Enquanto camioneiros canadenses continuam a bloquear as ruas contra as medidas anti-Covid do governo de Trudeau, recordamos as origens do movimento, as suas ligações à extrema-direita e o jogo obscuro dos Conservadores.
Emilie Nicolas., Esquerda.net, 8 de fevereiro de 2022
No final do Inverno, uma caravana de camionetas, camiões e outros grandes veículos atravessa o país, de Alberta a Ottawa, para exigir que o Primeiro-Ministro Justin Trudeau altere completamente a sua agenda política ou se demita. Estamos em Fevereiro de 2019.
O nome da caravana? Primeiro, Coletes Amarelos, depois United We Roll (Unidos, Vamos). O motivo oficial? Apoiar "trabalhadores comuns" no setor petrolífero, bloquear o imposto sobre o carbono, aprovar a construção de novos oleodutos.
Mas a Rede Canadiana Anti-Ódio mostra que os principais organizadores são agitadores de extrema-direita, islamófobos e teóricos da conspiração que acreditam que a ONU está a trabalhar para abolir as fronteiras.
Uma alt-right canadiana, em suma, apropriando-se da linguagem de um movimento de raiva populista para aumentar a sua visibilidade, rodear as suas principais figuras com uma aura de respeitabilidade e recrutar em novas redes.
Existe uma diferença fundamental entre uma manifestação em que elementos extremistas são convidados, para desgosto dos organizadores, e uma manifestação organizada por extremistas que ajustam a sua comunicação para melhor alcançar uma parte da população que não está interessada nas suas ideias.
A distinção não impede que os primeiros-ministros de Alberta, Jason Kenney, do Ontario, Doug Ford e o antigo líder do Partido Conservador do Canadá, Andrew Scheer, apoiem o movimento "United We Roll".
À medida que a caravana se aproximava de Ottawa, as mensagens de extrema-direita de muitos dos seus membros tornavam-se cada vez mais audíveis. Os eleitos conservadores, tanto provinciais como federais, opõem-se à "ousadia" de associar este movimento ao racismo e reiteram o seu motivo oficial: defender as pessoas comuns que ganham o seu sustento no petróleo. Neste contexto, Andrew Scheer viu-se a falar num comício em Parliament Hill minutos antes de uma notória supremacista branca, Faith Goldy.
A "Caravana da Liberdade" que tem estado a paralisar Otava desde sexta-feira não só é semelhante ao movimento "United We Roll", como é uma continuação do mesmo. Tamara Lich, que lançou a campanha GoFundMe de crowdfunding que já acumulou mais de 10 milhões de dólares, e Patrick King, o mobilizador de Alberta e autor de protestos virais sobre a superioridade racial anglo-saxónica, são dois dos veteranos dos Coletes Amarelos por detrás da atual caravana, mais uma vez de acordo com a Rede Canadiana Anti-Ódio.
Tal como em 2019, a "Caravana da Liberdade" está a apropriar-se de uma causa popular e populista para construir apoio para além das suas próprias redes. Tomemos o exemplo de James Bauder, um teórico da conspiração que acredita que o Primeiro Ministro é culpado de "crimes contra a humanidade", também ele um antigo participante da United We Roll. Em Outubro passado, tentou organizar uma "caravana de liberdade" para Otava, altura em que publicou o seu indescritível "protocolo" pseudo-jurídico apelando ao derrube do governo. Os camionistas não são evidentemente mencionados no texto, pois foi apenas em novembro que o Ministro dos Transportes Omar Alghabra anunciou que lhes seria exigida prova de vacinação a partir de meados de janeiro. A ideia e até o nome da "Caravana da Liberdade", com o seu texto de acompanhamento, foram novamente apresentados por volta do Ano Novo. A dinâmica política mudou, e agora o "protocolo" de Outubro está a tornar-se viral.
No entanto, ainda nos é dito que se trata de um movimento de camionistas, apesar de quase 90% dos camionistas estarem vacinados, apesar de a Canadian Trucking Alliance não concordar com a caravana. Tal como em 2019, os Conservadores estão a fingir que alguns indivíduos deploráveis se infiltraram numa manifestação de "pessoas comuns", em vez de admitirem que muitos manifestantes sinceros se envolveram num plano extremista. Numa conferência de imprensa na passada quinta-feira, Erin O'Toole anunciou que iria reunir-se com alguns dos participantes e expressou a sua indignação por se reduzir um movimento aos seus... organizadores. Ele quer que estas pessoas comuns, "que não têm acesso a lobistas", saibam que têm uma voz em Ottawa. Os camionistas, um grupo chave para as cadeias de abastecimento norte-americanas, têm, evidentemente, lobistas. Mas pronto, em 2019 também diziam que a indústria do petróleo e do gás era constituída por pessoas sem voz.
Com este lobbying, os deputados conservadores federais e provinciais tentaram em janeiro fazer recuar o ministro Alghabra, alegando que as vacinas obrigatórias para camionistas criariam escassez nas mercearias e atrasariam a entrega de material médico. Depois das novas regras de fronteira terem sido postas em prática, Jason Kenney até publicou imagens no Twitter de prateleiras vazias, sugerindo (falsamente) que as penúrias profetizadas eram reais. Parece que, a fim de reunir as tropas, até mesmo as mentiras absolutas podem ser adequadas.
O resultado é conhecido. Uma manifestação organizada por extremistas de ódio mobilizou, sem surpresa, um número considerável de extremistas de ódio. Ao tirar fotografias de si próprios com os polegares para cima e ao permitir o assédio de cidadãos e jornalistas, a polícia de Ottawa encorajou o movimento, que planeia agora bloquear os centros urbanos de Toronto e do Quebeque nos próximos dias. E ao repetir, sem o provar, que se tratava de um movimento de e para camionistas, os Conservadores ajudaram a alt-right a angariar milhões de dólares que certamente irão em parte para os seus projetos futuros.
Erin O'Toole, demasiado "moderada" para grande parte da sua bancada, foi demitida na quarta-feira das suas funções de líder do Partido Conservador. Leslyn Lewis e Pierre Poilievre, possíveis candidatos a suceder-lhe, passaram o fim-de-semana a apertar a mão na caravana, tal como o líder do Partido Popular, Maxime Bernier.
Veremos como evoluirá esta narrativa de confusão, e talvez até de fusão, entre os partidos alt-right e conservadores canadianos.
Emilie Nicolas é cronista no Devoir e Montreal Gazette, militante antirracista e feminista. Artigo publicado em Le Devoir. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.