O Brasil acumula mais de 191 mil mortes por covid-19 desde o início da pandemia. Mas epidemiologistas, matemáticos e cientistas de dados calculam que o número real é bem maior.
André Biernath, BBC News Brasil, 30 de dezembro de 2020
Mesmo as análises mais conservadoras desses profissionais indicam um excedente não contabilizado que ultrapassa a casa das dezenas de milhares de óbitos pela doença.
Embora a subnotificação seja um fenômeno que aconteça em todo o mundo, no nosso país ela apresenta características únicas. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam uma enorme dificuldade para entender a origem e a metodologia dos dados disponibilizados pelo governo sobre a pandemia.
"Não basta informar o número final. Precisamos de uma transparência de como essas informações são coletadas para que tenhamos tranquilidade de que elas realmente representam a realidade que estamos vivendo. A gente só fica sabendo das coisas com atraso", critica o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19.
Mas, afinal, como é possível calcular esse excesso de óbitos que foge das contas oficiais?
Mortes sem explicação
Para responder a essa pergunta, o engenheiro Miguel Buelta, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, recorreu aos registros brasileiros de óbitos por Síndrome Aguda Respiratória Grave (SRAG).
Por lei, todos os hospitais são obrigados a notificar o governo quando uma morte por essa condição acontece em suas dependências.
"Se compararmos o número de mortes por SRAG em 2019 e em 2020, é possível observar que neste ano há um excedente enorme, mesmo quando subtraímos a média dos períodos anteriores e os casos em que a covid-19 foi confirmada", afirma Buelta.
Em outras palavras, na comparação com o passado recente, o número de pessoas que não sobreviveu a um colapso das vias aéreas em 2020 foi muito maior. E, dentro desse contingente, há uma quantidade enorme de óbitos em que o agente por trás do problema não foi identificado.
Vamos aos números. Em 2019, o Brasil contabilizou 4.852 mortes por SRAG. Já no ano de 2020, o número de óbitos por essa mesma condição estava em 229,1 mil até o dia 1º de novembro. Desse total registrado, 151,5 mil tiveram a covid-19 confirmada.
Numa conta simples de subtração, dá pra concluir que cerca de 75 mil mortes por SRAG ocorridas ao longo dos últimos meses não tiveram sua origem esclarecida. Porém, em um ano de pandemia, com alta circulação de um novo tipo de coronavírus, especialistas dizem ser possível afirmar que a maioria dessas pessoas deve ter tido covid-19.
Fatores confundidores
E se forem, na verdade, pacientes de pneumonia? Buelta levou essa possibilidade em conta.
"Algumas pessoas argumentaram que, ao longo de 2020, o número de mortes por pneumonia caiu no Brasil. Segundo essa linha de raciocínio, os médicos estariam colocando com mais frequência a SRAG do que a pneumonia nos atestados de óbito", conta Buelta.
O engenheiro resolveu, então, adicionar mais alguns números na sua fórmula. "Mesmo se acrescentarmos esse eventual fator de confusão da pneumonia na conta, ele não é suficiente para explicar esse excedente todo de mortes por SRAG que observamos", diz.
Vamos considerar um cenário considerado absurdo e irreal, em que 50% das mortes por SRAG notificadas no país eram, na verdade, pneumonias não diagnosticadas. "Mesmo assim, ainda teríamos uma subnotificação de mortes prováveis por covid-19 na casa dos 30%", observa Buelta.
Os especialistas acreditam que a explicação para essa queda nas mortes por pneumonia é muito mais simples: com as pessoas mais isoladas em casa (especialmente as crianças, que em sua maioria não foram à escola nos últimos meses), a circulação de outros agentes infecciosos relativamente comuns caiu no país.
É provável, portanto, que não apenas a pneumonia, mas doenças como gripe, diarreia e resfriado tenham sido bem menos impactantes neste ano em relação aos períodos anteriores.
Muito além dos dados oficiais
É preciso considerar que os cálculos de subnotificação apresentados até agora levam em conta apenas os dados dos pacientes que chegaram até o hospital, onde a notificação de SRAG é compulsória.
"Nós sabemos que, ao longo de 2020, houve um excesso de mortes ocorridas em casa ou na rua, de indivíduos que nem chegaram a receber um atendimento", aponta Schrarstzhaupt.
O cenário aqui fica um pouco mais nebuloso, pois não há muita informação disponível e confiável.
É possível ter uma pista desse fenômeno no Portal Transparência, mantido pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, entidade que representa os cartórios brasileiros.
A base de dados revela que, em 2019, 272 mil brasileiros morreram por causas respiratórias fora do ambiente hospitalar (na rua ou em casa, por exemplo). Já em 2020, esse número está em 323 mil, quase 50 mil óbitos a mais.
Não é possível, é claro, relacionar todo esse excedente à covid-19. Mas os especialistas indicam que o fato de ele aparecer justamente durante a pandemia é um sintoma de descompasso e possível desatualização das informações oficiais.
