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Ernest Mandel, um legado central para a luta revolucionária atual

6 de agosto de 2020

Ernest Mandel (1923-1995), que morreu há um quarto de século, deixou-nos um legado teórico significativo, incontornável para qualquer pessoa que deseje fazer um balanço do século XX e contribuir para a elaboração de perspectivas revolucionárias para o século XXI.

Manuel KELLNER, Europe Solidaire Sans Frontières, 20 de julho de 2020

O fio condutor do pensamento de Ernest Mandel, o eixo em torno do qual giraram tanto seus escritos quanto sua vida enquanto militante revolucionário foi a ação unitária e a auto-organização democrática da classe trabalhadora, entendidas como a pedra angular da emancipação humana universal. A ideia central das suas contribuições sobre a estratégia de combate por uma sociedade sem classes e, ao mesmo tempo, a quintessência de sua visão da futura democracia socialista mundial derivaram de sua crítica do capitalismo e de outros sistemas coercitivos contemporâneos. O internacionalismo de Ernest Mandel era orgânico, ligado ao centro de suas preocupações e inseparável do seu compromisso com os interesses da classe trabalhadora, dos setores oprimidos e despossuídos, e de todos/as aqueles/as que são deixados/as para trás.*

 

Isso também explica por que Ernest Mandel escreveu sobre tantos assuntos. Sua memorável biografia redigida por Jan Willem Stutje mostra-nos o homem e sua devoção à causa revolucionária tanto quanto à construção da IV Internacional. [1] A série de palestras proferidas no seminário de Amsterdã, em 1999, sobre a sua contribuição para a teoria marxista, que foi editada por Gilbert Achcar, é rica em lições. [2] Meu livro sobre sua obra teórica, baseado essencialmente mas não somente na apreciação de seus escritos, fornece uma visão geral de sua contribuição teórica, ao mesmo tempo em que discute as forças e fraquezas dela. [3]

Crítica da economia política

Em Teoria Econômica Marxista, publicado em 1962 (finalizado em maio de 1960), Mandel tentou demonstrar “que é possível, com base em dados científicos contemporâneos, reconstituir todo o sistema econômico de Karl Marx”. [4] A riqueza de referências, em grande número de publicações de diversas áreas das ciências humanas e sociais, sustentava sua linha de argumentação sobre o que se mantinha relevante na crítica de Karl Marx do modo capitalista de produção – apesar da expansão econômica de longo prazo do pós-guerra.

Em seu trabalho, como em outros que lidam com o mesmo assunto, e em suas inúmeras Introduções às obras de Marx e de seus sucessores, Mandel distanciou-se da abordagem escolástica pseudo-marxista de “provar” que Marx estava certo, por meio de uma enxurrada de citações. Mandel tampouco estava tentado a tratar as categorias da crítica marxiana da economia política como dados que fluem logicamente e de maneira dogmática de um lado a outro. Sua ambição era sintetizar a história econômica e a teoria econômica; era mostrar que ali deveríamos ver o valor da abordagem marxiana. Por exemplo, ele desenvolveu a teoria do valor do trabalho sobre a base de exemplos pré-capitalistas de apropriação de excedente por uma classe dominante.

A grande vantagem de seu método é a didática. Eu conheço um certo número de contemporâneos que, como eu, tiveram acesso a O Capital, de Marx, por meio da leitura dos escritos de Mandel. O estilo de Mandel consistia em ilustrar seus argumentos com um grande número de exemplos concretos. Por isso, seus escritos eram muito compreensíveis e convincentes, da mesma forma que suas apresentações em cursos, seminários e encontros políticos. No prefácio de Capitalismo Tardio, ele detalha e defende seu método “genético-histórico”, ao passo que o relativiza um pouco, aceitando a crítica de ter sido “descritivo” demais em Teoria Econômica Marxista. [5]

Mandel não era partidário de uma concepção determinista do materialismo histórico-dialético. Ele falava de “variáveis parcialmente autônomas” determinando a evolução do modo de produção capitalista. Ele explicava por que esse modo de produção apareceu primeiro nos países da Europa Ocidental, não em função de “leis” gerais do desenvolvimento histórico, mas porque certas especificidades, certas pré-condições, existiam lá em certo momento da História. Por exemplo, o ouro roubado da América Latina reforçava as possibilidades de acumulação de capital e a total separação de uma parcela significativa da população dos meios de produção, permitindo investimento massivo em exploração da força de trabalho. Na China, essas pré-condições não existiam, e, por isso - ainda que certas tecnologias fossem mais desenvolvidas do que na Europa –, o modo de produção capitalista não pôde desenvolver-se.

