo. Cada minuto é um irmão ou irmã sufocada. Cada segundo atrasado é uma multidão massacrada”.
Viver é mais que urgente! traduz a pulsão de vida desses fazedores e pensadores. Essa aglomeração digital lembra o ditirambo, o gênero de canto coral de caráter religioso e acentuação lírica que ocorria na Grécia antes do surgimento da tragédia, ligado, sobretudo, ao culto do deus Dioniso e que envolvia cerca de 50 pessoas, conforme verbete do Dicionário de Teatro de Ubiratan Teixeira.
Um coro cíclico, pois boa parte dos participantes marcou presença em Viver é urgente!, no ano passado, cuja abertura que condensa imagens do sertão e do ator Anísio Clementino na vastidão do concreto do Viaduto do Chá, no centro da capital paulista, também é lembrada no novo videoclipe, sob fusões de lâminas em preto e branco. Como se radiografasse a passagem desses oito meses e a falência de múltiplos órgãos da sociedade brasileira.
Em junho de 2020, a violência contra as populações em vulnerabilidade já eram avassaladoras. Os criadores diagnosticavam “um sistema violento, criado e preservado para que mortes sejam normatizadas em equações camufladas pela força econômica. O sistema persiste em promover uma política e uma visão de mundo em que o dinheiro é maior que a vida”, dizia o enunciado do curta-metragem todo ele costurado a partir do poema Inumeráveis, de Bráulio Bessa, na voz e violão de Chico César – ambos, por sua vez, inspirados no site de mesmo nome, “memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil”.
Lavar as mãos
O gesto hoje prevalente no cotidiano de cuidar da higiene das mãos com água, sabão ou álcool em gel guarda simbologias quanto às formas de reexistências cantadas por Zé Celso e, como é sabido, aliadas das vacinas. A expressão também é usada em chave negativa ao ser remetida, por exemplo, à mitologia em torno do romano Pôncio Pilatos, que teria “lavado as mãos’ para se eximir do juízo de Jesus de Nazaré, crucificado. Significado próximo do que o mandatário máximo do Brasil faz com a população.
Mas o que se deseja aqui é narrar a genuína história de um ser humano incondicionalmente movido pela empatia, imunizante em falta em parcela dos cidadãos. Um sujeito como aquele do Poema do semelhante de Elisa: “Esse Deus sabe que alguém é apenas/ o singular da palavra multidão”. Esse alguém, trazido para o contexto, é o médico húngaro Ignác Fülöp Semmelweis (1818-1965).
Num daqueles cruzos improváveis, o escritor francês Louis-Ferdinand Céline fez de sua tese de medicina, acerca desse homem perseverante, um dos mais belos relatos da literatura universal. Publicado em 1952. A vida e a obra de Semmelweis é uma hagiografia do precursor clínico da antissepsia. O estudante e depois profissional foi hostilizado pelos próprios pares e mentores, células do patriarcado, ao pesquisar e demonstrar cientificamente que o simples ato de lavar as mãos reduziria o crescente índice de mortes de mães após o parto. Essa verdade, que posteriormente se saberá microbiana, não era ululante na Viena de meados do século XIX. Professores e estagiários do hospital geral costumavam frequentar aulas de anatomia num pavilhão e, em seguida, transitar parra a unidade vizinha onde mulheres morriam de febre puerperal, sob mãos masculinas, na escala de dezenas de vezes maior que sob os cuidados de parteiras.
A ignorância, ora gritante, era cultivada à época pela própria formação acadêmica. Não se hesitava conciliar cadáveres e maternidade. Céline relata que a obstetrícia e a cirurgia “recusaram com um ímpeto quase unânime, com ódio, o imenso progresso que lhes era oferecido”. Os especialistas fizeram ouvidos moucos à higiene das mãos – a natureza do problema que o cientista Louis Pasteur ratificaria décadas mais tarde, bem como a esterilização de instrumentos para destruir germes patogênicos e prevenir infecções.
“São os dedos dos estudantes, emporcalhados durante dissecações recentes, que vão levar as partículas cadavéricas fatais para os órgãos genitais das mulheres grávidas, e sobretudo na região do colo uterino”, aclarou Semmelweis em seus estudos solenemente desprezados. Tampouco seria escutado pelos negacionistas de hoje.
