Sistemas democráticos estão em crise e apresentam carências. Parecem próximos à tecnocracia e ao populismo, escreve a filósofa —e discípula de Habermas— Cristina Lafont
Cristina Lafonte, El País Brasil, 7 de novembro de 2021
A democracia está em crise. Ainda que as causas sejam múltiplas, todas elas indicam que as pessoas perderam a capacidade de influência política porque existem atalhos demais que permitem a atores poderosos tomar decisões políticas à margem da população. Mesmo que nas sociedades democráticas as pessoas continuem tendo todos os direitos políticos formais de voto, liberdade de expressão etc., esses direitos já não garantem um poder real de influenciar as decisões políticas.
Usando esse padrão, os cientistas políticos Benjamin Page e Martin Giles oferecem evidência empírica de que os EUA já não são uma democracia. Tecnicamente, são uma oligarquia. As preferências e opiniões da maioria da população não têm influência efetiva nas decisões políticas.
A situação na Europa não é muito diferente. A UE nunca foi um projeto democrático. Nasceu como um projeto de integração econômica sem integração política e seus déficits democráticos são criticados há décadas. Mas o que reflete a crise atual é que, como consequência de tais déficits, os países europeus também estão deixando de ser democracias. O mais tardar desde a crise de 2008, as pessoas puderam comprovar que exercer o direito ao voto tem pouco a ver com poder influenciar as políticas às que estão sujeitas. O exemplo mais extremo foram as eleições gregas de 2015. A maioria da população elegeu um partido com uma agenda explícita de repúdio às políticas de austeridade e a única coisa que conseguiram foi um partido que administrou as mesmas políticas de austeridade que a população rechaçou por grande margem. Eleições mais recentes (por exemplo, na Itália) e plebiscitos como o do Brexit confirmam essa tendência. Após três décadas de tecnocracia neoliberal que culminaram na crise financeira de 2008 e nas políticas de austeridade impostas à margem das necessidades e preferências das pessoas, o surgimento do populismo e do etnonacionalismo como reação na maioria das sociedades democráticas é um claro sintoma da profunda crise de representação política. Os líderes populistas prometem devolver o controle ao “povo” tirando-o das elites políticas e das minorias às que supostamente servem. A situação política atual sugere que os países democráticos só podem escolher entre a tecnocracia e o populismo, entre o Governo de especialistas e o das massas ignorantes. A pandemia parece estar piorando a situação. A necessidade de proteger a saúde pública com confinamentos e compras de vacinas está polarizando a população entre os populistas que desconfiam dos especialistas e os tecnocratas que desconfiam dos cidadãos ignorantes.
Mas se o descontentamento da população se deve à exclusão, a solução não pode ser mais exclusão. Por mais diferentes que pareçam o populismo e a tecnocracia, os dois são incompatíveis com a inclusão democrática. Representam uma ameaça ao compromisso democrático de que todos possam determinar as decisões políticas às que estão sujeitos. O populismo defende o governo da maioria eleitoral à que identifica como “verdadeiro povo” e exige que as minorias aceitem cegamente as decisões da maioria. A tecnocracia defende o governo da minoria à que identifica como “os especialistas” e exige que a maioria ignorante defenda cegamente as decisões da minoria. As duas opções aceitam uma divisão permanente entre as pessoas que tomam decisões políticas e as que obedecem cegamente. A expectativa de deferência cega é o traço autocrático comum ao populismo e à tecnocracia.
Em momentos de crise as propostas de reforma proliferam, mas muitas caem na tentação de procurar atalhos populistas e tecnocráticos. Exemplos europeus preocupantes são as reformas populistas na Polônia e na Hungria dirigidas a destruir a independência judicial, com argumentos supostamente democráticos de devolver o controle ao “povo” e retirá-lo de uma elite ilegítima de juízes, deixando grupos minoritários (pessoas LGTBQ+, mulheres, imigrantes, minorias étnicas e religiosas…) indefesos para proteger seus direitos e sem outra alternativa a não ser obedecer às decisões da maioria dominante. Uma tendência também preocupante são propostas tecnopopulistas que prometem aumentar a participação da população, por exemplo, organizando assembleias populares para tomar decisões políticas difíceis sobre a mudança climática, a imigração e as pandemias. Essas propostas se justificam como uma maneira de permitir que as pessoas tomem as decisões políticas que as afetam em vez de deixá-las nas mãos de burocratas e partidos. A participação é limitada a um grupo minúsculo de pessoas selecionadas aleatoriamente que recebem a informação necessária e a oportunidade de deliberar sobre uma questão. O caráter antidemocrático dessas propostas está na expectativa de que a imensa maioria da população obedeça cegamente às decisões de alguns poucos sobre quem não pode exercer nenhum controle democrático. Diante dessas propostas, as pessoas deveriam pedir que as assembleias se organizem com finalidades genuinamente democráticas. Em vez de empoderar poucos para que pensem e decidam por eles, as pessoas poderiam usar tais assembleias para empoderar a si mesmos. As assembleias podem fornecer informação confiável sobre razões a favor e contra decisões importantes, mas não podem e não devem substituir a população na tomada de decisões.
As propostas populistas e tecnocráticas não são democráticas e não podem funcionar. Induzem as pessoas com a armadilha antidemocrática de acreditar que os resultados políticos almejados podem ser conseguidos mais rapidamente com um atalho e deixam seus concidadãos para trás. Os tecnocratas acreditam que, se deixarem os “especialistas” governar, seria possível conseguir melhores resultados mais rapidamente. Os populistas acham que se o “povo verdadeiro” puder governar, se conseguiriam melhores resultados. Os dois se esquecem de que uma sociedade não pode ser melhor do que os seus membros. A não ser que a população aceite as políticas às que está sujeita e faça sua parte para que os objetivos de tais políticas se cumpram, os resultados em questão não serão conquistados. Ser democrata consiste justamente em reconhecer que não há atalhos para se obter melhores resultados. A única maneira de melhorar a sociedade é aceitar o longo caminho democrático de mudar os corações e as mentes de nossos concidadãos para que façam sua parte e sejam obtidos resultados que todos possam considerar, pelo menos, razoáveis.
Cristina Lafont é filósofa política e professora da Universidade Northwestern em Chicago. É autora de Democracy Without Shortcuts (Democracia sem atalhos).