Escrito em alemão e publicado em 1972, Capitalismo tardio (Spätkapitalismus) é considerado a obra-prima de Mandel. Para situar esse trabalho, é necessário lembrar que a hegemonia neoliberal ainda estava distante. A ideologia dominante apresentava uma apologética para o sistema capitalista sugerindo que as óbvias contradições desse modo de produção eram coisa do passado: a intervenção estatal provara-se capaz de controlar crises; o padrão de vida da classe trabalhadora tinha melhorado visivelmente; os países do “terceiro mundo” tinham a chance de alcançar o nível dos países ricos; o progresso dos sistemas de seguridade social havia superado a tendência à pauperização das vastas massas.

Nesse contexto, Mandel explicou que as contradições da sociedade de classes capitalista não haviam sido superadas, mas explodiriam de maneira ainda mais forte no futuro próximo. Ele analisou as mudanças concretas no funcionamento do capitalismo do pós-guerra, que era, para ele, um novo período no contexto do capitalismo monopolista ou imperialista analisado por Lênin.

Mandel também contribuiu para a explicação das destrutivas crises de superprodução capitalista, que acontecem regularmente – prova da falência do sistema capitalista e um bom exemplo da força da crítica marxiana do modo capitalista de produção. Sua contribuição original foi a rejeição de explicações monocausais – como a teoria do subconsumo ou aquela da desproporção entre os grandes setores da produção, ou, ainda, a da superacumulação de capital. Em sua síntese, as flutuações da taxa de lucro cumprem um importante papel. Mandel não apenas estudou a força explicativa das diferentes abordagens, como também o papel delas na luta entre capital e trabalho. Por exemplo, a teorização do subconsumo permitiu à liderança reformista limitar-se a elevar o poder de compra das massas, supostamente suficiente para combater a crise. Mas se os salários subiam, o lucro caía... o que, dificilmente, encorajaria os investimentos capitalistas. Por sua vez, as teorias da desproporção entre os diferentes setores da produção derivavam da “anarquia” da produção capitalista. Novamente, isso foi usado como argumento para uma "super holding", a fim de superar os efeitos da concorrência nas decisões de investimento. Finalmente, a superacumulação foi usada como um argumento pelo capital para elevar a produção de mais-valia. Uma “versão marxista” desse tipo de teoria pressupõe uma taxa de desemprego virtualmente igual a zero durante um longo período, o que constitui uma utopia para o modo de produção capitalista.

O outro lado da moeda é a função das crises cíclicas. Do ponto de vista do capital, essas são crises de “limpeza”, nas quais, de maneira convulsiva, os preços são trazidos de volta para valores reais, de forma que apenas as empresas mais fortes sobrevivem, em detrimento das mais fracas, que desaparecem. A tendência à concentração e à centralização do capital é, assim, realizada, de uma forma catastrófica, por meio de suas crises.

Ernest Mandel foi um dos raros teóricos marxistas que teorizou as “ondas longas” do capitalismo: esses períodos de tendência geral expansiva ou depressiva, cada um contendo vários ciclos de duração menor. Mas enquanto as crises conjunturais dos ciclos industriais contêm, nelas mesmas, o germe da recuperação econômica, Mandel argumentou que os longos períodos de tendência depressiva não continham os elementos necessários para o retorno a um período de expansão. Para tal, seriam necessários fatores exógenos, extra econômicos e, geralmente, de natureza política. Assim, por exemplo, a derrota secular da classe trabalhadora que levou à Segunda Guerra Mundial, assim como a destruição catastrófica por esta causada, permitiu um aumento espetacular da mais-valia, em detrimento do operariado, o que forneceu a base para o período de expansão do pós-guerra.