Escorraçado, o “poeta da bondade” morreu pouco mais de duas décadas depois, aos 47 anos, em consequência de doença mental típica que alterna estados de euforia e depressão. “Tudo se expia, o bem, assim como o mal, cedo ou tarde se paga. O bem é muito mais caro, necessariamente”, anotou Céline, para quem “a Razão não passa de uma força universal bem pequenina”. Afinal, a “inteligência coletiva é um esforço sobre-humano”.
Instalo reflexivo que também atravessa a afirmação do ator Celso Frateschi em Viver é mais que urgente!, dando as mãos para a canção Não existe amor em SP, de Criolo, “Não precisa morrer para ver Deus/ Não precisa morrer para saber o que é melhor para você”.
Serviço:
Viver é mais que urgente!
Quando: sexta-feira, 12, às 20h, no YouTube da Cooperativa Paulista de Teatro
Viver é urgente! (2020), disponível no YouTube da Cooperativa Paulista de Teatro
Equipe de criação:
Viver é mais que urgente!
Roteiro: Rudifran Pompeu e Marco Antonio Rodrigues, com a colaboração de Luiz André Cherubini
Direção: Marco Antonio Rodrigues.
Captação de imagens, pesquisa e produção de conteúdo: Anderson Negreiro
Música: Sônia Goussinsky
Montagem e edição: Zeca Rodrigues
Participantes:
Ailton Graça, ator e sambista
Ailton Krenak, líder indígena, filósofo e ambientalista
Alex Goussinsky, estudante
Anderson Negreiro, ator
Ave Terrena, atriz e dramaturga
Aysha Nascimento, atriz e encenadora teatral
Bete Dorgam, atriz e palhaça
Caco Ciocler, ator e diretor
Carmen Silva, liderança do Movimento Sem-Teto do Centro, o MSTC
Cecília Boal, psicanalista, atriz e encenadora teatral
Celso Frateschi, ator, dramaturgo e encenador
Cesar Vieira, dramaturgo e diretor
Cláudio Maierovitch, sanitarista
Clodd Dias, atriz
Dagoberto Feliz, ator, palhaço e encenador
Danilo Grangheia, ator
Dirce Thomaz, atriz e encenadora
Elisa Lucinda, poetisa
Fábio Resende, ator e encenador teatral
Fernanda Azevedo, atriz
Fernando Nitsch, ator e encenador
Georgette Fadel, atriz e encenadora
Gog, rapper e escritor
Grace Suleiman, infectologista
Heitor Goldflus, ator, dramaturgo e encenador
Helena Albergaria, atriz
Jamal Suleiman, infectologista
Jé Oliveira, ator e encenador teatral
José Celso Martinez Corrêa, diretor
Leona Jhovs, atriz
Letícia Cannavale, atriz
Lígia Cortez, atriz, encenadora e arte-educadora
Luaa Gabanini, atriz e performer
Lui Seixas, ator e iluminador
Luiz André Cherubini, ator e encenador
Marcelo Airoldi, ator e encenador
Márcio Boaro, dramaturgo e encenador
Marco Antonio Rodrigues, encenador
Moisés da Rocha, locutor
Nani de Oliveira, atriz
Naruna Costa, atriz, cantora e encenadora teatral
Nataly Cavalcanti, atriz
Neide Nell cantora e atriz
Nelson Baskerville, ator e encenador
Osmar Prado, ator
Otávio Martins, ator, dramaturgo e encenador
Patrícia Gifford, atriz e encenadora
Rogério Bandeira, ator
Rogério Tarifa, ator e diretor
Rolando Boldrin, apresentador
Rudifran Pompeu, ator e encenador
Salgadinho, cantor
Samanta Precioso, atriz e encenadora
Sandra Nanayna, atriz e militante indígena
Sergio Siviero, ator
Simone Boer, atriz e encenadora
Sonia Goussinsky, musicista, cantora e pesquisadora
Thalita Carauta, atriz, autora e encenadora
Ubiratan de Paula Santos, pneumologista
Virginia Cavendish, atriz
Zeca Baleiro, cantor e compositor
[1] CÉLINE, Louis-Ferdinand. A vida e a obra de Semmelweis. Trad. Rosa Freire Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. O médico Ignác Fülöp Semmelweis nasceu na atual Budapeste, em 1811, e morreu em Viena, em 1865, aos 47 anos.
Publicado originalmente em Teatro Jornal, em 12 de março de 2021.