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Epidemia de COVID-19 avança heterogênea e sem controle

Estudo do Imperial College em cinco estados brasileiros estima que casos da doença são sete vezes maiores que os notificados

28 de maio de 2020

Karina Toledo, Agência FAPESP, 28 de maio de 2020

Conclusão é de estudo do Imperial College, apresentado pela FAPESP. Maior inquérito sorológico realizado no país aponta discrepância entre estados e que casos da doença superam em sete vezes os notificados

A quarentena decretada em março por prefeitos e governadores de todas as regiões brasileiras promoveu uma queda substancial na taxa de contágio do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Mas, ao contrário do observado em países asiáticos e europeus que também adotaram medidas de isolamento social, o achatamento da curva epidemiológica no Brasil não foi suficiente para fazer o número de casos e de mortes por COVID-19 parar de crescer.

Segundo estimativa feita por pesquisadores do Imperial College London (Reino Unido), no final de fevereiro, o número de reprodução (Rt) do SARS-CoV-2 em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Amazonas estava entre 3 e 4. Isso significa que, nesses locais, cada indivíduo infectado transmitia o vírus para mais de três pessoas em média, fazendo a epidemia avançar rapidamente. No início de maio, estima-se que o Rt havia caído para valores entre 1 e 2.

“Houve uma redução acentuada na intensidade da transmissão, o que significa que o isolamento social ajudou a salvar muitas vidas e das pessoas mais vulneráveis da sociedade. Mas em nenhum estado o Rt caiu abaixo de 1. E somente quando isso ocorrer poderemos dizer que a epidemia está sob controle. O número de infecções diárias cairá significativamente, seguido pelo número de mortes”, disse Thomas Mellan, primeiro autor de um estudo que buscou descrever a evolução da COVID-19 em 16 estados brasileiros por meio de modelagem matemática. Ainda em versão preprint (sem revisão por pares), o artigo foi postado na plataforma medRxiv em 18 de maio.

Na avaliação do pesquisador, a adesão insuficiente da população ao isolamento social parece ser um dos fatores que explicam a menor eficácia dessa “intervenção não farmacológica” na contenção da doença no Brasil. “O motivo exato não está claro, mas ao analisar o Relatório de Mobilidade Comunitária do Google [baseado em dados de localização de usuários em 131 países] observamos que a redução da mobilidade da população brasileira durante a quarentena é menor do que a registrada na maioria dos países europeus”, contou Mellan à Agência FAPESP.

Alternativas metodológicas

A metodologia do estudo foi apresentada por Mellan e por seu colega do Imperial College London Samir Bhat no dia 21 de maio, durante o webinar “COVID-19 - Epidemiological monitoring and measurement of infectivity rates in key countries”, organizado pela FAPESP e transmitido ao vivo pelo canal da Agência FAPESP no Youtube.

Na ocasião, Bhat explicou que o objetivo do trabalho foi estimar a taxa de ataque (número de pessoas infectadas) e o Rt do novo coronavírus no Brasil, usando como referência o número de mortes por COVID-19 confirmado pelo Ministério da Saúde.

“Há várias estratégias para determinar esses indicadores epidemiológicos: vigilância populacional de infecções [testagem em larga escala para detectar casos sintomáticos e assintomáticos], análises genéticas [inferir o Rt com base em linhagens virais sequenciadas], inquéritos de soroprevalência [avaliar por amostragem o porcentual da população que tem anticorpos contra o vírus], estimar com base no número de casos reportados [método fortemente influenciado pela quantidade de testes realizados no local] ou estimar a partir do número reportado de mortes, que julgamos ser a forma mais segura para países como o Brasil, mas não é livre de erro”, ponderou Bhat.

Os resultados do estudo britânico indicam que cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Amazonas – concentram 81% das mortes relatadas até o momento no país. Estima-se que, nesses locais, a porcentagem de pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 varie de 3,3% (com intervalo de confiança de 95%, podendo variar de 2,8% a 3,7%) em São Paulo para 10,6% (de 8,8% a 12,1%) no Amazonas. O estado com a segunda maior taxa de ataque foi o Pará (5,05%), seguido por Ceará (4,46%) e Rio de Janeiro (3,35%). Entre os 16 estados estudados, Minas Gerais apresentou menor proporção de infectados (0,13%), seguido por Santa Catarina (0,23%) e Paraná (0,25%).

Considerando a margem de erro da pesquisa, os números estimados pelo grupo do Imperial College London para São Paulo e Paraná estão próximos do encontrado nas capitais desses estados por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) na primeira fase do estudo EPICOVID19-BR: 3,1% na cidade de São Paulo e 12,5% em Manaus (AM). Realizado entre os dias 14 e 21 de maio, o inquérito sorológico abrangeu coleta e análise de amostras de sangue de mais de 25 mil pessoas, em 133 cidades. O objetivo foi calcular o porcentual da população que já desenvolveu anticorpos contra o SARS-CoV-2. O trabalho foi coordenado pelo reitor da UFPel, Pedro Curi Hallal, que foi um dos palestrantes do seminário on-line promovido pela FAPESP na semana passada.

Nas principais cidades do Pará, o estudo apontou que o índice de infectados chega a 24,8% na cidade de Breves, 15,4% em Castanhal e 15,1% na capital Belém. Em Tefé, município do interior do Amazonas, a taxa de soroprevalência foi de quase 20%.

No conjunto das 90 cidades em que o grupo do EPICOVID19-BR conseguiu testar mais de 200 pessoas (número mínimo para fazer as análises), a taxa de soroprevalência foi estimada em 1,4%, podendo variar de 1,3% a 1,6% pela margem de erro da pesquisa. Segundo os autores, os resultados não devem ser extrapolados para todo o país, nem usados para estimar o número absoluto de casos no Brasil, pois são cidades populosas, com circulação intensa de pessoas e que concentram serviços de saúde. De qualquer modo, a comparação dos números estimados pelo grupo da UFPel e os números oficiais do Ministério da Saúde aponta que, para cada caso confirmado de COVID-19 nesses municípios, existem sete casos reais na população.

Várias epidemias em uma

Os resultados do EPICOVID19-BR indicam que a região Centro-Oeste é a menos afetada do país até o momento. Nenhum teste positivo foi registrado nas nove cidades estudadas, embora já existam casos e óbitos notificados nesses locais. No Rio Grande do Sul, onde já foram concluídas, entre abril e maio, três ondas de testes sorológicos em nove cidades, a taxa de soroprevalência encontrada também foi baixa: variando entre 0,05% (primeira coleta) e 0,22% (terceira coleta).

A região Norte, por outro lado, tem hoje o cenário epidemiológico mais preocupante do país, segundo a pesquisa brasileira, abrigando 11 das 15 cidades com maior proporção de infectados.

A conclusão vai ao encontro dos resultados do modelo britânico, que mostram uma ampla heterogeneidade nas taxas de ataque dos estados estudados, sendo que as regiões Norte e Nordeste parecem estar em um estágio avançado da epidemia, que, em escala nacional, ainda pode ser considerada incipiente.

“Apesar dessa heterogeneidade, no entanto, em nenhum estado a imunidade de rebanho parece estar próxima de ser alcançada”, afirmam os pesquisadores do Imperial College, referindo-se à taxa necessária de infectados (estimada entre 60% e 70%) para que o vírus não consiga mais se propagar na população. “Dado o estágio inicial da epidemia no Brasil, há perspectiva de agravamento da situação caso outras medidas de controle não sejam implementadas”, concluiu o estudo.