Em certo sentido, Ernest Mandel, seguindo Marx, também falou do vindouro “colapso” (Zusammenbruch) do modo capitalista de produção, quando este parecia estar no auge do seu sucesso. Mas ele não acreditava que um mecanismo econômico levaria, por conta própria, a tal colapso. De fato, ele sublinhava que se os/as trabalhadores/as e oprimidos/as fossem derrotados/as e fossem incapazes de se opor ao tratamento desumano que o capitalismo lhes imporia, então este poderia recuperar-se - teoricamente -, mas ao preço da barbárie global. Ao invés de um colapso econômico puro, Mandel defendia a ideia de uma crise global multiforme, o que incluía a crise do sistema de dominação política e ideológica da classe capitalista. Uma crise estrutural cujo resultado não é nem o socialismo, nem o fim da civilização humana.

Socialismo

Baseando-se nos escritos de Marx e nos termos do debate dos bolcheviques russos e da jovem Internacional Comunista durante a revolução, Ernest Mandel considerava que socialismo era uma sociedade sem classes e, por isso, sem Estado – esse aparato coercitivo armado, suspenso acima da sociedade. Nessa sociedade, concebida como a primeira fase do comunismo, a dominação do humano sobre o humano daria lugar à gestão comum das coisas, dos bens materiais da sociedade, pelos produtores livremente associados. Mercadorias e dinheiro não mais seriam uma força quase-natural a sujeitar os humanos; a economia de mercado estaria em vias de desaparecer para, progressivamente, dar lugar à gestão comum destinada a satisfazer as necessidades. Quanto ao comunismo, ele seria – de acordo com o esboço de Marx – uma sociedade na qual a liberdade de cada um/a seria a condição para a liberdade de todos/as: não um “fim da História”, mas, ao contrário, o real início da história da humanidade liberada de todas as atrocidades de um passado caracterizado por exploração, opressão e violência.

De acordo com Mandel, para chegar ao socialismo era necessário que a classe trabalhadora, mobilizando todas as camadas oprimidas, tomasse o poder em suas mãos e se apropriasse das forças produtivas desenvolvidas pelo capitalismo em nível mundial e as transformasse de acordo com seu próprio interesse. O sistema político adequado para isso seria a democracia socialista, a única forma de dominação da classe trabalhadora (Marx e Engels identificaram a “ditadura do proletariado” com a Comuna de Paris de 1871 – um esboço da mais pujante democracia, se isso existisse), capaz de, ao mesmo tempo, efetivamente combater a resistência das classes proprietárias à expropriação e de instalar um planejamento democrático. Seria, ainda, um Estado, mas um Estado que encerraria, desde o início, o germe de sua própria extinção, preparando, assim, o desenvolvimento de uma sociedade sem classes, “socialista” no sentido pleno da palavra.

Naturalmente, o que os/as revolucionários/as chamam de “sociedade de transição” (para o socialismo) – que começa a existir diretamente depois da tomada de poder pela classe trabalhadora – interessa mais às pessoas comuns do que o sistema utópico que dela derivará décadas depois. Sobre esse ponto, Mandel era muito explícito: desde o início, a sociedade de transição ao socialismo deveria melhorar a sorte dos/as trabalhadores/as e das massas. Não apenas garantindo liberdades democráticas mais amplas que qualquer república democrática parlamentar burguesa, mas também providenciando uma base material sólida que permita às massas exercer, verdadeiramente, seus direitos democráticos, participando de instâncias de auto-gestão e dos processos decisórios. Para Mandel, isso envolvia uma redução radical da jornada de trabalho, juntamente com um padrão de vida apreciável para todos. Na tal sociedade transitória, a pluralidade de partidos e, portanto, de opiniões políticas era necessária tanto quanto as organizações e associações de massa independentes, a começar pelos sindicatos.