Segundo estimativas conservadoras dos três entrevistados pela reportagem, somando-se as mortes por SRAG de causa não identificada mais as mortes fora do ambiente hospitalar, o total de mortes por covid-19 no país até agora deve ser mais de 50% superior às estimativas oficiais.
O outro lado da história
A reportagem da BBC News Brasil entrou em contato com o Ministério da Saúde para entender como o governo avalia essa questão da subnotificação de mortes por covid-19 no país.
Por meio de nota, a assessoria de imprensa da pasta afirmou, sem entrar em detalhes, que há um processo para fortalecer a rede de vigilância de influenza e outros vírus respiratórios, "para cada vez mais qualificar a identificação de agentes etiológicos causadores de doenças respiratórias, como a covid-19, principalmente por técnicas de biologia molecular, incluindo mais tipos de vírus nos diagnósticos e com equipamentos capazes de um maior número de processamento ao dia".
No texto, os representantes do ministério também apontaram que o processo de notificação não envolve apenas informar um novo caso. "Mesmo depois de inserido no sistema de informação, os técnicos retornam para atualizar as informações, bem como os resultados laboratoriais e assim encerrar os casos. O Ministério da Saúde regularmente discute e fortalece a necessidade da notificação e digitação oportuna dos casos suspeitos e confirmados para covid-19 com as equipes de vigilância dos Estados".
Um problema generalizado
A subnotificação não é algo que acontece apenas no nosso país. Na segunda-feira (28/12), a Rússia admitiu que o número de mortos em razão da covid-19 por lá era três vezes maior do que apontavam as estatísticas oficiais.
O governo de Vladimir Putin contabilizava 55 mil óbitos. Agora, representantes do Ministério da Saúde russo calculam mais de 186 mil mortes pela doença, o que colocaria o país em terceiro lugar no ranking global, só atrás de Brasil (em segundo) e Estados Unidos (em primeiro).
Nos últimos meses, outras nações como a China, a Alemanha e a Coreia do Sul também corrigiram seus cálculos e modificaram os números divulgados até então.
Ainda no contexto internacional, um estudo realizado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, avaliou o grau de subnotificação de mortes pelo coronavírus em 91 países diferentes.
De acordo com os resultados, que estão na fase de pré-publicação e ainda não foram avaliados por outros cientistas independentes, a defasagem nos dados acontece em maior ou menor grau em todos os lugares.
Na média, estima-se que os números de óbitos sejam 40% superiores ao que foi calculado até o momento. Isso significaria um acréscimo global de cerca de 700 mil mortes provocadas pela infecção do Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual.
A pesquisa do MIT, no entanto, destaca que não conseguiu incluir na análise três países que sofreram ou sofrem bastante com a pandemia: China, Argentina e Brasil.
Segundo os autores, não foi possível obter dados confiáveis sobre a covid-19 nesses três países, especialmente em relação aos programas de testagem populacional.
Pandemia à brasileira
A falta de diagnóstico rápido e preciso está entre as grandes dificuldades por aqui. "Ao mesmo tempo em que vemos um aumento na notificação de mortes por SRAG não especificada no país, desde agosto há uma diminuição de 10% a 15% ao mês no número de testes para detectar a covid-19", afirma o físico Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Sem a realização de testes em larga escala, a tendência é que a subnotificação das mortes só aumente daqui pra diante.
Alves também identifica um atraso muito grande das secretarias estaduais de saúde para disponibilizar seus dados. "O Rio de Janeiro, por exemplo, passou o mês de novembro inteiro informando uma queda de novos casos de infecção, enquanto as hospitalizações subiam. Precisamos que os responsáveis por esse processo sejam cuidadosos e honestos", aponta o físico.
O que janeiro nos reserva?
Schrarstzhaupt observa uma piora na disponibilidade de informações sobre o cenário da pandemia no Brasil a partir de novembro. "Conversamos com muitos profissionais e eles nos disseram que as equipes estão reduzidas, há um cansaço geral e ainda ocorreu um acúmulo e um atraso nas notificações que precisam ser feitas nos sistemas".
É preciso considerar aqui questões burocráticas. Há relatos de que os sistemas de informática utilizados para computar as mortes não são nada fáceis de operar e consomem muito tempo de trabalho.
Vivemos também o final do mandato de muitos prefeitos. Os novos responsáveis pela administração das cidades assumem a partir de janeiro e a troca dos secretários e das equipes na área de saúde pode atravancar ainda mais esse processo.
Para completar, com o fim de ano, muitos funcionários do setor público e privado tiram férias ou entram em recesso, restringindo ainda mais a mão de obra necessária para manter tudo atualizado.
Com isso, eventuais quedas repentinas nos números de casos e mortes por covid-19 observados nos últimos dias ou em fins de semana (e que podem se repetir daqui para a frente) podem ser artificiais e não representar a realidade.
"É provável que a partir da segunda quinzena de janeiro todos esses dados que estão represados apareçam de uma só vez", antevê Schrarstzhaupt. "No atual estágio da pandemia, tudo indica que vemos apenas a ponta do iceberg e há muita coisa escondida por baixo desse mar de dados", completa o cientista.