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Jaime Brasil: Forma e conteúdo

5 de janeiro de 2022

O mundo à beira do colapso ambiental e social. O capitalismo criando cada vez mais meios de relativização da necessidade do trabalho humano com as novas tecnologias, aumentando a capacidade de geração de alimentos e de conforto que poderiam ser de todos, e, no entanto, nunca como hoje, o capitalismo explora tanto o trabalho humano e destrói tanto os recursos naturais.

Jaime Brasil, Todo dia é dia, 19 de outubro de 2021

O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. (…) Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (…) independente do tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos para conservar o valor já criado como valor. (Karl Marx, Grundrisse)

Onde está a maior dificuldade em conduzirmos a superação do capitalismo e utilizarmos toda a tecnologia gerada e acumulada em milênios para termos um mundo socialmente justo e ambientalmente saudável? Se as condições objetivas existem para isso, por que nos encontramos em um pântano teórico e prático?

Existe uma enorme dificuldade no seio das esquerdas para reconhecer a importância das subjetividades na forma e no conteúdo das teorias formuladas e nas práticas adotadas.

Defender certo conteúdo teórico não realiza, necessariamente, aquele conteúdo se a forma não for coerente com o que se propõe. Explico, podemos defender o materialismo histórico e dialético como método teórico para a práxis revolucionária de uma maneira mecanicista e positivista. Desse modo, a despeito das palavras de ordem e das palavras chaves que cabem na boca de todo militante, o que se faz é apenas alimentar uma forma conservadora e excludente de pensamento, e que, no máximo, gerará um ambiente conservador e excludente com aparência de transformador e revolucionário.

Não teria sido exatamente isso que aconteceu em absolutamente todas as experiências socialistas até hoje? Por acaso as experiências socialistas produziram pessoas antimachistas, antihomofóbicas, antiracistas, produziram uma sociedade ambientalista e que não usa os padrões e valores burgueses para se beneficiar de privilégios dentro da burocracia partidária e estatal? Por acaso as experiências socialistas geraram socialistas?

Um grande exemplo atual da incapacidade das esquerdas – e que demonstra a profunda dificuldade que temos de nos afastar dos pensamentos de estrutura cartesiana, positivista e mecanicista –, é o debate sobre a importância e o protagonismo das chamadas “bandeiras identitárias”, diante das clássicas bandeiras de luta sustentadas pelo marxismo. É como se houvesse alguma contradição entre a luta antirracista, ambientalista, antihomofóbica e a luta pelo fim da propriedade privada, a luta de classes, a socialização dos meios de produção etc. É como se as bandeiras identitárias fossem coadjuvantes, subjacentes ou conseqüências naturais das tais bandeiras estruturais, macroeconômicas ou macropolíticas. Não são.

A prova de que as mudanças objetivas jamais serão suficientes para a construção do mundo que sonhamos está nas fracassadas experiências socialistas vividas. Foi provado que se as mudanças dialéticas não acontecerem nas sociedades e nos indivíduos concomitantemente a todo o resto, o que teremos será a reprodução malfeita de modelos capitalistas autoritários dominados por burocratas egocêntricos que se apropriam dos postos de direção e agem como verdadeiros burgueses, e que usam todos as frases revolucionárias de efeito como se fossem religiosos fundamentalistas, justificando os poderes que acreditam merecer.

Falar que vamos construir o socialismo abolindo a propriedade privadas e socializando os meios de produção é muito fácil, o problema é como fazê-lo sem cairmos na ineficiência, na criação de estamentos de comando, sem deixarmos que os mais gananciosos se apropriem dos postos de direção em beneficio particular. Dizer que é só colocar tudo no controle da classe trabalhadora é fácil, as estruturas sociais humanas são, via de regra, hierárquicas e os detentores de hierarquia superior tendem muitas vezes a se distanciar do controle das bases e criar instrumentos de repressão, de manutenção indefinida no poder, e tudo em nome da revolução. Quem disse isso? A história!

Não podemos cair no mecanicismo de achar que se mudarmos as condições objetivas, logo as condições subjetivas e as subjetividades das pessoas e das sociedades mudarão. Se as bandeiras identitárias e de costumes não evoluírem junto com as ações objetivas jamais iremos a lugar algum.

O grande problema a ser resolvido na construção do socialismo é psicanalítico. Temos que saber identificar e tratar aquilo de narcísico e egocêntrico que arrebatam boa parte das nossas lideranças. Caso contrário, o mais perverso e inescrupuloso sempre vencerá.

Não existe sociedade no abstrato, ela é composta por seres humanos, e para os seres humanos a subjetividade é muito mais importante que as objetividades, por isso somos seres culturais que nos inventamos e agimos conforme aquilo que nos compõe internamente, prova é a forma das religiões e de ideologias antipopulares apoiadas pelo próprio povo.

A velha esquerda está morta, morta porque se perde em lutas intestinas que nem de longe são assimiladas pelos povos do mundo, e jamais serão porque não interessam a ninguém, a não ser àqueles dados à idealização narcísica da realidade e que se jactam proprietários do saber revolucionário. Se a velha esquerda acha que ainda não morreu é porque vive no mundo dos enganos da objetividade canhestra, não percebeu o seu próprio enterro passar.