Se procurarmos um ponto fraco na argumentação de Mandel, rapidamente chegaremos ao problema das “bases materiais” necessárias para realizar o progresso emancipatório. Ao ler o capítulo que lida com esse problema em Teoria Econômica Marxista – escrito, lembremos, bem no início dos anos 1960 -, o que chama a atenção ali é que Mandel estava longe de ter a consciência sobre os problemas ecológicos que ele viria a ter durante os anos 1980 (para não mencionar as posições atuais da IV Internacional). Entre as fontes da acumulação socialista que Mandel menciona no início dos anos 1960, energia nuclear e o desenvolvimento da agricultura extensiva com o uso de fertilizantes químicos são citados, algo que ele não escreveria mais tarde.

Deve-se ter em mente que o conceito de libertação de Mandel está fortemente ligado a uma abundância relativa de recursos de consumo, sem o quê a distribuição não mercantil de bens de consumo só seria concebível dentro de um sistema de racionamento. É que isso equivale não apenas à satisfação das necessidades básicas, mas também a uma redução radical da jornada de trabalho. Se muitas formas de produção deverão ser eliminadas para salvar o clima e o planeta; se a produção de energia deverá ser significativamente reduzida; se a produção agrícola deverá funcionar sem monoculturas, então a produtividade do trabalho não sofrerá um incremento espetacular. Mas sem uma redução radical da jornada de trabalho e bem-estar material para todos, a democracia socialista não vai funcionar. Tudo isso, então, teria de ser repensado.

Estratégia

Dentro do sistema capitalista, a auto-organização democrática da classe trabalhadora desenvolve-se por meio da luta coletiva contra o capital e seu Estado. Mandel convida-nos a conceber a luta como algo que se expande e se generaliza, como na Valônia em 1960-61. É, na verdade, a ideia de uma greve geral insurrecional. As próprias necessidades da luta, se ela é conduzida de maneira consistente, levam à ampliação do movimento e à multiplicação das tarefas que ele se impõe, incluindo aquelas ligadas a segurança pública. Os órgãos grevistas, democraticamente eleitos, começam a contestar os direitos de soberania e de representatividade legítima dos órgãos do Estado burguês. Dessa forma, simples comitês de greve podem tornar-se conselhos, “sovietes”, isto é, os órgãos de um Estado alternativo que emerge de baixo. Aparece, assim, primeiramente, uma situação de dualidade de poder que, após certo período de tempo, precisa ser resolvida, ou no sentido do reestabelecimento da plena autoridade do Estado burguês, ou da conquista de poder pelos conselhos democraticamente centralizados.

Politicamente, a classe trabalhadora não é homogênea. Em tempos normais, os/as revolucionários/as representam tão somente uma minoria dentro dela. No contexto de uma ampla ação unitária desenvolvida na luta de classes, os tempos não são normais. As massas trabalhadoras não aprendem muito quando estão passivas e fragmentadas, mas aprendem muito rapidamente quando criam espaços de ação coletiva auto-gestionada. A corrente revolucionária deve buscar, no âmbito desse movimento amplo, ganhar crescente apoio para suas ideias gerais e propostas práticas, de forma a conquistar apoio majoritário nos conselhos.

Para chegar lá, os/as revolucionários/as devem buscar aplicar todo um arsenal de conceitos estratégicos elaborados pelo movimento comunista no início dos anos 1920, perdidos durante o período estalinista, mas preservados e atualizados constantemente pela Quarta Internacional:

  • A política da frente única: ação comum com os partidos e organizações reformistas para atingir objetivos concretos;
  • Demandas de transição: elas partem da consciência e dos problemas experimentados pela massa trabalhadora, para propor soluções baseadas na solidariedade (como a redução do tempo de trabalho sem redução de salário, com contratações proporcionais, controle operário sobre as condições de trabalho, a proibição das demissões, e assim por diante), que são, em sua dinâmica, incompatíveis com o sistema capitalista;
  • A construção do partido revolucionário: ele reuniria a ampla vanguarda social e da classe, os/as que dirigem a luta de maneira contínua, e não somente em momentos de sublevação das massas;
  • A organização da memória e a reflexão em nível nacional e internacional, de forma que as experiências vividas em períodos de ascensão do movimento não sejam perdidas em períodos de refluxo, e possam informar a orientação de novos picos no movimento de massas.  

