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Joana Mortágua: Portugal, o day after

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O PS trocou a estabilidade do país pela tentativa de vergar os partidos à sua esquerda. Não vou afirmar que o voto contra do Bloco de Esquerda era desejado, mas certamente não foi evitado.

Joana Mortágua, Jornal I / Esquerda.net, 29 de outubro de 2021

Com o passar dos dias a viabilização do orçamento tornou-se cada vez mais improvável. Falo pelo Bloco de Esquerda, claro, mas em reação a um debate em que o PS não deu qualquer sinal de querer inverter o rumo já traçado e que teria como desfecho inevitável o voto contra do Bloco de Esquerda. Estranho? Só a intransigência do PS, sobretudo num quadro de instabilidade política que António Costa jurava a pé juntos não desejar.

A primeira nota que gostaria de deixar é que a reprovação do orçamento não tem de dar lugar à convocação de eleições antecipadas. Citando Miguel Prata Roque, “não há uma única norma (ou sequer precedente) constitucional que legitime um Presidente da República que prometeu velar pela estabilidade política a dissolver uma Assembleia da República que não conseguiu aprovar uma primeira versão de Orçamento do Estado.”

No Bloco de Esquerda não tememos eleições, nem consideramos que a forma de combater a direita seja evitá-las ou suspender a saída democrática nos momentos de impasse. Essa foi a decisão pré anunciada pelo Presidente da República mesmo antes de ouvir outras preferências ou possibilidades dos partidos.

As alternativas que, por pressão ou por convicção, o PR rejeitou à partida passavam por dar uma segunda oportunidade ao Governo para negociar um novo orçamento ou por permitir-lhe governar em duodécimos. Como disse, entregaremos essa decisão a quem ela legitimamente compete e faremos a nossa parte: manter a disponibilidade para negociações com o PS e os partidos de esquerda.

O que não aceitamos, e isso fica como aviso à navegação para futuro, são negociações em que os passos são dados com a ponta da espada nas costas. Não foi o que aconteceu em 2015/2016, e talvez por isso tenha corrido bem. A geringonça não foi feita com chantagens nem medo, todos estiveram à altura do momento extraordinário que vivíamos, não foi filha de qualquer ultimato.

Fiz parte da primeira equipa negocial desse acordo e respondo por cada palavra: na altura, o PS aceitou negociar, retirando, alterando ou adicionando um conjunto de medidas ao seu programa, algumas com impacto orçamental relevante, outras que estariam reservadas a outros fóruns. Aceitou tanto o “papel” escrito que agora Ana Catarina Mendes diz ser condição imediata de rejeição, como a negociação de matérias que extravasam muito a matéria orçamental, como o aumento do salário mínimo.

Por outro lado, nenhuma chantagem europeia ou vontade de passar debaixo do radar da OCDE impediu a concretização desse acordo. Não correu tudo bem, e talvez o programa comum estivesse destinado a esgotar-se quando chegámos às alterações troikistas das quais o PS se tornou guardião.

Mas sem cartas na manga nem ressentimentos pela rejeição do acordo escrito em 2019, levámos nove propostas à mesa das negociações para o Orçamento de 2022. Não são o programa do Bloco de Esquerda, são aproximações negociais que refletem as urgências do país (saúde, proteção social, trabalho), e seriam a sequência natural se o PS tivesse permanecido no caminho da geringonça.

A geringonça não é uma fama atrás da qual o PS se possa esconder enquanto continua os negócios do costume. Nem é um espírito que ilumina e torna aceitáveis orçamentos que não servem o país.

António Costa decidiu afastar-se desse caminho para sonhar com uma maioria absoluta para a qual não tinha votos. Mas isso não o impediu de negligenciar as negociações e rejeitar nove das nove propostas do Bloco, mesmo tendo reformulado alguns dos seus termos para que a rejeição parecesse outra coisa.

Vejamos o exemplo da saúde. Por todo o país surgem demissões de equipas de direção clínica do SNS por falta de profissionais; os concursos que o Governo vai abrindo ficam desertos apesar de haver médicos formados no SNS. Quais são as respostas do Orçamento? Permitir que os médicos façam mais de 500 horas extraordinárias por ano; remeter as matérias de remuneração para um estatuto que remete para qualquer coisa que há de vir; um regime de exclusividade que não passa aumento do horário no SNS mesmo acumulando com as funções na saúde privada.

O PS trocou a estabilidade do país pela tentativa de vergar os partidos à sua esquerda. Não vou afirmar que o voto contra do Bloco de Esquerda era desejado, mas certamente não foi evitado. Não por acaso, António Costa acabou o seu discurso a pedir maioria.

Hoje é o dia seguinte ao chumbo do orçamento. O que sabemos? Que a vida ainda não acabou ontem, que os limites do PS não são as impossibilidades do país, que a direita não é uma inevitabilidade.

Joana Mortágua é deputada no parlamento português e dirigente do Bloco de Esquerda.

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