A estratégia socialista de Ernest Mandel era organicamente internacionalista. Ele defendia que a análise da conjuntura social e política começasse no nível internacional, com seus mercados, seus recursos coercitivos, as desigualdades gritantes que o capitalismo aprofunda, mas também as potencialidades da resistência, os vários movimentos de caráter emancipatório em nível internacional. Para os países pobres e dependentes, ele defendia a estratégia da revolução permanente, para a qual as tarefas da revolução democrática e da conquista da soberania nacional, bem como de uma reforma agrária radical, não poderiam ser conduzidas de forma consequente por forças burguesas. Impunha-se, por isso, a tomada do poder pela classe trabalhadora, aliadas às camadas oprimidas e despossuídas – o que permitiria sua inserção no processo da revolução socialista mundial.

Análise da burocracia

As organizações de massa da classe trabalhadora (associações, sindicatos e partidos) criadas dentro do capitalismo não conseguem sobreviver sem militantes profissionalizados. Quadros organizativos, jornalistas, políticos/as profissionais e assim por diante são necessários/as para que essas organizações e também suas representações parlamentares possam funcionar. Ernest Mandel estava muito consciente disso; ele sublinhava, porém, o preço a ser pago para tal: a ascensão de uma camada burocrática privilegiada no interior das organizações operárias, que desenvolvia interesses específicos e tornava-se crescentemente conservadora. Essa burocracia identifica-se com os setores mais afluentes dos assalariados, odeia a revolução “como fogo” (Friedrich Ebert) e sabota o movimento que poderia desafiar o ritmo “rotineiro” da dominação capitalista na sociedade.

Contra tais burocracias, Mandel propôs a construção de correntes de esquerda e classistas, especialmente no interior dos sindicatos, que apresentassem escolhas estratégicas e figuras alternativas às orientações reformistas conservadoras das lideranças burocráticas. Era nítido para ele que as alternativas de esquerda só poderiam ter sucesso no contexto de movimentos de massa amplos e combativos. A primeira tarefa dos/as revolucionários/as é, então, fazer tudo o que estiver a seu alcance para promover, encorajar e apoiar qualquer pico de mobilização dos/as trabalhadores/as e oprimidos/as. As organizações de massas, dentro do capitalismo, eram para Mandel facas de dois gumes: inevitáveis no confronto com o poder dos patrões, suas associações e partidos, e, ao mesmo tempo, tendentes a limitar as lutas a demandas por salários, melhores condições de trabalho e melhor proteção social no âmbito capitalista. Autolimitadas, portanto, essas organizações com frequência negam-se a ir além de algumas conquistas simbólicas. Para transformá-las em instrumentos efetivos a favor dos interesses imediatos dos/as trabalhadores/as, deve-se lutar para romper com sua política de colaboração de classe e de paz social.

As burocracias dos sindicatos e dos partidos operários, mais ou menos adaptadas às democracias parlamentares burguesas, têm um modo de organização mais ou menos autoritário e antidemocrático, que sufocam iniciativas das bases e combatem ferozmente a oposição de esquerda. Os regimes burocráticos dos partido-Estados fundidos no poder, nos países do chamado “socialismo realmente existente”, eram absolutamente opressores. A burocratização da União Soviética alçara ao poder a facção de Stalin, que era a própria representação dessa camada burocrática privilegiada. Para defender seus interesses materiais, essa burocracia buscou, acima de tudo, romper com o passado revolucionário do bolchevismo e com a própria ideia de revolução mundial. É por isso que o conceito de “socialismo em um só país” e uma política de poder estatal substituíram a estratégia da revolução permanente e o internacionalismo consistente da jovem Internacional Comunista.

A crítica marxista revolucionária desses regimes não é a mesma crítica dos ideólogos burgueses. Certamente, os terríveis crimes de Stalin e sua claque deviam ser denunciados; contudo, era preciso, ao mesmo tempo, compreender o caráter nitidamente conservador do “comunismo oficial” estabelecido sob o reinado de Stalin.

Afim de caracterizar esses Estados, Mandel baseava-se sobretudo nas análises de Trotsky, ao passo em que as enriquecia, reconhecendo novas tendências. O termo “Estado operário burocrático degenerado” é irritante. Trotsky já não gostava muito dele, e o usava na falta de algo melhor. De fato, o que significa um Estado operário (ainda que fortemente burocratizado), no qual a classe trabalhadora não exerce poder e é desprovida dos direitos democráticos fundamentais?

Seguindo Trotsky, o argumento central de Mandel era de que certas conquistas da Revolução de 1917 permaneciam de pé: nem os meios de produção, nem a força de trabalho eram mercadorias; a lei do valor e o mercado não dominavam a economia, que era planificada; o Estado ainda detinha o monopólio sobre o comércio exterior. Essas eram sociedades não capitalistas em transição para o socialismo, ainda que burocraticamente petrificadas. Era necessário, então, no que diz respeito às tarefas, combinar a defesa dos elementos não capitalistas contra qualquer tentativa endógena ou exógena de restauração do capitalismo, com a derrubada revolucionária do poder político da burocracia, para retornar a uma democracia socialista dos conselhos.

O processo de ruptura do monolitismo estalinista e de crise do estalinismo, e depois do pós-estalinismo, foi encorajador para Mandel e para a Quarta Internacional, mas também cheio de desafios teóricos e programáticos. Após o colapso da URSS e de seus regimes aliados ou similares na Europa, Mandel viu com bons olhos a queda do “peso morto” do estalinismo, e constatou já estar aberto um processo revolucionário no sentido da revolução política desejada, bem como o retorno da aspiração por uma autêntica democracia socialista no nível das massas. Havia sinais apontando nessa direção. A esperança de Mandel quebrou-se com a realidade da restauração capitalista e a vitória triunfante do “Ocidente” capitalista na “Guerra Fria”, o que, obviamente, foi uma derrota considerável para a classe trabalhadora em nível planetário.

Em seu ótimo livro sobre a burocracia, Poder e Dinheiro, Mandel escreveu, em tom de autocrítica, que o “marxismo revolucionário” (e, logo, ele mesmo) havia subestimado os efeitos devastadores de décadas de dominação estalinista e pós-estalinista na consciência da classe trabalhadora. Ele também tinha superestimado o potencial da resistência à restauração do capitalismo no seio da própria burocracia dominante [6]. Esses são elementos significativos, porém não suficientes para pôr um ponto final nesse debate.

O capítulo verdadeiramente original desse livro diz respeito ao “substitucionismo”, e é de grande interesse para os/as revolucionários/as. Ora, se a ideologia substitucionista é típica das lideranças dos grandes aparatos burocráticos – que buscam justificar sua tendência permanente a agir em nome da classe e no lugar dela -, lideranças revolucionárias, em certas circunstâncias, também são tentadas pelo substitucionismo. Mandel fornece exemplos convincentes disso, não apenas em Lênin e Trotsky, mas também em Luxemburgo e Gramsci! E ele mostra que é o grau de autonomia da classe trabalhadora e dos/as oprimidos/as o fator determinante. Se esse grau é muito baixo, substitucionismos de todo tipo (parlamentar, caudilhista, terrorista, propagandista, etc) com frequência tomam lugar. Aqui Mandel conclui, mais uma vez, que a principal tarefa dos/as revolucionários/as é tudo fazer para promover e encorajar a ação autônoma da classe trabalhadora e das massas oprimidas em geral.

Para o debate

A contribuição teórica de Ernest Mandel é rica demais para ser sujeita a um exame crítico em poucas linhas. Terei de limitar-me a levantar três questões e convidar à leitura do meu livro. A questão que vai ao coração do marxismo revolucionário é se a atualidade da revolução socialista mundial subsiste no século XXI, e se a classe trabalhadora perdeu seu potencial de liderar esse processo revolucionário. Trotsky já expressara dúvidas sobre isso, ao argumentar que se a classe trabalhadora soviética se mostrara incapaz de derrubar o regime da burocracia para reestabelecer o próprio poder de classe, o programa de transição perderia seu significado e deveria ser substituído por um novo programa mínimo para a defesa dos interesses básicos das massas reduzidas à escravidão. E hoje? Ainda não temos a prova de que a reconstrução de um movimento revolucionário e emancipatório dos/as trabalhadores/as seja possível. Novos avanços, a começar pela ascensão do PT no Brasil, no início dos anos 1980, via de regra afundaram, por enquanto.

O marxismo de Ernest Mandel merece discussão. Qual foi sua dialética entre um marxismo “aberto” que, ao mesmo tempo, se inclinava para certas ortodoxias (“marxista”, “leninista”, “trotskista”)? Sua busca por uma doutrina globalmente coerente estaria ligada à necessidade de preservar e fortalecer sua própria, relativamente pequena organização? É preciso dizer, de passagem, que o seu marxismo – sua visão de mundo (Weltanschauung), em termos filosóficos – pegou muito emprestado dos escritos de vulgarização de Engels de Plekhanov, que tinham mais ou menos inventado a “doutrina marxista”. Era, também, um marxismo prometeano do movimento operário clássico, ligado a uma forte crença no progresso social, tecnológico e científico e na potencialidade criativa da classe trabalhadora, capaz de resolver os problemas mais difíceis.

Ernest Mandel não gostava que fosse, com frequência, chamado de “otimista”. Ele adquirira uma forte autoconfiança sobre a própria capacidade de prever os desdobramentos dos anos 1960 e 1970, desdobramentos que, de fato, se confirmaram – não todos, mas ainda assim -, de maneira bastante convincente. Ele estava sempre atento ao desenvolvimento de movimentos com potencial emancipatório em qualquer lugar do mundo. Às vezes, ele superestimava o potencial revolucionário, ou subestimava as dificuldades.

Já aos 23 anos ele via Abraham Leon como um modelo, ao encorajar seus camaradas a “ver uma razão para a esperança atrás de cada razão para o desespero”. Como fora possível liderar o combate revolucionário contra o nazismo e a guerra, em plena noite do século XX e, ao mesmo tempo, manter o élan humanista sem essa admirável força moral? Nessa altura, é comum citar Antônio Gramsci. Para variar um pouco, vou concluir citando Robert Merle, que disse o seguinte do seu herói do gênero masculino, o delfinólogo Sevilla: “Ele não era tão ingênuo a ponto de achar que uma causa triunfava porque era justa, mas ele não podia se dar ao luxo de ser pessimista”. [7]

*Nota da tradutora: Esta tradução utilizará, tanto quanto possível, uma linguagem inclusiva de gênero. Tradução: Maria Lima

Notas de rodapé:

[1] Jan Willem Stutje, Ernest Mandel: A Rebel’s Dream Deferred, Verso 2009.

[2] Gilbert Achcar (ed.), The Legacy of Ernest Mandel, Verso 2000.

[3] Manuel Kellner, Gegen Kapitalismus und Bürokratie – zur sozialistischen Strategie bei Ernest Mandel, Neuer isp-Verlag, Karlsruhe/Köln 2010. An English translation – Against Capitalism and Bureaucracy: Ernest Mandel’s socialist strategy – will be published this year by Brill & Haymarket books in the “Historical Materialism” series.

[4] Ernest Mandel, Marxist Economic Theory, Merlin Press 1977 (Introduction, page 17).

[5] Ernest Mandel, Late Capitalism, Verso 1999.

[6] Ernest Mandel, Power and Money, A Marxist Theory of Bureaucracy, Verso, London-New York 1992.

[7] Robert Merle, The Day of the Dolphin, Fawcett, 1977.